Capítulo 2 - COALESCÊNCIA
Quando duas pequenas gotas d'água se unem e, com isto, formam somente uma gota que possui dimensões maiores, dizemos que ocorreu um fenômeno denominado "coalescência". De certa forma fora isso que aconteceu com meus sentimentos por Mariana aos poucos e em pequenas gotas ao longo dos anos eles foram transformando-se e tornando-se muito maiores. Sem que eu notasse ela tornou-se o centro da minha vida, mesmo e apesar de não admitir ou aceitar que era isso que estava acontecendo. Conhecemo-nos no ensino fundamental e quando descobrir que gostava de garotas ela foi a primeira pra quem eu falei, também foi a primeira pra quem eu falei do meu primeiro beijo, da primeira namorada, da primeira decepção. Absolutamente tudo de importante ou marcante que já me acontecera, eu tinha a lembrança da presença de Mariana.
Se bem me lembro, começamos a nos envolver, sexualmente quero dizer, quando ainda estávamos na faculdade. Estávamos vagando pelo centro atrás de algum restaurante legal quando passamos em frente a um barzinho com karaokê. Na mesma hora a Mari ficou toda animada e quis porque quis entrar e lá fomos nós, na verdade eu hoje entendo que o que ela queria mesmo eram umas boas doses de coragem. Depois de umas tequilas ela se dirigiu ao pequeno palco e escolheu. Ela escolheu “Girlfriend” da Avril Lavigne, a música estava em seu auge naquela época. Eu a olhei de forma curiosa e pensei com meus botões se eu deveria me envergonhar por ela olhar o tempo inteiro para mim, meio que como uma mensagem. Uma parte da letra dizia mais ou menos assim:
“I can see the way, I see way you look at me
And even when you look away, I know you think of me
I know you talk about me all the time again and again
So come over here and tell me what wanna hear
Better yet, make your girlfriend disappear
I don't wanna hear you say her name ever again
And again, and again, and again, 'cause
She's like so whatever
You can do so much better
I think we should get together now
And that's what everyone's talking about”
“Eu posso ver o jeito, eu vejo o jeito que você olha para mim
E mesmo quando você desvia o olhar, eu sei que você pensa em mim
Eu sei que você fala sobre mim o tempo todo, de novo e de novo
Então venha aqui e me diga o que quero ouvir
Melhor ainda, faça sua namorada desaparecer
Eu não quero ouvir você dizer o nome dela nunca mais
E de novo e de novo e de novo, porque
Ela é tão sem graça
Você pode fazer muito melhor
Eu acho que nós deveríamos ficar juntos agora
E é disso que todo mundo está falando”
Tá, eu ri dessa parte, ri de vergonha e principalmente de nervoso, ela tinha toda razão. Cantou toda a música, que mais parecia uma daquelas músicas de filme da Barbie, com direito a uma bela performance. Depois da vergonha alheia ela desceu do palco e ficou me olhando de forma bem sugestiva. Só que quanto mais ela me olhava, mais eu ficava com medo do que poderia acontecer a seguir. Eu tinha que ser muito idiota pra não compreender o que estava acontecendo ali, como diria aquele candidato a presidência... “sinais, fortes sinais”! Porém, cruzar a linha que separa a amizade do romance era perigoso demais e na época eu ainda estava ficando com uma garota que ela não suportava, tudo bem que não era nenhum lance sólido ou sério, mas era com certeza algo com a qual eu sabia lidar. Diferente do que estava prestes a acontecer conosco e, talvez, só talvez tenha surgido aí meu grande erro. A verdade é que minha covardia jamais me permitiu cruzar a tal linha, foi muito mais confortável deixar tudo na amizade, tratei o que passamos a ter como “pegação de faculdade”, amigas coloridas e nada mais. Tão babaca, eu sei.
É triste ter consciência das babaquices que fazemos ao longo de nossa jornada, mas voltando ao presente tudo o que me resta agora é correr atrás do prejuízo, ou melhor, da Mariana antes que ela embarque. Levei alguns minutos entre a chuveirada e vestir uma roupa limpa, quando voltei a olhar a janela o céu estava enegrecendo e a claridade que se iniciava há instantes atrás, dera lugar a um tom acinzentado. Era o prenúncio da chuva que cairia a qualquer minuto. Olhei novamente o relógio de pulso para me certificar do tempo que ainda me restava e saí imediatamente. Quando alcancei a entrada do prédio senti o vento regelante passear por meu corpo, o que automaticamente me fez apertar o casaco em volta da cintura. Quando pensei em finalmente sair, o porteiro, um senhor já de meia idade, enfiou a cabeça pelo vão da pequena janela da guarita e me chamou.
— Pensando em sair com esse tempo, menina? — ele perguntou assim que me aproximei.
— Na verdade seu Zé, eu preciso muito sair, com ou sem esse tempo — respondi sorrindo e querendo me mandar logo dali.
— Deve de ser algo importante, porque a chuva que vai cair não vai ser fraca não, dona Patrícia! Pegue — disse ele me estendendo um guarda-chuva vermelho — minha esposa sempre me obriga a trazer, agora vai servir pra alguma coisa.
Ele sorriu e eu sorri de volta, peguei o guarda-chuva e saí apressada, andei alguns passos e os pingos que iniciaram fracos, agora já caíam com bem mais intensidade, entrei no primeiro taxi que passou e pedi pra correr para o aeroporto. Àquela hora da manhã o transito já ia se intensificando e a chuva torrencial só agrava o caos que era o transito nessa cidade. Logo, uma viagem que duraria apenas quarenta e cinco minutos já durava uma hora e quinze minutos, agora eu estava atrasada. Resolvi descer do taxi e ir a pé mesmo o restante do caminho. Abri o guarda-chuva, pois o dilúvio não dava trégua, alcancei a esquina de uma pequena alameda entre os grandes prédios, que me levaria direto à avenida principal onde fica o aeroporto. Encarei a rua alagada e pus a andar apressadamente.
Ora corria, ora andava tentando acelerar a corrida, mas a chuva intensa e o rio que lavavam meus pés não permitiam tal feito.
“Droga de chuva”. Praguejei.
Quando finalmente cheguei ao aeroporto, parecia um pinto molhado, e com certeza totalmente descabelada. Olhei para o relógio de pulso e meu coração quase saltou dentro do peito, nervosa e desajeitada tentei imprimir rapidez a minha pequena corrida entre as pessoas, mas meus pés pareciam pesar uma tonelada e deslizavam dentro dos tênis, devido a grande quantidade de água. Os tênis rangiam enquanto eu esbarrava nas pessoas que estavam pelo caminho, não sei se sentia vergonha pela barulheira engraçada que eram meus passos ou por molhar as pessoas em quem esbarrava. Meus pulmões já se mostravam ardidos por conta do esforço, mas assim que a avistei, eu não parei até praticamente cair em cima dela que já caminhava em direção ao portão de embarque, com o impulso ela derrubou a mala e me olhou assustada.
— Mariana! — falei quase sem ar.
— Paty? — ela perguntou desorientada, enquanto eu me jogava contra ela. Eu a apertei em meus braços e ela finalmente me abraçou meio sem jeito, afinal as pessoas ao redor nos olhavam curiosas. Eu a deixei e peguei uma de suas mãos e caminhei com ela até um ponto mais vazio. Tomei-a novamente e a esmaguei com os braços, tamanha era a felicidade que me invadia. Senti-la em meus braços foi como perceber o quanto nossos corpos se pertenciam, o quanto nossas almas eram coalescentes, a capacidade de se fundirem era gritante e foi como se pela primeira vez eu enxergasse tudo isso. Meu coração batia ensandecido por conseguir alcança-la antes que ela embarcasse. Peguei seu rosto entre minhas mãos, e a olhei nos olhos.
— Eu não posso deixar que você vá, não sem antes dizer o que eu já devia ter dito a muito tempo! Eu...
Travei.
— Eu sei — ela disse e eu a olhei com confusão.
— Sabe?!
— Eu sempre soube, só não sabia quando você iria enxergar — ela falava calma e seriamente.
— Agora eu enxergo. Fica!