Eu não andava dormindo muito bem, era comum eu ir dormir nomeio da madrugada, ou acordar no meio da noite e não conseguir mais dormir, ou nem mesmo dormia. Depois de tudo que eu tinha pensado aquela noite, era óbvio pra mim que eu não dormiria naquela casa nem fodendo. Mas o Ícaro dormiu, e dormiu muito bem. Eu levantei devagar, andei até a janela, o céu já estava bonito, com aquelas nuvens que acompanham o nascer do sol, mas ainda era noite. Respirei um pouco aquele ar gostoso dos culpados das noites e caminhei até a porta do quarto. Sim, eu saí.
A luz da cozinha ainda era a única luz acessa, abaixo dela, ainda na falsa claridade, uma Isabella perfeita, do jeito que eu lembrava, com traços que eu até desenharia, já saturados na minha lembrança. Seus olhos encaravam a mesa, eu não consegui mais me mexer, talvez se eu ficasse imóvel, o tempo enfim parasse. Ela notou minha presença, o que a fez olhar pra trás. Vendo uma Alana vestida com a camisa do irmão. Suas pernas se moveram tão rápido que meu coração só voltou a bater quando senti arder o meu rosto. Ela tinha dado uma bofetada na minha cara.
- Você me bateu! – falei.
- Como você teve coragem? O meu irmão, Alana, na minha casa! – a voz dela falhava de uma forma que ela não conseguiu controlar. E seus olhos brilhavam.
- Ele não veio com brasão da tua família!
- Não finge de sonsa! Eu sei que você sabia!
- E o que te importa Isabella?
- Eu ouvi você, seus gemidos. Ouvi você implorando por mais.
- É que na verdade eram dois, mas um acabou ficando preso no bafômetro, quem sabe ele ainda não tá vindo?
Ela avançou em mim. Suas mãos na minha garganta. Ela apertava, mas eu não sentia agonia, só tesão. Se duvidar eu estava até sorrindo. Sempre brincávamos disso na cama. Eu sei que ela estava sentindo ódio de mim, mas eu sentia tanto a falta dela. Meu rosto começou a arder pela falta de circulação de oxigênio e o pouco de ar que eu respirava era calmamente pelo nariz. Uma lágrima escorreu dos seus olhos, depois outra, então ela me soltou.
- Insaciável como sempre – ela disse, secando as lágrimas – como uma puta.
- Isabella, você continua chata como sempre.
- O que é que você quer? Já está aqui, já me fez chorar. Quê mais? Você percebe como você é doente? Já que foi você que terminou nosso namoro.
- Mas foi você que soltou a minha mão, porra. Mentiu pra mim!
Eu estava alterada já, falando alto. Ela me tirava do sério. Ela pegou no meu braço e me arrastou até o quarto dela.
- Eu não vou transar contigo, espertinha – eu falei, e era só uma piada, mas a cara que ela fez foi sensacional, melhor que a piada em si.
Eu podia sentir que faltava mais uma palavra da minha boca pra eu levar outro tapa na cara. E isso quase me excitava.
- Eu menti sobre o quê? Você desapareceu, garota! Sumiu sem deixar nenhum rastro. Eu só tô seguindo a minha vida, Alana. Você acha que não me importo? Acha que eu não senti a tua falta? Foram meses sem sinal de você, meses!
- É, é isso que eu acho! Você mentiu sobre me amar, sobre não acabar com o “nós” que criamos. Foi em você que eu me segurei quando perdi meus pais. E não é que eu só tivesse você, mas durante meses você foi tudo pra mim!
- E esse foi o jeito que você achou pra me falar isso?
- A minha intenção não era vir parar no teu quarto. Eu só queria no máximo te ver.
- Você não pode aparecer na minha vida assim. E voltar a estragar tudo de novo. Você não tem esse direito, esse tempo que passamos longe, foi melhor assim.
- Você já me superou, está melhor sozinha.
Ela me olhou, em silêncio. E pela primeira vez naquela noite eu não senti o chão embaixo dos meus pés.
- Eu tô namorando, Alana. E superar é uma palavra forte demais. Nossa história acabou que se indo, e indo por um caminho sem volta. Eu não sei o que te dizer, eu só tô seguindo.
- Entendi – ela havia me deixado sem fala, sem piadas, sem ação.
- Eu dei todas as chances pra você, e você me deu muitas chances também. Mas a gente se estragou, a gente se perdeu.
- Você não me deve uma explicação sequer. Então poupe os tópicos de power point que fazem você ter paz a noite. Você é suja! E nem toda a baixaria que eu fiz essa noite até estar parada aqui, na tua frente... Não chega perto do que você fez.
Ela me olhava e eu não sabia decifrar nada. Não sabia que olhar era aquele. Não sabia quem era aquela pessoa. Que três meses atrás jurou me amar, jurou não me deixar nunca. Transar com alguém ou ficar paquerando não era nada diante daquilo, em 90 dias ela tinha exatamente alguém dentro da sua vida, que a chamava de SUA. Namorando. Namorando. E superar era uma palavra forte demais. O ódio subiu pelo meu punho fechado, passou pelos meu coração, enfraquecendo-o mais uma vez, e veio parar nos olhos, que ficaram escuros e me deu uma tontura rápida. Mas era só as lágrimas, era minha vez de chorar.
Eu já sabia a saída, da casa dela e de sua vida.
Todo tipo de contato que tivemos naquela noite não passou de violência gratuita. Eu só queria sair dali.
- Alana, eu...
- Vai pro inferno.
Caminhei até o quarto do Ícaro e troquei a roupa dele pela minha. Levei a sandália na mão e saí. Eu nunca olhava pra trás pra saber se ela ficava na janela, me olhando ir embora. Mas um dia ela me disse que sempre fazia isso. E eu não virei, não olhei pra trás mais uma fodida vez.