Pedro Miguel retornou ao presente após relembrar os momentos trágicos de um passado recente. Ele saíra de Fortaleza há seis meses e chegou em Campinas à procura de trabalho para recomeçar sua vida e ser uma pessoa normal em meio a tantos outros. Porém, convivia diariamente com a sensação de ter policiais no seu encalço, em razão do homicídio cometido contra o padrasto. Sua situação era similar à de um clandestino em um país estrangeiro; a prudência aconselhava manter-se longe da polícia e de problemas… Sobressaltou-se ao ouvir o toque do seu celular, identificou o número, era da casa do seu patrão. O homem relatou que acabara de ser interpelado, via telefone, por um cliente da oficina, proprietário de uma Kawasaki azul. Segundo o cliente, ele foi procurado pela polícia e o acusaram do envolvimento em um acidente na rodovia norte. Ele respondeu aos policiais que era impossível, pois há dois dias sua motocicleta estava em uma oficina para conserto.
— Dois investigadores estão indo aí com ele para examinar a moto. — Também estou indo — disse o chefe.
— Desculpe, seu Nilo, mas a moto não está na oficina... Nem eu.
— O QUEEEE!!! VOCÊ ESTÁ DE BRINCADEIRA?
Jessie saiu do banheiro com água escorrendo pelo corpo. Terminou de enrolar a toalha na altura dos seios quando já estava defronte ao rapaz. Ela estava apreensiva com o que ele falaria ao telefone. O rapaz tentava se explicar ao seu patrão.
— Eu saí só pra dar uma volta e ver se a máquina estava legal, mas...
Ele calou ao ver o sinal aflito da moça solicitando que ele parasse de falar. Ela apontou para si mesma com o indicador e balançou o dedo em sinal de não enquanto sussurrava:
— Não fale sobre mim e nem do acidente.
— RESPONDE SEU MOLEQUE, ONDE VOCÊ ESTÁ? — QUEM TE DEU AUTORIZAÇÃO PRA SAIR COM A MOTO? — NEM HABILITAÇÃO VOCÊ TEM, SEU RETARDADO — continuou aos berros o homem.
— É NISSO QUE DÁ A GENTE CONFIAR EM MOLEQUES, EU POSSO SER PRESO POR SUA CAUSA — VEM IMEDIATAMENTE PRA CÁ COM ESSA MOTO.
— Estou indo, seu Nilo.
Pedro Miguel encerrou a ligação e relatou toda a conversa tida com o dono da oficina.
— Vou lá levar a moto antes da polícia chegar, ou será pior. Não posso ser preso.
— Ser preso será o menor dos seus problemas se aqueles caras colocarem as mãos em você — olha o que fizeram comigo, você acha que eles estão preocupados em seguir a lei? — falou Jessie preparando o terreno para explicar que ele entrou de graça em uma grande roubada.
— Desculpe, Pedro, tem gente muito má e poderosa querendo a minha cabeça, e agora também estão atrás de você, já que eles sabem sobre a moto. Eles pensam que sei como levá-los a um dinheiro roubado.
— De que dinheiro você está falando? — que história doida é essa?
— A primeira coisa a fazer é sairmos imediatamente da cidade para continuarmos vivos. Depois eu prometo que lhe conto tudo desde o início — concluiu a jovem.
— Tu é doida, garota? — quem é você, afinal de contas? — e o que mais eu devo saber antes que eu resolva se entro nessa ou se acabo de arrebentar você?
— Infelizmente, Pedro, você já está até o pescoço nessa parada sinistra e corre risco de vida se ficar na cidade. Acredite em mim, é sério. Deixa pra brigar comigo depois que a gente estiver seguro e longe daqui. Por hora só posso dizer que a sua companhia é muito bem-vinda, pois eu preciso da sua ajuda.
Pedro Miguel fez uma cara de quem estava arrependido de ter levantado da cama naquele dia. "Eu sabia que não devia ter voltado, agora me ferrei de vez”, pensou o rapaz. Sua situação já era a de fugitivo, agravou ainda mais só por ter ajudado uma moça em perigo. Acabou entrando em uma trama estranha e que ele ainda não conseguia visualizar o quanto perigoso era.
— Vou pegar somente o necessário, depois daremos o fora — disse Jessie.
Em seguida ela começou a tirar roupas de gavetas e cabides e colocou sobre a cama.
— Minhas roupas estão na oficina, é onde trabalho e moro de favor. Também não tenho verba — Pedro Miguel mostrou os trocados em seu bolso — não dá para uma parada dessa.
— Eu tenho um pouco de dinheiro, dá para nos virarmos por um tempo — disse a moça.
Ela pegou duas camisetas masculinas de bandas de rock em uma gaveta e entregou ao rapaz.
— Estas servem em você, ficam folgadinhas em mim, uso para dormir.
O rapaz vestiu uma preta do AC/DC que fazia referência à música highway to hell.
Sua nova companheira de aventura olhou para ele, torceu o nariz com expressão de dúvida e disse:
— Não seria melhor a do Ramones?
— Prefiro essa que tem tudo a ver com o momento — ele respondeu mal humorado.
Ela terminou de encher duas mochilas com roupas e coisas diversas.
— Vamos para a rodoviária agora, faremos algumas compras quando estivermos bem longe da cidade.
— Antes preciso entregar a moto.
— Você não pode dar mole voltando lá, deixa o bagulho em um estacionamento. Após estarmos seguros e longe o suficiente, você liga pro seu chefe e diz onde deixou.
***
Anteriormente, naquele mesmo dia em um hospital
O motorista do caminhão envolvido no acidente estava em um leito de hospital, acabara de sofrer uma cirurgia em sua perna fraturada. Recebeu a visita de dois homens à paisana que se apresentaram como policiais, queriam um depoimento sobre os detalhes do acidente.
O enfermo começou a contar desde o início, no entanto, os homens estavam interessados em uma pessoa específica e só manifestaram interesse quando o motorista referiu-se a ela, a garota do hotel:
"... tombei o tronco no banco do passageiro, a minha perna esquerda estava presa abaixo do volante. Tentava alcançar o celular caído no piso. Ouvi uma freada, levantei devagar para pedir ajuda, mas demorei muito por causa da dor. Quando consegui olhar pela janela vi uma moto azul arrancando cantando pneus com duas pessoas montadas. A garupa era uma moça com pouca roupa e ferimentos pelo corpo. O piloto estava de capacete e parecia ser um rapaz".
— Você conseguiu ver a placa?
— Sim, mas só porque achei engraçado.
— E qual foi o motivo da graça?
— Era o apelido da minha filha mais nova e o ano em que ela nasceu. Bia 2008.
Os homens agradeceram a colaboração e saíram rapidamente.
— Espera aí gente! — deixa eu contar sobre a explosão e os gritos vindos de dentro do carro. — Os homens nem olharam para trás.
***
Pedro Miguel deixou Jessie na rodoviária de Campinas, depois foi deixar a moto em um estacionamento fora do terminal. Combinaram encontrar-se nos guichês de venda de passagens em vinte minutos.
Ela aproveitou o momento solitário para ir à área dos guarda-volumes e de um locker alugado retirou uma mochila cheia com o seu dinheiro. A golpista não pretendia voltar para Campinas tão cedo. Também não pretendia deixar que seu novo acompanhante soubesse o quanto ela possuía, ainda estava analisando o rapaz.
Quando ele voltou disse que estava tudo resolvido, deixou a motocicleta duas quadras distantes e já havia ligado para o patrão dando o endereço.
— Você só pode estar louco. A gente combinou de ligar só quando estivéssemos distante.
— Eu não podia deixar o seu Nilo encrencado mais tempo por minha causa, foi o único que me ajudou quando precisei.
— Algumas horas a mais não fariam diferença, estamos lidando com gente poderosa e não podemos ficar dando mole — falou a moça tentando conter sua raiva e não ser muito dura com aquele que a salvou.
— Não sou tão lerdo quanto você pensa, eu liguei para a casa dele e deixei recado na secretária eletrônica, só saberá quando voltar da loja… Ou da delegacia.
— Desculpe, não quis dizer isso, mas tenho a sensação de que já deduziram que viemos para a rodoviária. Vamos pegar o primeiro ônibus que estiver saindo — disse ela.
Jessie comprou duas passagens para Uberlândia-MG, embarcaram e o ônibus partiu em seguida.
Seus perseguidores tiveram acesso às imagens gravadas do guichê da rodoviária e também das listas de embarque duas horas depois que o coletivo partiu. A polícia rodoviária Interceptou e reteve o ônibus na região de Ribeirão Preto. Com fotos dos procurados em seus celulares, fotos estas retiradas das câmeras do terminal de Campinas, os homens começaram a vasculhar o interior do veículo. Dois jovens com as características dos procurados estavam nos últimos assentos. Os homens da lei sacaram suas armas ao perceberem a atitude suspeita de ambos: o rapaz de jaqueta escura e boné, a moça de moletom com capuz e óculos escuros, apesar de ser noite. Tentavam esconder seus rostos. Os policiais ordenaram que se levantassem devagar com as mãos para o alto.
Ainda sob a mira das armas eles obedeceram as ordens para removerem capuz, óculos e boné. A menina não conteve o choro, viu seu plano de fuga ir por água abaixo, no entanto, eles não eram os procurados, era um casal de adolescentes que estavam fugindo dos pais para ficarem juntos. Ela tinha traços orientais, ele aparência latina. Os pais dela estavam irredutíveis a respeito dessa união.
Após o oficial responsável certificar-se que os procurados não estavam no coletivo, ele foi informado pelo motorista que um casal desceu em Limeira. Confirmou ser os mesmos após olhar as fotos.
Logo após descerem em Limeira, Jessie e Pedro Miguel pegaram um táxi para Piracicaba, lá ela fretou outro carro de praça e foram rumo à cidade de São Paulo. Por mais profissionais que fossem os caras em sua captura, a jovem acreditava que havia dado um perdido neles.
Primeira noite do jovem casal em São Paulo. A garota, que já conhecia a cidade, aconselhou que ficassem provisoriamente em um motel simples na periferia da zona norte, pois ninguém os localizaria em estabelecimentos daquele tipo.
Ela saiu do banho vestida com uma camisola de malha leve e curta, disse que estava exausta, com dores e precisava dormir um pouco. O quarto simples só tinha uma cama de casal, Pedro Miguel disse que dormiria no chão, ela insistiu para dormirem juntos.
— Imagino que assim como eu, você queira apenas dormir e descansar o corpo depois do dia punk que tivemos. — Só peço que não esbarre em mim, pois além de ferida, estou toda dolorida.
Ele demorou a dormir, os pensamentos fluíam a milhão em sua cabeça e ainda tinha aquele corpo sedutor de odor tão agradável a centímetros dele e mexendo com sua libido.
Acidente Abafado
O empresário, por intermédio dos seus contatos, não deixou o assunto do carro acidentado ser divulgado na íntegra, entrou para as estatísticas como mais um acidente nas estradas brasileiras. Os corpos completamente carbonizados não foram identificados, nem o proprietário do carro. Os restos da lataria foram jogados no fundo de uma represa e os corpos enterrados como indigentes.
Ninguém sabia do paradeiro da garota ou do rapaz, a única certeza era a de que eles não poderiam continuar vivos por muito mais tempo.
Continua…