Nosso Amor, Meu Destino (Kim) - Cap. 3

Um conto erótico de GuiiDuque
Categoria: Homossexual
Contém 5622 palavras
Data: 26/10/2019 01:06:34

~ continuando ~

-

M: Raphael! Nunca mais te vi por aqui. Já estou sabendo das novidades. Agora que vai sair daqui pode finalmente dar um rumo na sua vida. Colocá-la nos eixos. Vai ser bom pra você.

R: Obrigado, tia. Kim... eu vou indo. Passa lá em casa.

Fiquei onde estava, observando-o sair. A sensação do beijo ainda estava em mim, era como se meus lábios formigassem. Eu estava tão feliz. Não vi o tapa chegando. Meu rosto foi lançado com força para o lado e eu tapei a bochecha, que ardia, olhando assustado para minha mãe.

M: Você acha que eu não vi aquela pouca vergonha que estava acontecendo aqui? Dentro da minha própria casa, meu Deus! Você não presta mesmo. Mas agora não vai mais poder fazer mal ao seu primo. Ele está indo embora e é pra sempre. Deus sabe o que faz. Você não vai sair dessa casa até que ele vá embora. Não vou deixar você tentá-lo novamente seu... demônio. É isso que você é, um demônio.

Eu estava tão chocado com aquelas palavras que nem reagi quando ela me agarrou pelo braço e me levou pro meu quarto, me jogando lá dentro, trancando a porta por fora. Pronto. Agora eu não poderia mais ver o Rapha. Ele ia embora e eu nunca teria a chance de me despedir. Não quis parar pra pensar nas palavras que minha mãe proferira. Eu teria todo o dia seguinte pra pensar naquilo, pois tinha certeza que ela falava sério sobre não me deixar sair. Me permiti sentar na cama e relembrar dos beijos, que mais eram selinhos, que acabáramos de trocar. Aquela noite, dormi acalentado por essa lembrança.

Passei o dia seguinte trancado no quarto, minha mãe só entrava para me entregar comida. Sempre que entrava, ela me passava um sermão, dizendo o quanto eu era prejudicial ao meu primo. Que eu era um demônio que estava ali pra tentar ele e atrapalhar seu futuro. Acho que fui me convencendo de que ele ficaria melhor sem mim. O telefone tocou sem parar. Ouvi sua voz na frente de casa, perguntando por mim a minha mãe várias vezes. Algumas vezes chegou a gritar meu nome, esperando que eu aparecesse. Eu não sei bem o que se passou na minha cabeça durante aquelas horas, acho que me deixei levar pela tristeza de ele estar indo embora, então acabei dando ouvidos demais a minha mãe.

Por sorte, no outro dia, enquanto escutava sua voz e de seus pais na rua, enquanto colocavam as coisas no carro, minha ficha caiu. O que eu estava fazendo? Deixar que a pessoa mais importante da minha vida fosse embora sem nem ao menos me despedir era burrice.

Acho que minha mãe nunca pensou na possibilidade de eu pular a janela. Meu quarto era no segundo andar da casa e eu sempre fui meio medroso em relação a alturas. Mas naquela hora eu não queria saber. Dei um jeito de me segurar na calha do telhado da varanda para que a distancia entre eu e o chão ficasse menor e pulei. Caí de mau jeito, me arranhei todo, mas também não tive tempo de me recuperar, pois escutei o carro dos meus tios dando a partida. Corri até a rua, e cheguei a tempo de ver Rapha abrindo a porta do carro. Gritei seu nome. Ele parecia surpreso e ao mesmo tempo aliviado de me ver ali. Veio até mim e me abraçou com força.

R: Pensei que não ia mais te ver. O que aconteceu, porque você tá todo arranhado?

K: Desculpe... não foi nada. Caí de mau jeito. Eu vim, não vim?

R: Tem certeza que está bem? Não é melhor entrarmos pra limpar esses machucados? Kim... O que eu faço com você? Sempre arrumando um jeitinho de se machucar... - Ele falava tudo rapidamente, estava tão nervoso com aquela despedida quanto eu. - Queria tanto ter conversado com você sobre... A gente vai se falar ainda. Não vai dar pra ficar ligando sempre, mas eu vou escrever.

Ri do seu jeito atrapalhado de se referir ao beijo e me aproximei. Só de lembrar posso sentir seus braços me apertando aquela ultima vez. Seu calor tão familiar. A rigidez dos músculos, a pele quente. E aquele perfume... Eu poderia reconhecê-lo em qualquer lugar, de olhos fechados. A mistura com o cheiro de sua pele deixava o aroma único e inconfundível para mim.

Ouvimos minha tia chamando, dizendo que ele ia perder o avião. Rapha me abraçou com mais força ainda e encostou os lábios em minha orelha, sussurrando que me amava. Se afastou um pouquinho, permitindo que nossos olhares se encontrassem e tanta coisa foi dita. Sem ao menos dizermos uma palavra, promessas foram trocadas. Foi nos olhos dele que vi a imagem da criança que eu nunca mais seria. Respondi, fracamente, que também o amava. Ele sorriu aquele sorriso perfeito dele e fazendo um ultimo carinho nos meus cabelos virou-se e entrou no carro.

Rapha não olhou pra trás nem uma vez. Acho que não queria me ver chorar e muito menos que eu o visse chorar. Foi tão difícil...

Naquela noite eu estava deitado no sofá, olhando para a TV, sem realmente ver o que estava passando. Meu rosto estava inchado de tanto chorar e meu peito doía demais. Eu já estava antecipando toda a dor da saudade que sentiria de Rapha. O telefone tocou, me fazendo pular do sofá com o susto.

K: Alô?

R: Kim!

K: Rapha! - Como não reconhecer aquela voz? - Chegou bem?

R: Sim. Ah, Kim... O apartamento está tão vazio. Estou achando que vai ser a maior barra me acostumar a morar sozinho. - Ouvi seu suspiro entrecortado. Ele estava se contendo pra não chorar. - Queria que você estivesse aqui...

K: Eu vou estar com você logo. Você vem me buscar, lembra? - Tanta ingenuidade pensar que 6 anos passariam rápido.

M: Kim! Com quem você está falando? Que história é essa de virem te buscar?

K: Não é nada! Rapha, eu tenho que desligar. Me escreve, por favor.

Não dei tempo para que se despedisse. Bati o telefone quando vi minha mãe vindo em minha direção. Ela agarrou meu braço, começando a me passar mais um de seus sermões sobre eu precisar de Deus, dizendo que eu tinha que deixar meu primo em paz. A primeira parte do que ela falou eu ouvi. Depois apenas me desliguei. Não ouvia, não via, não sentia. Me concentrei nas poucas palavras que ele me dissera. “Queria que você estivesse aqui...” Era tudo que eu mais queria também. Decidi naquele momento, enquanto minha mãe cravava as unhas no meu braço de raiva por eu não estar dando atenção a seus gritos, que eu viveria para isso: me preparar pro dia que ele viesse me buscar.

Algum tempo depois chegou a primeira carta de Rapha. Nela, ele me contava como estavam as coisas por lá, como fora sua primeira semana na faculdade, que ele passara pelo trote e teve de pedir dinheiro nas ruas. Ri dos casos que ele contou, chorei quando ele disse que sentia tanto a minha falta que doía e sorri quando ele disse mais uma vez que viria me buscar um dia. Junto ele mandou uma foto do trote. Na foto, Rapha estava coberto de tintas de várias cores, o nome da faculdade pintado no peito. Tinham raspado seus cabelos! Aquilo me chateou um pouco. Apesar de ele sempre manter os cabelos curtos, eu gostava deles, eram macios. Mas tudo bem... cabelo crescia de novo.

Vi a sombra de minha mãe logo atrás de mim e consegui correr pra longe, mas ela alcançou a carta e tirou-a de minhas mãos. Escondi a foto dentro da bermuda. Vi seus olhos correrem rapidamente de um lado a outro da carta, lendo cada palavra. Sua expressão ficava cada vez mais carregada, até que ela parou, olhou pra mim e apenas saiu do quarto com a carta nas mãos. Fui atrás dela, pedindo que me devolvesse o papel. Rapha mandara pra mim. Ela não tinha o direito. Mas é claro que ela não ouviria. Vi com desespero ela rasgar a carta em muitos pedacinhos e colocar tudo no grande cinzeiro da mesinha da sala. O barulho do fósforo sendo riscado me causou um arrepio, e então estava feito. Observei o papel escurecer e enrugar, até não sobrar nada além de cinzas e o cheiro de queimado espalhado pela casa. Ela mantinha um enorme sorriso no rosto, o que me fez, pela primeira vez, ter vontade de revidar tudo o que ela me fizera. Mas então me lembrei da foto que ainda estava comigo. Corri para o meu quarto, me trancando lá e procurei um lugar para escondê-la. Achei no meu armário um antigo estojo de madeira, cheio de lápis de cor. Coloquei a foto embaixo de todos os lápis e guardei o estojo no fundo do armário, sob alguns livros e roupas. Aquilo ela nunca tomaria de mim.

A maioria das outras cartas que ele mandou eu não cheguei nem a ver. Tudo o que sobrava delas eram suas cinzas e o cheiro forte na casa. Rapha me ligou um tempo depois, contei a ele o que havia acontecido e ele tentou me acalmar, dizendo que não deixaria de mandar cartas e que eventualmente eu teria sorte de pegá-las antes de minha mãe. Mas mesmo que isso não acontecesse, disse que me ligaria no final do mês para dizer tudo que escrevera pessoalmente. Aquilo me deixou mais tranquilo, mas não diminuía a dor de chegar em casa e encontrar as cinzas do que foram as cartas da pessoa que eu mais amava no mundo.

Comecei a dar um jeito de chegar mais cedo em casa para pegar a correspondência enquanto ela estava na feira, ou na igreja. Matava o ultimo horário de aula, pulava o muro da escola e corria pra casa. Tive sucesso uma vez, mas ela percebeu. Gritou feito doida pela casa, tirando tudo do lugar a procura da carta. Fiquei com medo que ela chegasse à foto, por isso resolvi ceder e entregar a carta, que ela destruiu com prazer. Eu chegaria mais cedo todos os dias e quando houvesse carta do Rapha, eu leria e guardaria as palavras pra sempre em minha memória.

Mas não foi bem assim que aconteceu. Minha mãe conversou com a diretora da escola sobre eu estar fugindo da aula. Os inspetores do colégio passaram a ficar de olho em mim e não consegui mais fugir.

Cerca de seis meses depois da partida de Rapha, a situação estava insuportável. Comecei a discutir com minha mãe e revidar seus comentários maldosos. Quando Rapha ligava e eu conseguia atender, não nos falávamos nem por 5 minutos. Ela passou a me vigiar o dia inteiro, parecia que estava por toda a parte. Só me lembro que ela sempre aparecia nos momentos mais inoportunos. Teve um dia que minha tia apareceu lá em casa e nos pegou numa dessas situações. Eu gritava com minha mãe, exigindo que ela me devolvesse uma carta que acabara de chegar e ela ria de mim e me chamava de demônio. Não preciso nem dizer que minha tia ficou horrorizada. Eu estava irreconhecível. Naquele momento não era nada da criança sorridente e inocente que Rapha deixara. Ela conversou a portas fechadas com minha mãe aquele dia por um bom tempo. Depois disso minha tia passou a ir até em casa com mais frequência, para se certificar que estávamos bem. Ela ainda presenciou mais algumas brigas que tive com minha mãe. Minha vida estava de cabeça pra baixo.

A situação apenas piorou pra mim quando, após 9 meses longe de Rapha, suas cartas pararam de chegar e seus telefonemas foram ficando escassos, até por fim não acontecerem mais. Não ter notícias dele, pra mim, era mil vezes pior do que enfrentar minha mãe todos os dias. Recorri, então, a única pessoa que poderia me falar sobre ele, minha tia. Cheguei em sua casa preocupado que algo tivesse acontecido com ele, mas ela logo me acalmou, dizendo que ele estava bem. Explicou que Rapha arrumara um emprego e que estava sendo muito puxado estudar pela manhã e trabalhar a noite, que ele estava cansado demais. Minha tia disse que Rapha sempre perguntava por mim quando se falavam e que eu não precisava me preocupar com ele.

Já fazia um ano que ele se fora, e 3 meses que não entrava em contato comigo. Acho que devo explicar que na época eu não tinha contato com a internet. Minha mãe nunca permitiria que tivéssemos um computador em casa, dizia que internet era coisa do diabo. Eu começava a me convencer que Rapha se esquecera de mim.

Quanto mais tempo eu passava sem ter notícias do Rapha, mais calma ficava a minha mãe. Ela parou de me agredir, ainda que as vezes me lembrasse que pra ela eu era um demônio e que eu precisava de Deus. Isso já entrava por um ouvido e saía pelo outro. Me fechei num mundo particular, onde revivia todas as lembranças que tinha do Rapha. Quando não estava sonhando com ele, estava estudando ou nadando. Eu tinha muitos colegas na escola, mas nenhum amigo de verdade, por isso minhas tardes eram sempre muito solitárias.

Acho que vale a pena dizer que a última vez que minha mãe tentou me bater foi quando eu estava com 15 anos. Eu me tornara um garoto muito sério, um dos melhores alunas da classe e um dos melhores nadadores da escola. Já estava bem mais alto, e meus ombros tinham alargado um pouco por causa da natação. Aquele dia eu saí de casa com minha mãe para ir a feira. Eu não conversava com ela, mas achava que já que era ela quem cozinhava e, mesmo que da pior forma possível, me dava uma casa, eu deveria ao menos ajudá-la a carregar as compras e fazer o serviço mais pesado. Ficava parado ao seu lado, esperando que escolhesse as frutas e legumes e me passasse as sacolas.

Só que aquele dia, uma coisa nova pra mim aconteceu. Passou por nós um homem que devia estar nos seus 40 anos. Reparei que estava me olhando e o encarei de volta. Ele estava sem camisa, tinha um físico bonito, ombros largos, peito forte, barriga trabalhada. Sim, eu estava secando o cara. Ao perceber que eu correspondia seu olhar, não da mesma forma maliciosa, mas sim de maneira curiosa, ele sorriu e deu uma piscada pra mim. Achei estranho como aquele pequeno gesto me afetou. Senti meu rosto queimar e desviei rapidamente meus olhos. Meu coração batia descompassado.

Não tive tempo de olhá-lo mais uma vez, porque minha mãe já agarrara meu braço e me puxava de volta para casa, dizendo que já chegava de compras por hoje. Alheio a tudo que se passava no caminho até em casa, fiquei pensando no ocorrido, em como eu achara aquela simples piscadinha um gesto tão sensual. Queria ter tido a chance de saber o que aquele homem queria, ir até ele e... E o que? Rapha me veio à cabeça quando cogitei a ideia de me aproximar de outro homem. Quase três anos sem que ele entrasse em contato e eu ainda pensava nele a cada decisão que tinha de tomar, cada gesto que tinha de fazer.

Assim que entramos em casa minha mãe começou a gritar, transtornada com há tempos não a via. Dizia que eu “estava fazendo aquilo de novo”, que eu não prestava, me chamou de todos os nomes ofensivos que conseguiu se lembrar naquele momento. Eu entendia que aquela reação era por causa dos olhares trocados com o homem na feira, mas já deixara de me preocupar com o que ela achava de mim há anos. Virei-lhe as costas e segui para o meu quarto, deixando que gritasse a vontade. Ela alcançou a vassoura e veio atrás de mim. Antes que pudesse me acertar, no entanto, segurei o cabo da vassoura e puxei com força em minha direção, arrancando-a de suas mãos.

K: Eu não sou mais criança mãe. Da próxima vez que encostar a mão em mim, vou revidar em dobro.

Eu tinha certeza de que seria incapaz de fazer isso, minha intenção era apenas de assustá-la. Fui bem sucedido nisso, pois ela me olhou horrorizada, saindo de perto rapidamente, dizendo que eu não tinha respeito por ninguém, nem pela minha própria mãe.

Os dois anos seguintes passaram diante dos meus olhos como se eu assistisse a minha própria vida sentado na primeira fila do cinema. Eu apenas estudava na escola, fazia natação e estudava em casa. Conversei com meu pai sobre fazer um curso de inglês e ele concordou, já que eu estava entrando no último ano do ensino médio e seria bom para o vestibular. Preenchia meu dia com o máximo de atividades possíveis. Era raro me ver sorrindo sinceramente. Eu procurava ser simpático com as pessoas que estudavam comigo, mas acho que não conseguia ser muito convincente. A única pessoa que ainda se preocupava um pouco comigo era minha tia, que sempre passava lá em casa para saber como eu estava indo. Ela parecia ficar desconfortável toda vez que eu perguntava sobre o Rapha. Eventualmente desisti. Aquele ano, no entanto, ela me disse que estava se mudando para a mesma cidade em que Rapha estava. Ao se despedir, me entregou um papel com o telefone e o endereço de sua nova casa, dizendo que eu não deveria hesitar em ligar caso precisasse.

O terceiro ano do ensino médio começou e eu não fazia ideia do quanto as coisas estavam pra mudar...

Primeiro dia de aula, aquela coisa de sempre. Pessoas falando com animação excessiva, contando as novidades das férias. Sempre os mesmo rostos e basicamente as mesma histórias. Entrei no colégio quieto, cumprimentando os conhecidos com um aceno de cabeça. Fui direto para a sala de aula e fiquei rabiscando em meu caderno até que o sinal tocasse e todos estivessem dentro de sala, respondendo à chamada. Eu já sabia os nomes daquela lista de cor, por isso me surpreendi quando o professor chamou alguém de quem nunca ouvira falar, um tal de Higor. E mais surpreso ainda fiquei quando a resposta veio da pessoa sentada logo ao meu lado. Como eu não notara que ele havia sentado ali? Observei o tal de Higor pelo canto dos olhos, mas antes que pudesse realmente ver como ele era, seu rosto se virou em minha direção e seus lábios se abriram em um sorriso simpático. Assustado por ter sido pego em flagrante, apenas desviei os olhos e voltei a rabiscar no caderno, um pouco envergonhado por ele ter visto que eu o estava espiando.

Quando o sinal do recreio tocou, um grupo de pessoas se aproximou do novato, a grande maioria sendo mulher. Eu apenas me levantei e fui para o pátio, ali estava tumultuado demais para mim. Sentei-me em um canto das arquibancadas e fiquei observando o jogo de futebol, quando fui arrastado da realidade por uma memória antiga. [i]Rapha jogava futebol ali naquela mesma quadra, e eu, pequeno, gritava seu nome, torcendo entusiasmado. Ao fazer o último gol da partida e me ver ali pulando de felicidade, ele corre em minha direção e me abraça, depositando um beijo em minha bochecha. Reclamo por ele estar suado, mas ele apenas ri e me diz: esse gol foi pra você, priminho.[/i]

– Oi.

Levo um susto ao perceber que não estava mais sozinho. Aliás, eu estava levando susto demais aquele dia. Reviro os olhos ao constatar que a razão de todos eles estava novamente sentada ao meu lado. Agora, frente a frente, pude reparar melhor nele. Pele clara, coberta por sardas, cabelos pretos cacheados, magro, tinha mais ou menos o mesmo porte que eu, com os ombros um pouco mais largos, talvez. Mas o que me chamou atenção foram seus olhos azuis acinzentados que pareciam sorrir, acompanhando o movimento de sua boca. Ele espera que eu termine de avaliá-lo, dessa vez sem constrangimento, e então fala comigo novamente.

H: Oi. Eu sou o Higor.

K: É, eu sei...

Meu desinteresse parece diverti-lo, pois ele apenas ri e tenta puxar assunto novamente.

H:Seu nome é Kim, né?

K: Sim... Como sabe?

H: Bom... tirando o fato de você ter respondido a esse nome na hora da chamada, eu perguntei pro pessoal que estava conversando comigo agora a pouco. Também não é um nome que passe despercebido. Kim... nunca tinha escutado. É diferente... Bonito.

Fiquei constrangido, nunca soube bem como reagir a elogios ao meu nome. O sinal bate, me tirando da situação desconfortável e dando uma ultima olhada para Higor, me levanto e vou em direção a sala de aula. Pelo canto do olho vejo que ele também se levanta e me acompanha.

Ao fim das aulas, arrumei todo o meu material e me levantei com calma, andando sem pressa, afinal não ficava nem um pouco animado em ir pra casa. Eu nunca fui muito atento ao que está se passando ao meu redor. Até hoje ando na rua com a cabeça em outro mundo, penso em tudo, menos no caminho que estou seguindo. Muitas vezes eu me achava em frente a minha casa sem nem ao menos lembrar como fora o percurso. Aquele dia não seria diferente se, aproximadamente duas quadras depois da escola, eu não me desse conta de alguém andando praticamente ao meu lado. Lá estava ele mais uma vez, sorrindo ao ver que eu finalmente reparara em sua presença.

H: Parece que voltamos pelo mesmo caminho.

K: É, parece...

H: Se importa se eu te fizer companhia?

K: Você já está aqui, não é?

H: Ótimo.

O sorriso daquele garoto começava a me incomodar. Como ele podia ser tão simpático com alguém que nem conhecia? Acho que eu pensava assim por ter crescido escutando que em cada esquina havia um perigo. Coisas da minha mãe...

Ele acelerou um pouco o passo para ficar ao me lado, comentando sobre todas as pessoas que conhecera na escola, sobre as aulas e a cidade, que era nova pra ele. Enquanto isso, eu apenas respondia com acenos de cabeça ou levantar de ombros.

H: Você não é muito de falar, né? O pessoal da sala disse que você é assim há anos. Mas não tem problema, acho até que a gente combina.

Olhei para ele com os olhos arregalados e as sobrancelhas erguidas. De onde ele tirara aquilo? Higor riu e se explicou.

H: É que, apesar de falar muito pouco, você tem cara de ser bom ouvinte. E já que eu gosto muito de falar, formamos uma dupla e tanto.

K: Se é o que você acha... Minha casa é aqui.

H: Certo. A minha fica a uns quatro quarteirões daqui, não é longe. A gente se vê amanhã, então. E, Kim... Gostei de você. É bom ter alguém pra conversar.

E com o tal do sorriso que nunca deixava seus lábios ele se foi. Fiquei um tempinho parado em frente de casa, olhando ele se afastar. Ele ainda olhou para trás e me deu um tchauzinho, fazendo com que eu corasse por ter sido pego observando-o novamente.

Depois de entrar em casa e me trancar em meu quarto, me permiti sorrir de leve. Que cara estranho. A sala inteira interessada em conhecê-lo e ele resolve grudar em mim. Era obvio que ele gostava de falar, mas não era um tagarela. Era até agradável...

Almocei, fiz meus deveres e me arrumei para a natação pensando que talvez fosse interessante ter uma pessoa nova por perto, ainda mais alguém que não se importava com o fato de eu falar pouco, já que ocupava todo o tempo com a sua própria falação.

No dia seguinte, às 6:40, quando estou saindo de casa para ir pra escola, dou de cara com Higor parado em frente ao portão da minha casa.

H: Já que tenho mesmo que passar por aqui pra chegar no colégio, pensei em te esperar pra que fossemos juntos. Pode ser?

Concordei com a cabeça e começamos a caminhar. Eu, como sempre, estava perdido no mundo da lua. Acho que Higor não aguentava ficar calado por muito tempo, porque foi logo puxando assunto.

H: Então... Como foi seu dia ontem? Fez algo de bom?

K: Normal, só fui nadar.

H: Você nada? Que legal! Onde?

K: Na escola...

H: Ah... O meu dia foi bem interessante, sabe? Saí com minha mãe pra conhecer melhor a cidade. Aquela praça que tem no Centro é bem bonita...

E assim ele foi falando durante todo o percurso e enquanto entrávamos na escola, nos acomodávamos em nossos lugares e esperávamos o sinal bater. Higor me contou que se mudara há alguns dias porque seu pai fora transferido pra cá a trabalho. Disse que gostava muito da escola antiga, e já sentia falta dos amigos, mas que estava começando a gostar muito daqui. Sempre que comentava que estava gostando da cidade (o que ele dizia várias vezes), ele me olhava de um jeito diferente, e sorria. Reparei que quando ele ria verdadeiramente, uma dobrinha se formava na base de seu nariz, escondendo algumas sardinhas. Ele também contava casos sobre ele e um amigo, um tal de Thiago, que dizia ser seu melhor amigo. Mas sempre que falava dele mostrava um brilho diferente em seus olhos, um tanto triste, ou seria só saudade?

Aquele dia, na hora do recreio, ele me chamou para ficar junto da turma, conversando. Como eu me recusei, dizendo que ficaria na sala, ele resolveu ficar comigo. Contou mais sobre sua vida, me perguntando sobre a minha de vez em quando, nunca se importando com minhas respostas evasivas, parecendo satisfeito por eu ao menos responder. Voltamos para casa juntos também, e eu tinha de admitir, era muito bom ter companhia novamente.

H: Pronto. Está entregue!

K: Ei! Eu não sou uma criança que precisa ser acompanhada até em casa e entregue sã e salva pra mamãe!

Higor riu tanto da minha indignação que acabou tendo que se apoiar no muro lá de casa pra não cair no chão.

H: Mas parece uma, com esse biquinho e esse jeitinho enfezado! Mas não importa. Fico feliz que tenha dito uma frase que não fosse composta por no máximo três palavras.

Senti meu rosto queimar, o que fez com que ele risse mais e se aproximasse de mim, me abraçando e falando no meu ouvido.

H: Não precisa ficar com vergonha. Eu adorei. Espero que confie cada vez mais em mim e fale cada vez mais também. - Me soltou. - Aproveita o resto do dia, Kim. A gente se vê amanhã. Passo aqui pra te buscar são e salvo com a mamãe.

Acabei rindo do seu jeito debochado e dando um tchauzinho com a mão entrei em casa.

Talvez vocês estejam curiosos sobre como ficaram as coisas com a minha mãe. Bom, eu chegava em casa todo dia e ela estava preparando ou já tinha preparado o almoço. Como fui ensinado a sempre fazer as refeições na mesa, comíamos juntos, mas cada um olhando para o seu prato. Era nesses momentos que trocávamos uma palavra ou outra sobre ela ter que fazer as compras da semana ou sobre o pai ter falado algo comigo sobre a pensão. Depois eu subia para o meu quarto, onde passava o resto do dia, fosse estudando, lendo, ouvindo música ou vendo TV. Na hora do jantar era a mesma coisa. Deu pra perceber o porque de eu ter dificuldades em manter uma conversa com Higor, não é?

Quarta-feira chegou e lá estava ele na frente da minha casa de manhã, dizendo que viera me buscar. Foi assim no dia seguinte e no outro também. Eu começava a me soltar e falar mais, rindo de suas brincadeiras e, as vezes, até brincando junto. A única coisa que não gostava era quando ele me pressionava para ficar junto do resto da turma dos intervalos. Eu simplesmente não me sentia bem lá. Por isso ele começou a dividir seu tempo, passava metade do recreio comigo na sala ou sentado no canto da quadra, e a outra metade com a turma. Eu ficava observando-o nessas ocasiões. Já estava tão enturmado, todos gostavam dele. Quando estavam numa discussão acalorada e ele resolvia dar a sua opinião, todos se calavam pra escutar. Ele tinha a capacidade de fazer qualquer um rir e não se juntou a nenhum dos grupinhos formados na sala, falava com todos igualmente. Higor só dava atenção especial pra mim.

Comecei a me incomodar com o fato de ter que ficar sozinho durante parte do recreio. Acho que já tinha me acostumado a sua animação radiante sempre perto de mim, suprindo a minha falta da mesma. Foi por isso que, naquela sexta-feira, quando Higor veio me perguntar mais uma vez se eu queria ficar com eles (ele não desistia fácil), eu aceitei. Até ele ficou assustado ao me ver levantar e ir em direção ao grupo, do outro lado da arquibancada, mas logo sorriu largamente, passando um braço por meus ombros e me acompanhando até lá.

H: Pessoal, olha quem veio ficar com a gente hoje!

Vi muitas caras de espanto, mas a maioria era de desinteresse mesmo. Sentei ao lado do Higor e esperei. Um silêncio enorme tomava conta das pessoas ali. Fiquei constrangido, senti vontade se sair correndo de lá, mas Higor logo puxou assunto e o clima ficou mais tranquilo, todos começaram a participar. Todos, menos eu. Senti uma grande dificuldade de me incluir na conversa. Eles falavam sobre filmes, e eu nem lembrava qual fora a ultima vez que eu vira um. Cheguei a conclusão que minha vida parara depois que Rapha foi embora. E assim me transportei para mais lembranças, ignorando o grande esforço que Higor fazia para me incluir na conversa. Aquilo não era pra mim... eu não sabia mais conversar, eu nem tinha sobre o que falar. A animação com que as pessoas contavam suas experiências me incomodava, eu estava me sentindo sufocado, só ouvia barulho, não entendia mais as palavras. Acabei me levantando bruscamente, sob os olhares curiosos de todos e o levemente entristecido de Higor, que já havia percebido minhas intenções. Sem dizer uma palavra, me retirei, ouvindo o grupo explodir em murmúrios que tinha certeza serem sobre mim.

Me escondi no banheiro e só voltei para a sala depois que o professor já estava lá, para não ter que dar explicações a Higor. Seu olhar era questionador, mas eu fingi que não vi e olhei para frente durante o resto da aula. Assim que o sinal tocou joguei minhas coisas na mochila e saí da sala sem olhar para trás. Ainda ouvi sua voz me chamando, mas apenas ignorei e andei o mais depressa que consegui, tomando outro caminho para chegar em casa. Não queria ter que encará-lo e ver nos seus olhos a decepção pela minha incapacidade de me comunicar, que todo o seu esforço nunca seria o suficiente, eu era um caso perdido.

Acho que nunca nadei com tanta fúria quanto naquele dia. Eu não pensava nos movimentos, nas raias ou nas bordas, nem sei quantas voltas dei, quantos metros nadei. Sinceramente, eu queria sumir. Algum tempo depois, já começando a ficar cansado, chegava a conclusão que sumir não era uma possibilidade, portanto eu tinha que escolher entre me isolar novamente do mundo ou dar uma chance ao Higor e me adaptar ao seu mundo aos poucos, levasse o tempo que levasse. Resolvi que a segunda opção era a mais vantajosa. Saí da piscina decidido e não pude conter o sorriso ao ver Higor sentado na arquibancada, me observando. Retirei a touca e me enrolei na toalha que deixara sobre um banco. Nunca gostei de usar óculos para nadar e, como já começava a escurecer, as luzes dos postes ao redor da piscina foram acesas, me fazendo ver arco-íris ao redor de cada lâmpada. Nunca soube bem o porque disso, talvez por causa do contato dos olhos com o cloro.

Me distraí por alguns segundos observando as cores em volta da lâmpada logo acima da cabeça de Higor, por isso não estava preparado para a atitude dele quando me aproximei.

H: Não acredito que fez aquilo comigo, Kim! Passei os últimos dias te defendendo sempre que alguém falava qualquer coisinha de você, aí você vai e me deixa falando sozinho na frente de todo mundo! Qual é o seu problema? É por causa do tal do seu primo? Todo mundo diz que você ficou assim depois que ele foi embora, mas isso já faz anos e...

Não deixei que ele terminasse. Uma raiva tão grande me invadiu por ele estar falando do Raphael, estar mexendo em feridas que ainda doíam tanto. Vi tudo vermelho, como dizem. Nunca fui de bater, aliás nunca soube bater, então espalmei as duas mãos em seu peito e o empurrei com a maior força que consegui. Pego de surpresa, Higor caiu sentado, olhos arregalados para mim.

K: Nunca mais toque no nome do Raphael!!!

Gritei com toda a força que consegui, com o rosto já coberto por lágrimas. Voltei até a piscina, agarrando minha mochila e corri para casa. Perdi a toalha, cortei o pé em alguma parte do caminho, mas não estava me importando com aquilo. Entrei em casa e me tranquei em meu quarto, escancarando as portas do armário e jogando tudo que estava em meu caminho para fora dele. Lá estava, o estojo de madeira. Joguei todos os lápis de cor no chão e peguei a foto, olhando-a uma última vez antes de rasgá-la em tantos pedaços quanto consegui. Era tudo culpa dele...

-

~ olá, pessu! boa noite, obrigado pelos comentáriosss, fico feliz que estejam gostando. realmente é uma história muito linda :D ~

Siga a Casa dos Contos no Instagram!

Este conto recebeu 0 estrelas.
Incentive GuiiDuque a escrever mais dando estrelas.
Cadastre-se gratuitamente ou faça login para prestigiar e incentivar o autor dando estrelas.

Comentários

Foto de perfil genérica

Que história forte, meu Deus. Espero que o Kim supere todos esses problemas e aceite o Higor em sua vida. Sobre o Raphael, pode ser que esse sumiço dele seja intencional para proteger o seu primo, mas achei irresponsável da parte dele deixar o Kim sem ao menos UMA notícia. Espero que ele termine a história com o Higor.

0 0
Este comentário não está disponível
Foto de perfil genérica

Tanto dor para se levar só. Já que alguém nao pode suportar isso solzinho. Amigos servem para isso. O conto está maravilhoso. Continua logo por favor.

0 0
Foto de perfil genérica

MEU SANTO DOS SOFRIMENTOS. AJUDAI ESSE GAROTO. NÃO PODE SER POSSÍVEL AGUENTAR UMA MÃE DESSE JEITO. SE A MÃE DIZ QUE ELE É FILHO DO DEMÔNIO, ENTÃO ELA É O DEMÔNIO. E NEM SE DEU CONTA DISSO. AINDA BEM QUE VC NÃO ACEITA MAIS OS CASTIGOS DE SUA ENDIABRADA MÃE. MAS NÃO CREIO QUE RAPHA ESTEJA ASSIM TÃO SEM TEMPO QUE NÃO POSSA TE ESCREVER. COM CERTEZA ELE DEVE ESTAR NAMORANDO SÉRIO POR LÁ. CREIO QUE VC AI SE DECEPCIONAR COM RAPHA. MAS AGORA TEM HIGOR NA PARADA. VC PRECISA DAR UMA CHANCE A ELE. VEREMOS.

0 0