Estirada na calçada em profundo estado de inconsciência sua mente tentava repassar os últimos acontecimentos. O estrondo da arma de fogo ainda ecoava em seus ouvidos, a dor da queimadura em seu peito remetia ao inferno. “Como ele ficou sabendo?” Questionava-se confusa enquanto sofria da falência de suas atividades físicas aspirando o ar com dificuldade e o expirando como se fosse o suspiro derradeiro.
Voltemos alguns meses, no dia em que Paula conheceu o Gilmar ao trombar com ele. Trombaram os seus carrinhos no supermercado. Depois dos pedidos de desculpas o papo continuou nos corredores, na fila do caixa, durante a carona que ela ganhou — economizando assim o Uber — e também no dia seguinte, uma vez que ela aceitou o convite para jantar com o quarentão. Finalizaram o primeiro encontro amoroso na suíte de um motel. Os momentos vividos foram suficientes para que o técnico em próteses ortopédicas se apaixonasse pela massagista.
Seis semanas e vários encontros depois ela aceitou um dos inúmeros pedidos do Gilmar para juntarem os chinelos debaixo da cama. A jovem mulher acabara de completar 28 anos. Viera do interior há mais de uma década, sozinha e ainda adolescente. Ela esperava não arrepender-se ao tomar esse passo em sua vida: estava abrindo mão de sua independência ao mudar-se para o apartamento dele com o propósito de viver maritalmente com o "gordinho" — assim ela o chamava carinhosamente.
Não demorou muito e o Gilmar, ciumento sem motivos aparentes… até então, deu um jeito de conseguir a transferência da companheira para uma clínica localizada no mesmo prédio em que ele trabalhava, e sem que ela soubesse.
A Paula não teria mais o chopinho das sextas-feiras com as amigas após o trabalho, nem as festinhas mensais dos aniversariantes do mês. “Casamento é fogo.” Pensou ela com desânimo.
Foi nessa mesma época que um jovem empresário do mundo das mídias digitais teve suas pernas amputadas na altura dos joelhos, após serem esmagadas em um acidente com seu jatinho particular, o qual ele mesmo pilotava. Depois da cicatrização ele sentia dores e incômodo na região amputada. Seu médico indicou uma clínica de massoterapia e a Paula foi designada para atendê-lo em domicílio com sessões diárias de massagens que lhe ajudariam a devolver a sensibilidade, além de proporcionar conforto. Na primeira sessão ele estava revoltado com a vida e odiando a tudo e a todos. Contudo ele mudou sua atitude da água para o vinho ao final da primeira semana. Aconteceu a química entre a massagista atraente e o cliente irritado, porém sedutor. A moça passava profissionalismo, suas roupas eram adequadas e suas atitudes corretas, ainda assim o clima rolou bem naturalmente e carícias foram trocadas. O humor do jovem cadeirante já não parecia mais o de alguém que passou por um trágico acidente.
Nas sessões seguintes a porta do quarto passou a ser trancada. A disposição física do jovem fluía principalmente nos momentos de massagem íntima quando a profissional nua em pelo deslizava as partes íntimas do seu corpo massageando as partes amputadas do paciente, igualmente nu. As outras partes masculinas recebiam igual ou mais carinho. O homem retribuía as carícias com a mesma atenção e eficácia.
O tempo da terapia fora ampliado. O casal passava esse tempo extra na cama, isso foi a princípio, contudo, inovações foram surgindo: passaram a utilizar a maca e também a cadeira de rodas em suas brincadeiras sexuais. Os momentos de "Amassoterapia"pegação prolongavam-se no banheiro, sobre a cadeira de banho, no momento da ducha para eliminação das provas do crime (odores e vestígios).
Mas nem toda alegria é eterna. O Gilmar foi o técnico indicado para iniciar o procedimento de avaliação e execução com o propósito de produzir pernas mecânicas para o empresário. Por conseguinte, depois de agendar visitas, ele também passou a frequentar a residência do "comandante", era assim que a Paula informalmente o identificava.
Dias passaram. Durante uma sessão de massagens e sacanagens em uma tarde qualquer, soou a campainha do apartamento. A cuidadora do empresário havia aproveitado a presença da massagista e saiu para fazer compras.
O casal de amantes estava em pleno ato sexual. A moça assustada congelou seus movimentos e permaneceu sentada de pernas abertas sobre seu parceiro na cadeira de rodas.
— Quem será? — questionou ela aflita.
— Calma, deve ser o zelador com alguma correspondência.
Ela saiu de cima dele e pegou sua calcinha e sutiã. Foram vestidos em tempo recorde. A campainha soou novamente.
— Talvez a Júlia tenha esquecido as chaves. Você pode ir lá ver, por favor, eu preciso me recompor — disse ele e sorriu apontando para o volume de sua genitália coberta por uma toalha.
— Oh Deus! Estou com um mal pressentimento — ela choramingou.
Já completamente vestida a moça passou as mãos ajeitando os cabelos soltos e levemente bagunçados.
— Como estou? — perguntou pra ele e fez uma expressão de indecisa, depois deu uma volta no próprio eixo.
— Está perfeita e linda. Corre lá, por favor!
Ao abrir a porta as suas pernas bambearam, era o Gilmar.
— Que foi, por que tá assustada, tava fazendo algo errado?
— Para, Gil! Já vai começar de novo?
As cenas de ciúmes passaram a ser diárias nas últimas semanas. A relação entre eles esfriara, mas isso começou antes da Paula envolver-se com o comandante, seu companheiro ciumento a estava sufocando com sua proximidade constante e marcação cerrada.
— Que é isso — advertiu ele apontando para os cabelos dela e fazendo expressão de descaso —, onde está o profissionalismo?
Seus cabelos longos, sempre bem cuidados e presos em forma de coque durante o trabalho, estavam completamente soltos. O desarranjo lhe dava uma aparência sensual, o que deve ter irritado ainda mais o Gilmar.
— Para, Gil! Ele soltou enquanto trabalhava e não arrumei porque tinha óleo nas mãos.
O dono da casa percebeu que o casal discutia a relação, apesar de falarem quase sussurrando. Ele adentrou a sala montado em sua cadeira de rodas e já vestido de bermuda e camiseta.
Ao ser questionado sobre o motivo da visita o Gilmar disse ter se enganado com o dia agendado. Pediu desculpas e retirou-se na companhia da Paula, pois já havia estourado o horário normal da terapia e a cuidadora Júlia acabara de retornar. Eles continuaram com o bate-boca dentro do elevador.
A Paula teria que ficar esperta, pois o “esposo” tinha passe livre na portaria do prédio e poderia tramar novas surpresas. Talvez tivesse se dirigido diretamente ao quarto caso a cuidadora estivesse no apartamento. A porta trancada e a demora em ser aberta seria uma evidência do “crime” de adultério.
Os dias seguiram, a moça tomou cuidado com os horários e evidências para não causar mais desconfiança. Não adiantou, o Gilmar continuava cismado e mexeu seus pauzinhos tentando tirar aquele cliente da Paula. Todavia não conseguiu, o empresário não aceitava uma mudança de profissional. O cliente tem sempre razão, né? Só restou ao companheiro corno ficar mais desconfiado.
Fim de tarde de um domingo. O Gilmar embarcaria em um avião para Buenos Aires naquela noite. Participaria de um treinamento técnico anual.
Manhã seguinte, segunda-feira. Após ter passado a noite na cama com o comandante, Paula havia saído do edifício e caminhava pensativa em direção à estação Vila Mariana do Metrô. Ela amadurecia a ideia de sair da casa do Gilmar e tirar o ciumento de vez da sua vida. Talvez voltasse a morar com suas duas amigas no mesmo apartamento de outrora. Distraída não deu importância a um carro cinza de vidros escuros que parou junto ao meio-fio logo à frente. No instante em que passou ao lado do veículo, o vidro foi baixado e o motorista a chamou pelo nome. Ela estremeceu ao reconhecer a voz áspera, virou rapidamente o corpo e gelou ao identificar a pessoa ao volante… Era o Gilmar lhe apontando um revólver.
— Vagabunda, puta de aleijado! — vociferou o homem entre dentes e atirou três vezes no peito dela. E saiu a milhão antes que algum dos poucos transeuntes desse conta do ocorrido.
Minutos mais tarde, caminhando pelo parque do Ibirapuera, Gilmar ouviu pela última vez a mensagem de voz que fora enviada por engano para o seu celular no início da última noite:
“Oi amor! Só pra avisar que tô indo, ok? O gordinho já está no aeroporto. A noite é nossa, comandante. Beeeeijo, té já!”
Tomado pelo ódio ele atirou o aparelho no meio do lago, deu meia volta e saiu caminhando cabisbaixo com os olhos marejados.
Fim