Cris e eu crescemos juntos, A família dele se mudou para o apartamento ao lado onde eu morava com meus pais quando eu tinha cinco anos de idade. Já no primeiro dia descobrimos que tínhamos a mesma idade e fazíamos aniversário com poucos dias de diferença. E foi uma coisa tão normal a gente brincar juntos que nunca pensei muito nisso, como a minha mãe trabalhava fora e a mãe dele não, eu estava sempre lá brincando. Uns dias depois ele começou a estudar na mesma escola que eu, então a gente ia e voltava juntos, depois passamos a dormir um na casa do outro, sempre que nossos pais precisavam de um tempo para eles
À medida que crescemos e compartilhamos experiências, muitas delas juntos nos tornamos ainda mais próximos e aquela amizade de criança foi se tornando uma coisa mais sólida, tanto que depois de um tempo passei a apresentá-lo para as pessoas como sendo meu irmão.
Tínhamos diferenças bem definidas, Cris era o tipo que gostava de estudar, enquanto eu vivia de recuperação ou colando as respostas de algum colega, ele era tímido, eu o palhaço da turma, Cris era magrinho, até meio baixinho para a idade, e eu por hereditariedade talvez, cresci bastante, por viver jogando bola e em brincadeiras que exigiam movimentar o corpo, era o tipo fortinho. Cris era o cara legal, educado, falava baixo e fazia de tudo para não ser notado. Eu era o moleque de rua, gostava de brincadeira ao ar livre e de andar sem camisa.
Enquanto eu queria experimentar tudo, o Cris tinha medo de tudo, mas nunca me deixava fazer nada sozinho. Ele dizia que se éramos como irmãos, se a gente se divertia juntos, então se fosse pra gente se dar mal, íamos nos ferrar juntos. Por causa soltamos muita bombinha no poço do elevador no meio da madrugada, escondemos vários cachorros no quartinho de manutenção para todos acharem que tinham fugido, fumamos pela primeira vez com dez anos – ele até levou na boa, mas eu odiei aquilo – com onze ficamos bêbados depois de esvaziar uma garrafa de vinho que roubamos do pai dele. Dessa vez nem eu e nem ele achamos graça na coisa e nunca mais fizemos nada parecido.
A primeira vez que passamos férias na praia, a gente tinha sei lá quase doze anos, ficamos no apartamento que os pais dele alugaram, a gente dividia o quarto e todo dia a gente passava a manhã na praia e a tarde no videogame. Teve um dia lá, em que eu estava tomando banho, quando ele entrou que nem um louco no banheiro, já com o pinto pra fora, só levantou a tampa do vaso e apontou o pau na direção certa. O cara até virou a cabeça pra cima, fechou os olhos e suspirou de alívio quando o jato de urina começou a sair.
Só depois ele percebeu que eu estava ali.
Sabe quando bate aquele momento em que ninguém sabe o que fazer?
O silêncio pairou no banheiro durante um tempo e nós dois de olhos arregalados olhando um pro outro. Ele desviou os olhos para me ver nu e molhado, então, arrisquei olhar para o pinto dele também. Quando voltamos a nos olhar nos olhos como se a gente tivesse ensaiado, começamos a rir de gargalhar.
A gente ainda era tão ingênuo que ele simplesmente tirou a roupa e entrou no box para tomar banho junto comigo. E a gente falou um monte de putaria que a gente ouvia os adultos falando, mas sem entender o que significava, e ficamos ali, rindo como se aquilo fosse só mais uma traquinagem nossa, a gente estava literalmente brincando de tomar banho junto.
Mas para dar uma ideia do quanto a gente era parceiro, teve uma noite, eu estava na casa da minha vó quando ele me ligou desesperado achando que tinha uma menina querendo ficar com ele e ele não sabia o que fazer. A gente conversou um pouco ele ficou mais calmo e desligou. Dali a dez minutos ele ligou de novo pra contar como tinha sido, falamos e rimos por dois minutos e ele voltou pra continuar beijando a menina.
Quando foi a minha vez de beijar pela primeira vez ele estava na mesma festa, e eu, feito um besta, beijei a menina uns cinco minutos, inventei uma desculpa qualquer e sai correndo pra contar pro Cris. Tá certo que voltei pra beijar mais a menina, mas ele tinha de saber, senão não tinha graça.
De novo a gente seguia o padrão. Eu era o sem vergonha que ficava com todas as meninas do condomínio que dessem bola pra mim. O Cris não parecia nada preocupado em ficar com o assunto, mas, mesmo assim, ficou com um punhado de meninas. Até as brincadeiras bestas que todo menino faz sobre sexo não acontecia entre a gente. A gente conversava sobre perder a virgindade e “comer” todo mundo, mas eu sempre tinha a impressão que o Cris não tinha a mesma empolgação que eu.
O pai dele trabalhava com um banco grande, com filiais em vários países e por conta disso, quando a gente estava com quase quinze anos, ele foi morar nos Estados Unidos.
Confesso que chorei de raiva e de tristeza. Com ele não foi diferente, o Cris é ainda mais emotivo que eu. Fizemos de tudo para que o pai dele deixasse o Cris morando lá em casa, até ameaçamos fugir, mas não deu muito certo. Foi muito foda ficar sozinho depois de ter crescido junto dele. Não que eu não tivesse mais amigos, na verdade tinha um monte, mas nenhum era como o Cris. Ele entendi minhas piadas idiotas e ria com elas, ele sabia que eu tinha medo de filme de terror, sabia que eu não suportava cebola e essas pequenas intimidades que você não abre pra qualquer um.
Mesmo longe um do outro a gente se falava em chamada de vídeo todo dia, e apesar da distância, parecia mesmo que tudo continuava do mesmo jeito, ele me mostrou os lugares da cidade onde estava morando e até deixava o celular ligado para eu ver as meninas da sala onde ele estudava e eu levava ele junto comigo em todo jogo ou festa que eu ia. O Cris não gosta de esportes, mas ia a todo jogo importante meu, até aqueles contra o time da rua de baixo, e as vezes, com saudade do tempo que agente era criança mostrava as novas travessuras que fazia e ele sempre ali, literalmente, no meu ouvido me mandando ter cuidado. Foram muitas as tardes que passamos conectados por vídeo, ele estudando e eu jogando vídeo game e a gente conversava como se um estivesse na casa do outro, de verdade.
Aos poucos ele começou a ficar estranho. Nada que pudesse nomear, até porque eu era só um moleque ainda, mas depois de viver diariamente com a pessoa por quase dez anos, eu via que alguma coisa estava acontecendo. Perguntei para ele uma vez, mas ele disse que não tinha nada demais acontecendo, tentei aceitar aquilo como normal, mas o tom na voz dele me deixou ainda mais sismado.
Até aí eu estava preocupado, mas preocupado como todo moleque, que pensa numa coisa e dali a cinco minutos já esqueceu. Só que com o tempo o Cris começou a perder peso e em poucos dias parecia doente, eu acho que foram poucos dias, como disse, nessa época a gente não repara muito nas coisas. O foda é que sempre que ele abria a câmera me vinha aquela impressão de que ele não estava bem, seus olhos que sempre me pareceram grandes, pela tela do computador pareciam triste, o rosto que nunca foi bronzeado estava mais pálido, o cabelo cumprido de um jeito que ele nunca tinha deixado antes, mas depois de um minuto da gente conversando ele já parecia normal de novo e eu ficava com a impressão que era coisa da minha cabeça.
Mas direto eu sentia que alguma coisa não estava certa, mas toda vez que eu perguntava ele não respondia ou dizia que estava bem e com o tempo acabei deixando aquilo de lado.
Quando não dava para a gente se ver, mesmo assim a gente se falava todo dia, e se de um lado ela parecia fora do normal, do meu lado comecei a fazer umas besteiras muito nada a ver. Coisa besta de verdade como, quebrar sem querer a janela de um apartamento, botar fogo no cesto de lixo pra ver se o detector de fumaça realmente funcionava, invadir o quintal de uma casa para roubar goiaba, esvazar os pneus do carro de de um cara que eu achava um imbecil e coisas desse tipo.
Minha preocupação aparecia também toda vez que lembrava o quanto para ele era difícil fazer amizades e não queria que o Cris se sentisse sozinho. E falava isso pra ele, pra ver se ele saia mais ou, pelo menos, tentava fazer amizade com o pessoal da escola nova.
O foda é que ele nunca reclamou. E esse era um dos defeitos dele que me irritava pra caralho, Cris nunca reclamava de nada.
E a nossa rotina era essa, a gente fazendo cada um as suas coisas e sempre que tínhamos cinco minutos um ligava para o outro para conversar, reclamar ou desabafar. De vez em quando ele parecia o mesmo cara de sempre e se divertia com as histórias que eu contava, de vez em quando parecia deprimido, mas de um jeito ou de outro a gente estava sempre juntos.
Quase um ano depois de ele ter ido, quando eu estava tomando o café da manhã antes de ir pra escola, num dia aleatório qualquer, quem aparece do meu lado?
O maluco estava mais magro e cabeludo, mas o sorriso na cara dele dizia que estava tão feliz quanto eu. A gente se abraçou durante tanto tempo que quando nos largamos tanto eu quanto ele ficamos meio sem graça, mas dali a um segundo ele estava sentado comigo na mesa do café. Comemos do mesmo jeito que sempre comemos quando estávamos juntos, como se o mundo fosse acabar se sobrasse alguma coisa na mesa. Depois matei aula pra gente conversar e ele me contar qual era aquela surpresa.
— Não estava dando certo pra mim, Léo. Meus pais viram que eu estava triste e pediram pros seus pais me deixar ficar aqui. Espero que você não se importe, é só por um ano, eles voltam de vez ano que vem.
— Cê tá louco? É claro que não me importo. A minha mãe já comprou uma cama pra você, cadê suas malas, não trouxe nenhuma gringa contrabandeada? Que merda de amigo é você que nem pra trazer uma gostosinha de presente pra mim?
E esse foi o tom do dia inteiro. A gente saiu pra comer lanche, fomos ao cinema, levei-o para conhecer os amigos novos que fiz, conversamos sem parar até que meus pais mandaram a gente calar a boca e dormir.
No dia seguinte nem parecia que a gente tinha passado tanto tempo longe um do outro, a amizade não tinha mudado nada, já o Cris esse parecia bem diferente, ainda mais baixo que eu, na minha opinião parecia magro demais, o cabelo estava super cumprido e dava até para fazer trança, e de vez em quando ele ficava naquele silêncio chato de quem tem alguma rolando, mas não fala no assunto.
A coisa começou a ficar mais clara num dia em que a gente estava jogando vídeo game (Tekken) e quem já jogou esse game sabe que tem umas personagens bem gostosas. Eu particularmente sentia muito tesão numa loira de pernas cumpridas chamada Nina, e achei estranho que ele não dissesse nada. Eu insisti e ele sempre desconversando até que apelei e perguntei qual era o problema dele.
— Porra, cara! Tu parece que é gay!
Ele desviou a cara e aquilo me irritou ainda mais. Empurrei ele no sofá e vi que ficou puto.
— Qualé, Cris, vai ficar de graça agora? Desde que chegou fica aí com essa cara de cu. Como quer que eu não pense que tem alguma coisa erra, caralho?
— A gente não é mais criança, Léo… as coisas mudam. - ele respondeu sem olhar para mim.
— Mudou tanto que você agora não confia em mim? - perguntei no tom mais desgraçado que consegui – Tá querendo ficar sozinho? Então ficasse com seus pais, porra...
— E se eu for? – perguntou ele depois de um tempo
— E se for, o quê, pra onde, quando? - perguntei perdido na história.
— E se eu for gay? - ele perguntou ainda sem olhar na minha direção.
— Por mim tá tudo certo, desde que pare de frescura e converse comigo direito.