ESCRITO POR KLEBER VIANA:
Tive uma noite horrível. A minha casa alagou por causa da chuva. Moro ao lado de um igarapé, então, a prefeitura da cidade achou melhor implantar um rip-rap para evitar que as casas caíssem dentro da água. Nem preciso dizer que a ideia mais prejudicou do que ajudou de fato.
Além dos móveis e objetos pessoais, a gente ficou preocupado com o Thor. Essa foi a primeira vez que a água transbordou e afetou todas as famílias da região. Infelizmente, nem todo mundo pode escolher onde mora.
A minha casa não ficava no nível da rua. Era necessário descer uma escada e pequenas pontes nos interliga. O rip-rap servia para contar o nível da água, uma estrutura produzida com sacas cheias de areia e cimento. Porém, devido a grande quantidade de lixo, a estrutura não aguentou e o rio transbordava.
Entramos em um projeto da prefeitura de Manaus para ganharmos uma casa popular, mas nem isso conseguimos. Após o forte temporal, saímos para ver os estragos e, graças a Deus, ninguém ficou ferido ou coisa pior.
— Filho, vá descansar. Eu cuido daqui. — pediu minha mãe pegando no meu ombro.
Eu percebi uma melancolia no olhar dela. Sei que para ela foi assustador ver a água entrando na casa. A Dona Bruna gosta de se fazer de forte, mas não conseguia enganar o filhão dela, no caso, eu.
— Não. estou bem, mãe. O serviço termina mais rápido se eu te ajudar. — falei pegando o pano de chão e espremendo no balde.
O cheiro era forte, mas com o tempo acabei ficando acostumado. Meu objetivo era tirar a água suja do chão. A ideia era secar tudo para poder arrumar os móveis. Tirar o excesso de água ficava difícil por causa do piso de madeira. Ainda bem que a energia não caiu, pois, usamos o ventilador para auxiliar no trabalho.
O Santino mandou uma mensagem, só ele para me fazer rir nessas situações. Aparentemente, a chuva o afetou também, já que ele dormiria na casa da Giovanna. Enviei um emoji de guarda-chuva e continuei tirar a água no chão.
A previsão do tempo nos deixou mais tranquilo, uma vez que a semana vai ser de calor em Manaus. No dia seguinte, precisei faltar o serviço, entretanto, não consegui fugir da faculdade. Parecia um zumbi de tão cansado que fiquei.
O Santino estava todo alegre após ter sido elogiado por causa de um trabalho da faculdade. Ver a felicidade dele virava uma espécie de combustível dentro de mim. Ainda mais quando ele ficava tímido por causa dos elogios.
Para comemorar, a gente acabou marcando uma festa na piscina. Eu não estava tão animado, afinal, tive água o suficiente para um único dia, mas queria me distrair, ainda mais que veria o Santino sem camisa e molhadinho (saudades do Ceará).
No meio tempo, entre aulas e trabalho, precisei fazer algumas obras em casa. O objetivo era evitar outra inundação, ainda bem que contei com a ajuda de alguns vizinhos. Fizemos uma contenção com sacos de areia e cimento, pois, ainda teríamos dias chuvosos em Manaus.
***
SANTINO:
- Te senti tão cabisbaixo hoje. Está tudo bem?
KLEBER:
- Estou sim. Basta você enviar uma foto sorrindo.
SANTINO:
- Selfie :)
KLEBER:
- O meu dia já melhorou 1000%. Obrigado pelo apoio, meu ursão. E não se preocupa. Estou bem, ainda mais com você ao meu lado.
***
Eu amo essa troca de energia que tenho com o Santino. A gente se compreende em tantos níveis. Ele é um suspiro de ar fresco na minha vida cinzenta. Olha que não sou tão poético, mas o Santino extraí muita coisa boa de mim.
Como o Thor foi um dos convidados de honra da festa, precisei dar um belo banho nele. Um banho com direito a shampoo e condicionador canino. Até a mamãe ficou impressionada e ajudou na missão de banhar o gigante.
De pé, o Thor é maior do que eu. Então, tenho dificuldades em segura-lo para o banho. A mamãe sentou no chão e o acalma, eu não sei como ela faz isso, pelo menos, nunca funcionou comigo. Aproveitei a distração canina para passar o shampoo de lavanda e esfreguei com cuidado os pelos caramelos do Thor.
— Esse menino, o Santino. Vocês estão namorando? — perguntou minha mãe que estava no chão, segurando com força a coleira do Thor.
— Sim e não. Ainda não rolou o pedido de namoro. — falei, enquanto esfregava os pelos do cachorro.
— E como funciona nesse caso? Por que, por exemplo, quando um homem e uma mulher estão apaixonados, a missão de fazer o pedido é do homem. Mas, e quando são dois homens? Existe diferença? — o questionamento da mamãe me faz gaguejar, na real, eu não sabia responder, então, apelei para o mestre Jedi que existe no meu interior.
— Bem, acho que aquele que mais quer namorar faz o pedido. — soltei, fazendo uma careta e ficando decepcionado com o meu mestre Jedi interior.
Banhar o Thor roubou todas as minhas energias. Entrei no quarto que divido com a mamãe e desabei na cama. Tive um sonho erótico com o Santino, porém, a gente não chegava até o fim, pois, o Godzilla atacava Manaus e nos matava. Sim, tá mais para pesadelo.
Acordei cedo, nenhuma novidade nisso, porém, não levei o Thor para passear. Passei 30 minutos explicando para ele sobre a missão do dia, ou seja, ser um bom menino e não quebrar nada na casa do Santino. Eu não tenho recursos para pagar vasos de cinco mil reais.
Após uma adestração compacta, o alimentei e dei bastante água. Dentro de casa, o Thor possui um "quarto", tá bom, podemos chamar de cantinho do Thor. A gente criou uma área para ele fazer as necessidades, inclusive, o sanitário higiênico era muito caro, por isso, achava bom esse danadinho seguir às regras.
Por um bom tempo, adestrei o Thor para fazer as necessidades apenas no cantinho dele (obrigado, Youtube). O deixei quieto e não demorou muito para o número 2. Plano concluído com sucesso. Liguei a TV e a apresentadora anunciou uma forte tempestade. A minha coluna tremeu só com a possibilidade.
Infelizmente, para uma boa parcela dos manauaras a chuva não era recebida com muita alegria. Nas redes sociais, sempre observava pessoas comemorando o período chuvoso da Amazônia. Os comentários eram variados e iam desde "tempo bom para dormir abraçadinho", passando pelo "hoje eu vou dormir até tarde" e, até mesmo, "essa chuvinha é boa para...".
Essas pessoas, elas digitavam e postavam de suas casas seguras. Eu precisava estar alerta, pois, não contávamos com dinheiro para reaver outros móveis. Dei pequenos pulos e movimentei os braços, queria espantar os pensamentos ruins, porém, imagens da última tempestade surgiam na minha cabeça.
Uma ligação me trouxe de volta. No visor, um nome que me alegrou, o Santino. Ele estava saindo de casa para me pegar. Chequei a mochila uma última vez e não faltou pegar nada. O último item da lista era o Thor, ele ficou feliz da vida quando viu a coleira.
Seguimos até o ponto de encontro que é um supermercado na "rua" de casa. Enquanto esperava, observei o céu e não vi nenhuma nuvem carregada. Porém, o clima na região Norte é imprevisível e a qualquer momento pode cair um temporal.
De longe, reconheci o carro do Santino, um Hyundai Tucson branco com o teto preto. Ele buzinou, abriu a janela e acenou para nós. Dei uma corridinha com o Thor que se animou e quase entrou pela janela. Achei engraçado porque o Santino gritou (assustado) e disfarçou.
Orei aos céus para que o Thor não estragasse o acento de couro do carro. Abri a porta e ele entrou como fosse algo rotineiro. Muitas pessoas duvidam da inteligência dos animais, pode ter certeza que eu não sou uma delas.
Ofegante, o Thor ficou mais interessado em fuçar o banco traseiro, então, não encontrei dificuldade em amarrar a guia no 'puta merda', também conhecido como alça de segurança. Fiz um nó duplo e me certifiquei que a corda não ficasse muito pequena.
O Santino esperou, pacientemente, fazendo carinho e vozes engraçadas para o Thor. O safado, por outro lado, aproveitou cada momento. Afinal, quem não quer ser paparicado por um urso?
— Thor. Por favor, se comporta. Vamos dar uma boa impressão? — questionei, enquanto me certificava se o nó aguentaria.
— Kleber. O Thor é um anjo. Ele já está sentado. — Santino defendeu o Thor que abanou o rabo, sentou no banco e ainda cruzou as patas dianteiras.
— Um verdadeiro lord. — brinquei, antes de fechar a porta e seguir para o assento do passageiro.
O carro dele é uma máquina. Eu já sabia disso, entretanto, a minha cabeça demorou a acompanhar tudo o que estava acontecendo. Tudo nele é lindo. Tenho vontade de verificar todos os botões. A paixão é tamanha que nem escutei uma ligação que o Santino recebeu, mas garanto que era algo relacionado ao churrasco.
Nas caixas de som, uma música familiar começa a tocar. É a canção "If time stood still", da Carissa Alvarado. A mesma que tocou no nosso primeiro beijo. Será que aquilo é um sinal? Eu não sei o que fazer.
De repente, a minha mão ganhou vida e passou pela costa do Santino. Então, começou a acariciar os seus cabelos.
Percebi que ele apertou o volante com mais força. Sem tirar os olhos da estrada, o Santino sorriu. Acho que estamos no caminho certo. Digo, não o trajeto da casa dele, porém, deixar os nossos sentimentos florescerem aos poucos, sabe, sem pressa ou neuras.
Chegamos ao condomínio e passamos pelas três guaritas. Percebi um adesivo no para-brisas do carro. Deve ser a selo que autoriza a entrada dos moradores. Mais uma vez, o Santino parou em todas as guaritas e conversou com os guardas. Prometeu levar comida e bebida da festa.
Quando chegamos, o Thor começou a ficar agitado. Ele levantou e latiu alto. Deixei a mochila no carro e corri para abrir a porta. Percebi que o Santino abriu pelo o outro lado e acariciou os pelos do Thor, achando uma forma de deixa-lo mais tranquilo.
Sem querer, soltei a guia do cachorro e ele partiu em disparada. Para a minha tristeza, tudo o que conversamos caiu por terra. O Thor faz xixi em cada parte do jardim da casa. Eu vou na direção dele e segurei a coleira com força.
— Deixa ele. — Santino pediu fazendo uma carinha engraçada.
— Não deixa o Thor mal acostumado. Quem sofre depois sou eu. — respondi agachando e fazendo carinho na cabeça dele.
— Vamos? — perguntou Santino abrindo a porta de entrada da mansão.
— Tem certeza? A gente pode ir pela...
— Ei, você é convidado. Os dois, na verdade. Vem. — sorrindo e acenando na minha direção.
Não faz isso, Santino. A cada dia que passa o meu coração está mais envolvido. Eu nunca estive com uma pessoa tão linda. Ele é lindo por dentro e fora. Cada gesto, palavra e atitude, mostra que o Santino é um ser humano iluminado. No fundo, tenho medo de me envolver e ser sacaneado de novo. Será que devo dar uma chance para o amor?