Capítulo 13
_ Vai ficar com essa cara de imbecil ou vai me explicar o que significa isto?
Apesar de erguer a cabeça com a arrogância de sempre, Vanessa não sabia o que dizer. Olhou para a porta desejando correr dali e fugir para o mais longe possível. Ela não estava acostumada a lidar com a fúria de Júlio...nem sabia lidar com ela.
_ É de uma amiga minha. Ela me pediu para guarda e...
_ Não minta pra mim, Vanessa! Tá me achando com cara de otário?_ Júlio a olhava furioso, não sabia se tinha mais raiva da mentira de Vanessa, ou do sujeitinho desconhecido que transformou a sua menininha numa mulher.
Vanessa se manteve calada. Estava tão tensa, que se viu paralisada.
_ Ou você vai me dizer por bem, ou vai me dizer por mal.
Os gritos de Júlio ecoavam pela casa. Leandro estava correndo na esteira, quando os ouviu. Interrompeu a atividade e saiu da academia particular. Desceu as escadas em passos lentos. Sabia que algum tumulto estava acontecendo e no fundo não queria ter que enfrentá-lo.
_ O que está acontecendo aqui? Que gritos são esses?_ Leandro estranhou ver a fúria do marido destina á filha. Ele nunca se aborrece com Vanessa.
_ Olha o que eu encontrei no estojo da Vanessa!
Quando Júlio o mostrou a cartela de pílulas anticoncepcionais, Leandro tomou um susto como não tomava há tempos. "Como assim?! Ela é só uma criança!" Foi o que pensou. "Deve ter alguma explicação."
_ E ainda teve a cara de pau de mentir que era de uma amiga. Agora passou a ser uma mentirosa.
_ Aprendi com você!_ Vanessa séria, com as lágrimas escorrendo, não que estivesse triste. Na verdade estava com raiva por não ter sido esperta o suficiente para se livrar da situação.
_Como se atreve a falar assim comigo, abusada?!
_ Ei! Vamos nos acalmar? Não vamos resolver nada com gritarias.
_ Como vou me acalmar se a sua filha está fazendo merda e ainda tem a petulância de me desacatar?
_ Agora ela virou somente a minha filha? Bom saber._ Leandro disse com ironia._ Se você ficar gritando feito um louco, a menina vai ficar assustada e não vai responder nada.
_ Leandro, eu tô na dúvida se você é um idiota ou se faz. Não há o que explicar. Vanessa está fazendo o que não deveria fazer.
_ O que você quer então? Que eu engravide?
_ Mais uma respostinha debochada e eu não respondo por mim?
_ Ah, não? Vai fazer o quê?_ Vanessa pôs as mãos na cintura._ Vai me bater como esse aí fez?
_ É o que você tá merecendo.
Leandro respirou fundo três vezes. Tentando manter a calma. Júlio e Vanessa alteravam as vozes discutindo.
_ A única pessoa que fez o que não deveria foi você, que mexeu nas minhas coisas sem a minha autorização. Isso é invasão de privacidade.
_Esta casa é minha e tudo que está nela me pertence. Quer privacidade? Trabalhe, tenha o seu próprio teto e se sustente. Enquanto viver sob o meu teto, quem dita as regras sou eu. Espero que fui claro.
_ Você adora, né? Adora jogar o seu dinheiro na cara das pessoas. Faz isso com todo mundo: com os meus avós, com o meu pai, com os seus empregados e agora comigo.
_ Deixe de ser ridícula! E não fuja do assunto. Quem é o vagabundo que está abusando de você?
_ Abusando?_ Vanessa ergueu a cabeça para gargalhar._ Ninguém está abusando de mim. O nosso lance é sexo consensual.
_ "Sexo consensual?!" Você fala como uma...
_ Já chega, Júlio! Modere nas palavras! Ela não é uma qualquer, é a nossa filha!
Júlio respirou fundo, tentando conter a raiva.
_ Vanessa, apesar do nervosismo do Júlio, nós somos os seus pais e estamos preocupados com você. Eu mesmo estou espantado com essa situação. Ontem mesmo você era a nossa garotinha brincando de boneca e agora...
_ Ah, pai! Eu não sou uma menina há muito tempo.
_ Isso é verdade, mas é difícil aceitar...
_ Mas terão que aceitar. Eu sou uma adolescente normal e não estou fazendo nada de errado. Muito pelo contrário, fiz tudo certinho: tomo pílulas sob prescrição médica, uso preservativo e faço tudo com todo cuidado do mundo. Vocês tinham que ter orgulho de mim por ser responsável.
_ Responsável?! Desde quando ficar trepando com um qualquer por aí é uma atitude responsável?! Uma moça descente não se comporta desta forma.
_ Moça descente?! O que é uma moça descente para você, doutor Júlio? Uma virgem imaculada, que fica presa dentro de casa se guardando para o marido...que acredita em príncipe encantado e se casa com o primeiro namorado e tem uma vida infeliz, porque é traída pelo marido e não aproveitou a sua juventude? Isso é ser moça descente pra você? A decência de mulher nenhuma está ligada ao que fazemos com o nosso próprio corpo! Ela está ligada ao nosso caráter! Você é machista, pai!
_Machista eu?!
_ Machista você sim! Se eu fosse um cara a gente estaria tendo essa briga? Ou você estaria comemorando porque o seu filho estava transando?
_ Você não me provoca...
_ Júlio, a gente precisa se acalmar. Parando para pensar, ela está certa. É melhor encontrar uma cartela de pílulas anticoncepcionais do que um teste de gravidez dando positivo.
Júlio o olhou furioso.
_ Não abra a boca para dizer merdas, Leandro! Eu não vou admitir que você apoie este tipo de comportamento! É por isso que ela é assim! Porque você não tem competência para cuidar dela! Nunca teve!
Leandro fechou a mão e o olhou sentindo o ódio ferver dentro de si.
_ Eu já estou farto de toda essa porraaaaaaaaa!_Leandro surpreendeu a todos atirando um vaso na parede._ Cansei desse caralho de ser tratado como um nada nesta merda desta casa! Caralho! É tudo nas minhas costas? Tudo de ruim, claro! Nunca recebo um elogio, sempre sou desmoralizado e humilhado! Como assim não tive competência para cuidar da Vanessa? Tive e muita! Tanto é que ela, apesar de ser mimada e arrogante por sua culpa, por causa dos seus mimos...e mesmo assim ela é responsável! Sério! Eu tô de saco cheio de tudo! De saco cheio mesmo!
"A minha opinião nunca tem valor...sou sempre atacado! Como se tudo de ruim fosse culpa minha! Eu me dediquei tanto a este maldito casamento e a nossa família! Esqueci de mim! Eu não vivi pra mim e sim pra vocês! E olha o que ganhei! Olhem!"_ Leandro mostrou as manchas roxas no braço._ Quer saber? Se eu sou um incompetente como você vive jogando na minha cara, se sou um péssimo pai, cuide você mesmo da Vanessa. Não me inclua em mais nada! Eu lavo as minhas mãos.
Leandro subiu correndo. Trancou-se no quarto, se jogando na cama.
Sentiu o peito apertado pela angústia e as lágrimas desciam...
_ Eu não aguento mais! Eu não aguento!
_ Você está de castigo. Pode me devolvendo o cartão de crédito e nada de mesadas. Só terá dinheiro contado para o lanche no colégio.
_ O quê?! Mas, isso é muito injusto!
_ Se é justo ou não eu caguei. Esta casa não é uma democracia.
_ Tô vendo que não! É uma ditadura e você é o ditador! É um Bolsonaro da vida.
_ Não me ofenda! Só por causa disso, além de ficar sem dinheiro, não irá mais viajar no carnaval. Vai ficar dentro de casa todos os quatro dias.
_ Mas, pai..._ Vanessa disse chorando.
Júlio pegou o documento de autorização e rasgou em pedaços._ Pai, não!
_ Espero que estejamos conversados!
A motorista saiu da cozinha e entrou na sala desconcertada. Ela ouviu toda a briga da cozinha.
_ Bom dia, doutor Júlio. Me desculpe, mas já está na hora de levar a menina para a escola.
_ Eu não vou!_ Vanessa gritou chorando.
_ Isso quem decide sou eu! E você vai sim. Maria, leve essa abusada para escola e na hora da volta a traga direto para casa. Vanessa está proibida de ir a qualquer lugar.
_ Eu virei sua prisioneira agora?
_ Mais uma respostinha e eu te mando para um internato de freiras, quem sabe assim você aprenda a ter bons modos.
Vanessa ficou quieta, o olhando com raiva.
_ Sim, senhor. Vamos, Vanessa?
Vanessa não respondeu a motorista. Pegou a mochila e saiu andando com raiva.
...
Apesar da mesa está posta para o almoço, nem Leandro e nem Vanessa estavam presentes. Patrícia havia posto apenas o prato para Júlio.
_ Cadê eles, Patrícia?_ Júlio perguntou sério. Detestava sentar á mesa sem a família.
_ A Vanessa está almoçando no quarto dela e o Leandro disse que está sem fome...ele sempre perde a fome quando fica muito tenso, e eu estou muito preocupada.
_ Quer dizer que vou ter que comer sozinho?
_ Ninguém quer ficar perto do senhor.
Júlio a olhou de um jeito repreensivo, fazendo a mulher se arrepender do que disse.
_ Me desculpe. O senhor vai querer azeite para salada ou o molho parmesão?
_ Eu quero que você suma da minha frente.
_ Com licença._ Patrícia se retirou, prendendo o riso.
Sentada na cama, Vanessa apoiava o prato entre as coxas e os joelhos. A única vantagem daquilo tudo era que poderia almoçar sozinha e abusar da falta de modos, coisa que não era autorizada a fazer na frente dos pais.
Vanessa, ao contrário de Leandro, nunca perdia a fome. Independente da emoção que estava sentindo, nunca perdia a vontade e o prazer de comer. Apesar do frango grelhado, a salada de legumes, o arroz e o feijão estarem deliciosos, ela desejava muito era comer um bom bife com batatas fritas. No entanto, este tipo de alimentação gordurosa era proibida por Leandro. Carne vermelha ela só comia quando fazia churrasco ou iam a alguma churrascaria, o que era raro.
O hábito de ter uma alimentação saudável foi inserido na infância na vida de Leandro. Angela sempre foi zelosa nos cuidados com o filho e ele cresceu reproduzindo este hábito com a filha.
_ Posso entrar?_ Leandro perguntou na soleira da porta, com essa meio aberta.
_ Se for para brigar comigo, não. Já me aborreci demais por hoje.
_ Eu não quero brigar, filha. Quero conversar. Prometo que vai ser de boa.
_ Tá bom...entre.
Leandro se aproximou, sentado na cama. Estava sério, mas não bravo. Olhava para Vanessa confuso. Para ele, ainda era difícil lidar com o crescimento da sua menina.
_ O que você quer, pai?
_ Te ouvir. Júlio ficou bravo e acabou criando uma grande confusão. Ficamos todos nervosos e alterados. Todos esbravejaram e no final, ninguém disse nada.
_ Eu não tenho o que dizer. Simplesmente não sou mais virgem e estou me cuidando para não pegar uma doença e nem engravidar.
_ Foi a sua ginecologista que te receitou a pílula?
_ Hã Ram.
_ Você fez todos os exames e preventivos?
_ Sim.
_ Eu fico orgulhoso de você.
_ Sério?!
_ Claro. Apesar da pouca idade, você foi muito responsável. A única coisa que lamento é que você fez tudo às escondidas. Não confiou em mim. Eu ia adorar se confiasse. Vanessa, nós temos as nossas brigas, mas eu te quero muito bem. Só quero o melhor pra você. Minha menina, você pode confiar em mim.
_ Eu não entendo como vocês sendo um casal gay, o meu pai tem esse pensamento tão retrógrado. Ele era para ser mais mente aberta. Ele só tem trinta e sete anos, é um cara que possui uma escolaridade alta, é um advogado bem sucedido...no mínimo deveria ter é a mente aberta. Você acredita que ele me pôs de castigo? Me proibiu de viajar e usar os meus cartões de crédito!
_ Enquanto ao Júlio, eu não posso fazer nada para reverter a situação ou mudar o pensamento dele. As atitudes do Júlio não são as minhas responsabilidades. Eu fiquei anos tentando segurar tudo e estou exausto demais. Eu vim falar por mim.
_ E você não vai fazer nada? Você também é o meu pai! Deveria se impor!
_ O engraçado é que quando Júlio me desautoriza para fazer a sua vontade, você não diz que devo me impor.
Vanessa abaixou a cabeça envergonhada.
_ Eu vim falar por mim, Vanessa. Enquanto, ao dinheiro e cartão de crédito tudo isso pertence ao Júlio.
_ O que eu devo fazer? Eu quero tanto ir, pai._ Vanessa disse chorando, deixando Leandro compadecido._ Ele é muito controlador. Domina e pisa em todo mundo. Vai ser a vida toda isso?
Leandro a acariciou no queixo.
_ Vou te dar um conselho: faça tudo o oposto do que eu fiz. Estude, trabalhe, conquiste a sua independência...mesmo sendo herdeira do seu pai. Construa o seu. Assim você será uma mulher livre. Não deixe que ninguém te amarre.
_ Eu vou fazer isso... você tem razão. Vou ser uma advogada tão boa quanto o meu pai. E vou ter o meu escritório também. E quando eu herdar o do meu pai, eu serei muito mais poderosa que ele, porque terei duas grandes empresas.
_ Isso aí. Essa é a minha garotinha... aliás, uma mulher...por mais que me doa admitir isso.
_ Pai, por que você se deixou ficar preso nesta teia? Tipo, o meu avô não é tão rico quanto o meu pai, mas ele também é advogado e nunca te faltou nada. Você teve uma vida confortável. Por que aceitou ser dependente do meu pai? Você é tão inteligente.
_ É uma longa história.
_ Eu tenho todo tempo do mundo para ouvir._ Vanessa disse pondo o prato ao lado e sentando com as pernas cruzadas.
_ Bom, como você sabe, a dona Dirce trabalhou na minha casa por muitos anos e, às vezes, o Júlio frequentava a nossa casa para prestar alguns serviço gerais: como aparar a grama, limpar a piscina e etc. Eu me apaixonei por ele...eu o amei muito.
_ Não ama mais?
Leandro a olhava reflexivo, pensando que em seu coração não havia mais o mesmo sentimento que sentia outrora pela marido. Ignorou a pergunta da filha e prosseguiu com a história.
_ Nós começamos a namorar...eu era muito jovem e ele tinha acabado de se formar em técnico de enfermagem e procurava emprego na área.
"Os meus pais nunca foram homofóbicos. Aceitavam de boa que eu namorasse outros homens, desde que não fossem pobres. Os seus avós acusavam o Júlio de ser interesseiro e que só queria me fazer de escada para subir na vida. O que não era verdade, na época, Júlio realmente me amava."
_ Ele ainda te ama.
_ Furiosa, a minha mãe demitiu a Dirce. Ela precisava muito do emprego. A renda da família vinha toda dela, porque Júlio ainda não tinha um emprego fixo. Os meus pais o humilharam muito...muito mesmo e Júlio suportou tudo porque queria ficar comigo.
"Eu ficava mal com aquela situação, mas não podia fazer nada. Para amenizar, concordei em namorar escondido dos meus pais.
"Júlio sempre foi orgulhoso. Disse que um dia seria rico e esfregaria tudo na cara dos meus pais. Decidiu estudar Direito para poder ser um advogado melhor que o meu pai..."
_ Ele conseguiu.
_ Ele se dedicou e estudou para o vestibular. Conseguiu a aprovação. Arranjou um trabalho de enfermeiro particular de um idoso enfermo e rico. Júlio detestava o emprego. O velho era um carrasco. Em meio a tudo isso, eu completei dezoito anos e aceitei o convite de Júlio para morar com ele, mesmo contra a vontade dos meus pais.
"Na época, eles queriam que eu cursasse Direito, mas a carreira não me agradava. Júlio me aconselhou a estudar o que me fizesse feliz e eu segui e...
_ Fez a burrice de cursar Letras... hã.
_ Então, o meu pai vivia dizendo que ia nos sustentar, porque professor morre de fome no Brasil.
_ Que exagero!
_ Júlio prometeu a eles que me daria uma vida melhor do que eles me deram, que ia ficar rico. Os meus pais debochavam e ele ficava com mais raiva. Enfim, Júlio se formou e nós nos casamos. O meu pai fez questão que seria com separação total de bens. Ele temia morrer e numa suposta separação, Júlio ficasse com algum bem da família.
"Júlio foi o primeiro a concordar. Depois o patrão do Júlio morreu e deixou uma boa quantia em dia para o Júlio como herança."
_ O velho que não gostava dele? Por que ele deixou dinheiro para o meu pai?
_ Não sei. Talvez seja porque era abandonado pela família e só tinha os cuidados do enfermeiro para contar... Enfim, com esse dinheiro, Júlio fundou o escritório e começou a prosperar. Contratou o meu pai para ser um dos seus empregados.
_ O jogo virou. O meu avô que tanto pisava no meu pai, agora era empregado dele... O meu pai pode ser um Machista carrasco, mas tenho que confessar que ele é muito foda.
_ Com tudo isso, Júlio quis cumprir a promessa de me dar uma vida melhor que a que os meus pais me deram. Me fez prometer que não trabalharia. Mesmo contrariado, eu aceitei. Eu tinha começado a lecionar num colégio tradicional...estava até ganhando razoável e gostando muito. Mas, eu o amava. Estava disposto a fazer tudo por ele. Acabei cedendo e...o resto você já sabe.
_ Pai, você se deu muito bem. Um professor não passa fome como o meu avô disse, mas ganha mal pra caralho. E olha onde você está. O meu pai põe o mundo aos seus pés. Ele te fez prometer que não trabalharia porque te ama e quer te dar o melhor.
_ Não._ Leandro balançou a cabeça negativamente._ Por muitos anos eu acreditei que esse foi o verdadeiro motivo. Hoje percebo, que Júlio fez o que fez em nome do próprio orgulho. Ele só quer jogar na cara dos meus pais que é superior. É tudo em nome do próprio ego.
Vanessa se compadeceu da tristeza do pai. Nos olhos se formavam lágrimas, que Leandro fez questão de limpar antes que escorressem pela face. Não queria envolver Vanessa nos seus problemas.
_ Isso te machuca muito, né pai?
_ Não importa.
_ Como não importa?! É claro que importa! Eu sou a sua filha e te amo!
_ Vamos falar de você. Quem é o seu namoradinho? Como o seu pai, eu gostaria muito de saber.
_ Ele não é o meu namorado. É só um cara que tô curtindo.
_ Como assim?! Você perdeu a virgindade com um cara que você nem namora! Meu deus! A primeira vez de uma garota deve ser especial!
_ Isso para as garotas do seu tempo, né? Aquelas que usavam calça cintura baixa e dançavam a musiquinha do Rouge! Oh, geração mais cringe! Esse papinho de primeira vez especial é balela. A primeira vez é só a primeira vez e ponto. E assim mesmo é ruim pra caralho. Dói!
_ É...os tempos mudaram! Mas, foi por amor?
Vanessa ergueu cabeça gargalhando.
_ Amor, pai? Sério isso? Foi por curiosidade e tesão mesmo.
_ Acho melhor a gente parar de ter essa conversa... não tô gostando do rumo. Mas, ele pelo menos é da sua idade, né? Não é um mais velho tarado por garotinhas?
_ Não! É um amigo da escola. Ele tem dezessete anos. Tá no terceirão.
_ Você gosta dele?
_ Sim. Ele também gosta de mim. Já até me pediu em namoro.
_ E você?
_ Tô pensando. Estudando o cara para ver se vai valer a pena investir numa relação mais séria.
_ Tá certa, meu amor.
_ Pai, bem que poderia um rolar um sorvete de sobremesa né? Faz tanto tempo.
_ Nem pensar. Sorvete engorda. E além disso, eu sei que a senhorita se enche de sorvete na escola.
_ Que saco!
_ Eu comprei morangos lindos. Posso te servir com iogurte e granola.
_ Tá bom... fazer o quê, né?!
...
Não foi nada agradável para Leandro dar de cara com Júlio na cozinha. O advogado estava atrás da bancada, com a cafeteira na mão. Altas horas, Júlio estava vestido com o short preto do pijama e o peito nu.
Leandro também estava vestido com um pijama. No entanto, era um pouco mais comportado: uma calça listrada azul e uma blusa branca. Como sentiu sede, foi até a cozinha repor a água filtrada em sua garrafa térmica prateada de tampa preta.
Entrou em silêncio, indo até a geladeira para pegar água na porta. Júlio se virou para observa-lo.
Apesar de não demonstrar com palavras, até aquele momento, Júlio sofria com a frieza do marido.
Não era a primeira vez que ele e Leandro brigavam e ficavam sem se falar por dias. Já estava acostumado com isso. Era até bom, pois o sexo de reconciliação era satisfatório demais para ele, pois Leandro, em nome da paz do casamento, se entregava por completo, para o prazer do marido.
No entanto, desta vez, tudo estava diferente. Júlio não via mais nos olhos de Leandro o amor de outrora. Agora quase não o olhava, evitava trocar palavras, e sempre saia de uma cômodo quando ele entrava.
Começou sentir o peito doer. Sentiu as lágrimas se formarem nos olhos. Sentia saudades do calor do corpo de Leandro, dos beijos, das declarações de amor. Sentiu, pela primeira vez, uma insegurança. A possibilidade de perdê-lo o apavorava.
"Ele é tão lindo! E se se apaixonasse por outro?" Essa possibilidade lhe feria a alma. "Jamais! Ele é meu!"
Olhando-o por trás, deixou as lágrimas caírem, imaginando outro tocando naquele corpo que fora seu. Outro desfrutando daquela boca, fazendo-o gemer em seus braços. E pior, se o outro fosse melhor que ele? E se roubasse o seu amor de uma vez por todas?
Olhou para o faqueiro e desejou penetrar uma faca no marido antes de perdê-lo. "Ele é meu!"
Recordou daquele belo rosto quando, dando um sorriso encantador, aceitando o seu pedido de casamento, num fim de tarde, assistindo o pôr do sol numa praia.
_ Estamos nos casando agora neste momento só nosso, meu amor._ Leandro disse esticando o dedo para receber a aliança.
Júlio estava tão feliz naquele dia. A possibilidade de viver com Leandro o levava às nuvens. "Os outros foram só corpos. Você é a minha vida. Você é meu!"
_ Precisamos conversar, coração._ disse tocando no braço de Leandro.
_ Não temos nada para conversar. Estou com sono.
Leandro caminhou para voltar para o quarto. Júlio o segurou com mais força, sem machucá-lo.
_ Por favor! Eu te amo tanto! Te amo demais! Não vou suportar te perder._ nesta hora, Júlio não teve forças para conter as lágrimas.
_ Júlio..._ Júlio o interrompeu tocando em seus lábios. Deslizava os dedos sobre eles.
_ Eu sei que você também me ama. Nós já superamos tanta coisa juntos, meu amor.
Leandro fechou os olhos para não encará-lo. Sentia uma tensão que contraia os seus músculos, fazendo o seu corpo doer.
Júlio o envolveu com os seus braços. Apoiou a cabeça em seu ombro e desabou no choro.
_ Me perdoe? Eu prometo que serei o melhor pra você... Eu te amo demais! Nós podemos recomeçar. Podemos viajar._ Júlio disse antes de beija-lo.
Leandro se afastou dos braços do marido.
_ Boa noite, Júlio._ Leandro se retirou, voltando para o quarto de hóspedes e trancando a porta, para que Júlio não tivesse a chance de entrar.
Deitou na cama em posição fetal. Lamentou que o seu casamento chegou ao fim. Lembrou de quando o amava e eram felizes. Júlio foi até então o seu único e grande amor. Foram felizes por algum tempo.
_ Quem sabe ele muda mesmo?_ perguntou a si mesmo.
Contudo, a lembrança de um nome o fez se arrepiar dos pés a cabeça. Nome esse que machucava os seus sentimentos: Abner. Sentiu ódio do tal de Abner, o responsabilizando por roubar a sua felicidade conjugal. Maldito!
Sentou na cama e recordou das diversas brigas que teve com Júlio devido as diversas mentiras e traições do marido, das muitas vezes que se sentia humilhado quando Júlio o fazia culpa pelos erros dele.
"Ele não me ama. Se me amasse não me machucaria tanto. Isso não é amor, é veneno, que está me matando."
Aos poucos, recordou da vida antes de Júlio. De quando não precisava tomar calmantes para se sentir bem. Fora feliz, tinha sonhos...a vida era tão boa quando não vivia tenso.
O medo das traições o torturou por todos esses anos. Quantas madrugadas desperdiçadas, mergulhado em desespero, em prantos porque o outro lado do travesseiro estava vazio! O coração batia acelerado, sentia tremores. As horas duravam uma eternidade até que Júlio chegasse embriagado, cheirando a outros e ignorando o seu sofrimento.
No dia seguinte, sempre as mesmas conversas, que Leandro se iludia querendo acreditar que se tratava de um diálogo saudável, Júlio revertia a situação.
_ Você me deixa louco! Nunca está satisfeito, sempre reclama de tudo, transforma a nossa casa num inferno. É por isso que saio. Mas, eu te amo tanto, que estou disposto a te perdoar.
Leandro sentiu raiva de si mesmo, por todas as vezes se deixou levar pelas palavras de Júlio. Estapeou a si mesmo.
_ Como você pode ser tão burro?! Burro! Burro!
O incômodo por Júlio voltou com mais intensidade. Sentiu uma agonia aterrorizante por estar naquela casa. Queria distância do marido.
_ Eu não quero mais chorar! Não quero!
De nada adiantou. Chorou muito. Soluçava.
Quis sair do labirinto frio e escuro que estava preso por anos, mas não encontrava a saída.
_ Por que me deixei chegar nesta situação? Por quê?
Deitou, cobrindo todo o corpo com o lençol, encolhendo-se como sinal de auto proteção. Chorou muito, depositando nas lágrimas todos os sentimentos que o torturava.
Ao final, sentiu um alívio. Como se a tristeza e o medo estivessem ido embora. As pálpebras pensaram e bocejou. Cansado, adormeceu.
Em seu escritório, Júlio olhava fixo para a lua cheia e azulada através da parede de vidro. Entre os dedos tinha um cigarro aceso. Os olhos ainda estavam vermelhos de tanto que chorou.
_ Eu te amo, Leandro. Te amo.
...
Leandro acordou cansado. O corpo pesava na cama, desejando não levantar.
No entanto, recordou que havia marcado de almoçar com Valéria. Quis desistir. Ligar para a amiga inventando uma desculpa qualquer para adiar o compromisso. Mas, a conhecia o suficiente para saber que ela notaria a sua mentira, faria um interrogatório e se fosse preciso, iria até sua casa buscá-lo, o que seria péssimo, pois haveria uma grande chance de um encontro com Júlio e seria briga na certa.
Para lutar contra indisposição, levantou da cama e se banhou com água fria.
Como fazia todas as manhãs, após escovar os dentes, fez a barba, deixando a pele do rosto lisa como a de um menino.
Ao se olhar no espelho, percebeu que o seu rosto estava inchado e a expressão fácil fatigada.
_ "Em que espelho ficou perdida a minha face?"_ O trecho da poesia de Cecília Meireles o fez sentir vontade de a reler.
Refugiou-se no seu cantinho particular. Abriu as enormes janelas da biblioteca, sentou no sofá, enfrente ao mar. Observava o vai e vem das ondas, com o livro em mãos.
Foi deportado para a infância, quando a mãe o levava á praia e passava a tarde inteira brincando com os primos. A vida era tão mais leve! Cadê aquele Leandro vivo que se entregava ao mar entre gargalhadas e brincadeiras? Sentiu tanta saudades daquele menino, que se auto abraçou.
Sempre fora apaixonado pelo mar. Gostava do barulho relaxante, de se entregar banhando-se nas águas salgadas e, principalmente, quando praticava mergulho junto com o seu pai, explorando as maravilhas do fundo do mar.
Sonhava em viver próximo a ele. Este foi o motivo pela escolha da localidade da cobertura. Júlio fez questão de realizar este seu sonho.
Todavia, não sentia tesão no mar. As suas tormentas internas o impediam de desfrutar da natureza a sua volta.
Abriu o livro, para buscar a poesia que gritava dentro dele.
_
"Retrato
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?"
Leu em voz alta, sentindo o efeito de cada palavra. Assim como o eu lírico, Leandro não se reconhecia mais. Estava com saudades do seu eu do passado. Sentia-se na beiro do precipício. Daquele menino alegre, não lhe restou nada.
Patrícia bateu na porta.
_ Entre.
_ Bom dia, querido!_ ela trazia em mãos uma bandeja com uma xícara de chá e umas porradas com pasta de sardinhas e maionese._ Eu trouxe o seu café da manhã. Você não tem comido quase nada nestes últimos dias. Está emagrecendo. Eu fico tão preocupada.
Patrícia sentou ao seu lado, pôs a bandeja numa mesinha de vidro. Ela o olhava com tanta ternura, que ele abraçou com força.
_ Me desculpe pelo atrevimento. Mas, eu..._ Leandro não a soltou, buscando abrigo em seus braços.
Patrícia o estimava tanto que retribuiu o abraço. O amor e a gratidão que sentia por ele foi transmitida pela energia do seu corpo.
Estranhamente Leandro se sentiu bem. Algo bom o consolava e ele não sabia o que era, só sabia que vinha dos braços dela.
Afastou-se sorrindo. Estava mais leve.
_ Obrigado, Patrícia.
_ Pelo quê?
_ Por tudo.
_ Eu gosto muito de você, Leandro. Gosto de verdade. Quero muito que seja feliz. Todos os dias, eu peço a Deus que transforme as suas lágrimas em sorrisos.
_ Obrigado._ Leandro segurou em sua mão e a levou a peito._ A casa está silenciosa.
_ Lógico! Vanessa foi para a escola. Seu Júlio, foi para o escritório. Mesmo machucado ele quis ir assim mesmo. Esse homem tá te fazendo mal, querido. Você não merece isso.
Leandro deitou a cabeça no colo dela. Ficou em silêncio, enquanto recebia um cafuné que o relaxava.
_ Eu soube que a Valéria te chamou para viajar com ela. Você vai né?
_ Não sei.
_ Por que não sabe?
_ Eu tenho medo do Júlio...
_ Júlio sempre apronta no carnaval. Se você não for, vai ficar sozinho, como sempre fica todo ano.
_ Sabe que tô torcendo pra que isso aconteça? Seria ótimo ficar um pouco longe do Júlio.
_ Então, viaje homem! Vá se divertir com a sua amiga! Leo, você precisa de vida. Focar em você! Se resgatar! Passou tanto tempo cuidando desta família e sempre foi desvalorizado pela sua filha e marido. Querido, pense um pouco em você! Eu sei que você deseja se livrar do que te prende ao Júlio, mas está perdido.
Leandro levantou e a olhou espantado.
_ Como sabe disso?
_ Eu te conheço, meu amor. Convivo contigo por tanto tempo. Me dói ver o jeito como eles te tratam! Desejo muito que se liberte. Eu sei que não é fácil, já que vive um relacionamento abusivo.
_ Bom, o meu relacionamento não é o melhor do mundo, mas não chega ser abusivo. Nunca nos agredimos.
_ O Júlio sempre te agrediu. Nunca fisicamente, mas te agrediu psicologicamente. Quantas vezes ele te feriu com palavras e atitudes? Quantas vezes te fez pedir desculpas pelos erros dele? Você não é burro como se acha. Você é abusado constantemente por um homem que você pensa que te ama, mas não ama.
Leandro abaixou a cabeça.
_ Eu não quero te machucar. Muito pelo contrário. Quero te dizer que parece que a vida não tem solução, mas ela tem! Você pode voar. Tem asas! Eu sei o que você está passando, porque já passei por isso. Mas, você foi um anjo na minha vida, que me ajudou. Me deu dinheiro para dar como depósito no aluguel da minha casa e assim pude me livrar do meu ex. Além disso, você pagou e ainda paga terapia para mim e para os meus filhos.
"Leandro, a doutora Jaqueline é tão boa! Ela pode te ajudar também a resolver estas confusões na sua mente. Como disse Saramago: "É preciso sair da ilha para poder vê-la." Você precisa aceitar que precisa de ajuda e buscar por ela. Como consequência, vem a liberdade."
_ Você tem razão, Patrícia. Eu realmente preciso de ajuda. Mas eu me sinto tão perdido. Naquele dia que eu saí de casa e os meus pais ficaram do lado do Júlio, eu me senti com as mãos atadas. Como se eu estivesse me afogando e gritando por socorro, mas as pessoas me ignorando.
_ Eu sei como é isso. Mas, tem solução. E você não está só. Tem a mim e a Valéria. A minha casa está longe de ser como esta, mas esta de portas abertas, caso você precise. A gente se espreme, bota água no feijão, que sempre cabe mais um.
_ Oh, querida!_ Leandro a abraçou grato.
_ Leo, ter dinheiro é muito bom. Mas ter liberdade e felicidade é melhor ainda. Sabe aquela sensação gostosa de deitar com a cabeça tranquila no travesseiro? Não há dinheiro no mundo que compre isso.
_ Há tanto tempo que não sei o que é isso.
_ Você está aprisionado ao Júlio. Segurando o que te machuca. Desapegue. Deixe ele ir. Você tem capacidade de ter a sua independência financeira. Mas, não é só por ela que você deve lutar. Lute por si mesmo. Lute para resgatar a sua autoestima, o seu amor próprio, a sua felicidade. Faça coisas que te fazem bem, foque na sua saúde física e mental. Saia, se divirta, bote a cara! Deixe o sol entrar! Você tá morrendo aos poucos. Está infeliz! Se permita voltar a viver.
_ Eu vou! Eu vou voltar a viver!
_ É isso mesmo. Você pode contar comigo sempre, querido.
_ Obrigado...de verdade... obrigado.
_ Agora coma e leia, isso ajuda a relaxar. Eu vou ligar para o consultório da doutora Jaqueline e marcar uma consulta para você. Como semana que vem é carnaval, ela só vai atender daqui a um tempo.
Patrícia levantou e beijou a sua testa.
_ Eu estarei na cozinha. Se precisar de qualquer coisa, é só me chamar.
_ Tá bom.
...
Valéria gargalhava alto no restaurante, despertando a atenção de todos em volta e deixando Leandro constrangido.
_ Isso não tem graça, Val!
_ Claro que tem. Júlio é muito burro de achar que pode controlar o fogo na menina.
Para Leandro ainda era estranho ouvir sobre a vida sexual da sua filha. Ele sempre evitara pensar nisso. Queria se iludir que esse momento nunca chegaria.
Por haver muito tempo que não se viam, o casal de amigos tinha muitas coisas para contar um a outro. Valéria falou sobre as novidades profissionais e da discussão que teve a prima.
Leandro, além de falar de Vanessa, falou sobre a visita inusitada de Dimitri. Os seus olhos brilhavam contando sobre o cozinheiro, o quanto o rapaz o fazia bem.
_ Ele é tão maravilhoso! Eu ficaria horas perto dele só o ouvindo falar. Com ele eu me sinto a vontade. Me sinto em paz.
_ Genteeeeee! Eu ameeeiiii! Leandro, você tá se saindo melhor que encomenda. Olha que vingança foda. Trair o filho da puta do Júlio levando macho para dentro de casa! Fodendo na cama dele! Aaaai que tudo!_ Valéria dava palminhas e gargalhou.
_ E tudo com isso com o dedo da senhorita! Você é carne de pescoço, hein. Deu o meu endereço para ele.
_ Dei mesmo. Você andava muito tenso. Precisava viver umas aventuras. Só não tô gostando nada nada da sua empolgação com o Dimitri. Você nem o conhece direito para entregar o seu coração. Deve ter cuidado. Ele é jovem, bonito e gostoso. Para dar uma foda é ótimo. Mas se apaixonar, aí é outra história Aquieta o seu coração. Primeiro você precisa tratar desse coração que o Júlio quebrou, depois pensa em amor.
Leandro também desabafou de todas as angústias que vivia. Do quanto se sentia mal e sufocado perto de Júlio.
_ É uma sensação esquisita sabe..._ Leandro fitou a janela do restaurante, mas não prestava atenção em nada do lado de fora._ Na noite que ele me beijou, eu me senti como se beijasse um estranho. Ele me incomoda de um jeito que... Sei lá... não se explicar. É como se eu não o conhecesse.
_ Tudo isso está acontecendo porque você acordou. Antes você se agarrava a imagem que criou do Júlio. Era uma forma de auto negação para rejeitar a realidade horrível que você vivia. Júlio te atormentava e depois mentia que ia mudar. Você nunca acreditou, mas queria acreditar e se apegava a essa ilusão. Você não queria ver o Júlio como ele é, e sim como o idealizava. Mas, a verdade não se enfeita. Uma hora ela esfrega tudo na sua cara. Você teve que acordar. E agora está vendo o verdadeiro Júlio.
_ Eu não sei se ainda conheço o verdadeiro Júlio. Há tantas coisas no passado dele que eu desconheço.
_ Como o quê?
_ Vira e mexe Júlio tem uns pesadelos. Ele acorda desesperado e sempre que tento tocar no assunto, ele fica pálido e nervoso. Com uma expressão de horror.
_ Será que Júlio já matou alguém?
_ Você e as suas pérolas._ Leandro disse revirando os olhos.
O garçom se aproximou com as sobremesas. Para ela uma fatia de torta holandesa de limão, para ele pêssego em calda com mel.
_ Você vai viajar comigo, né? Eu já comprei as duas passagens de primeira classe para Maceió.
_ Você comprou as passagens sem saber se vou ou não?!
_ Eu sei que você vai.
_ Ah, é? Como sabe?
_ Por que eu quero que você vá.
_ Que dominadora! Acho melhor colocar as algemas em mim e usar o chicote.
_Hum! Tô ficando excitada.
Eles sorriram um para o outro. Valéria se aproximou e o envolveu com o seu braço, lhe dando um selinho demorado.
_ Eu gostaria muito de ir. Mas o clima lá em casa tá péssimo. Júlio e Vanessa brigados.
_ Problema deles! Quantos carnavais você passou em casa chorando porque o seu marido estava de fogo com os machos na rua? E onde estava a sua filhinha? Viajando e cagando pra você. Júlio, por estar machucado, vai ter que ficar em casa fodido e Vanessinha tá se fodendo porque o paizinho dela a pôs de castigo, o que é bem feito pra ela, que sempre puxa saco do Júlio. Bijuzinho, você precisa viver um pouco. Se soltar pra vida.
_ Você tem razão. Eu vou.
_ É isso aí! Esse é o meu bebê.
A manhã de quinta-feira estava ensolarada. Leandro arrumava malas sorridente. Encontraria com Valéria no aeroporto dali a uma hora. Quando a amiga disse que ficariam hospedados no hotel Morada do sol, ele ficou muito feliz. O hotel era cinco estrelas e conhecido por ser um resort e spar ao mesmo tempo. Leandro pensava nas massagens e nos dias relaxantes que teria.
Informou sobre a viagem a Abner no dia anterior por meio de uma mensagem. Todos os dias, o amante o chamava no WhatsApp enviando mensagens carinhosas e perguntando de como havia sido o seu dia.
Quando soube da viagem, desejou a Leandro que tivesse os melhores dias de sua vida e que continuasse a responder as suas mensagens.
No entanto, Abner não estava tão feliz com a viagem de Leandro por dois motivos: um era a saudade que iria sentir, o outro era uma ponta de ciúmes.
"Ele é bonito. Vai estar num lugar paradisíaco em pleno carnaval. Com certeza vai atrair muitos olhares. E se gostar de alguém? Se foder com outro? Pior, se me esquecer?"
Abner não quis transparecer o seu ciúme para Leandro por medo de parecer ridículo. Preferiu lidar com a insegurança calado.
_ Eu nunca senti isso por ninguém._ Abner dizia a si mesmo olhando para o espelho. Lavou o rosto e se olhou novamente._ Nunca senti ciúmes. Isso é tão estranho! O que você fez comigo, Leandro?
A Vanessa Leandro informou também no dia anterior. A menina não gostou nada de saber que o pai se divertiria enquanto ela ficaria presa dentro de casa. Mas, optou por ocultar a inveja. Ela não queria chatear Leandro. Coitado merecia se divertir um pouco.
Foi sincera quando o abraçou e desejou uma boa viagem.
Para a família não ficar sem cuidados, Leandro foi ao supermercado e comprou todo o que fosse necessário para passarem os dias de carnaval. E também, ofereceu uma quantia a mais para que Patrícia trabalhasse nos dias em que estivesse fora.
_ Eu fico com todo o prazer. Deixo as crianças na casa da minha mãe. Eu quero mesmo é que você se divirta.
_ Obrigado, querida. Para ficar mais seguro, você pode dormir aqui. E nada de dormir no quartinho da lavanderia. Quero que durma em um dos quartos de hóspedes. Qualquer coisa pode me mandar mensagem ou ligar.
_ Só se acontecer alguma emergência. Eu não vou incomodar o seu sossêgo mesmo.
Leandro conhecia muito bem o temperamento de Júlio. Sabia que o marido não aceitaria. Por isso, resolveu contar no dia da viagem.
Desceu as escadas arrumado para sair, carregando uma bagagem de carrinho. Júlio estava sentado na sala, assistindo TV.
Vanessa estava no quarto dormindo. Antes de sair, Leandro se despediu dando um beijo em seu rosto.
_ Que porra é essa?! Aonde você vai?
_ Eu vou para Maceió.
_ Maceió?! Com quem?
_ Com a Val.
_ Você só pode estar de brincadeira, né?
_ Eu pareço estar brincando?
_ Você tá louco se tá achando que vou te deixar viajar sozinho no carnaval. Ainda mais com aquela piranha louca.
_ Não fale assim dela! A dispensa está abastecida, Patrícia vai ficar aqui durante esses dias para cuidar da casa. Ela vai dormir no quarto de hóspedes. E daqui a pouco, chegará um enfermeiro para te dar toda a assistência necessária: cuidar dos seus curativos e te auxiliar no banho. Eu estou indo. Espero que tenha um ótimo carnaval.
Leandro se virou para sair. Parou quando Júlio gritou:
_ Que porra é essa?! Quem você tá achando que eu sou? Algum otário? Eu to todo fodido e vou ficar em casa, enquanto o meu homem vai ficar piranhando por aí?! Nem pensar. Você não vai a lugar algum, Leandro.
Leandro virou para trás.
_ Eu vou sim.
_ Não vai. Não com os meus cartões de crédito e débito... não com o meu dinheiro e muito menos com o carro que eu comprei pra você. E nem adianta, sair por aquela porta que mando cancelar todos os cartões.
_ Eu não acredito que você vai ter coragem de fazer isso, Júlio.
_ Vou. Se quer boa vida, eu te dou boa vida, mas para isso terá que me obedecer.
O sentimento de humilhação o fez abaixar a cabeça. Retirou a carteira do bolso e entregou os cartões ao marido.
_ Não precisa se dar ao trabalho de cancelar nada. Aqui estão. Já com o carro, não se preocupe, que ele nem vai sair da garagem.
Júlio estufou o peito se sentindo vencedor. No entanto, a decepção bateu quando viu Leandro caminhar em direção a porta.
O seu sorriso se desfez.
_ Leandro, volte aqui! Leandro! Leandroooo!