PARTE 5 - MARCELO
O dia estava muito doido, primeiro aquele maldito sonho que me fez ficar o resto da noite acordado me questionando.
Logo que escutei barulho na cozinha, eu sai do colchão, deixando o pessoal dormindo no quarto e fui fazer companhia a minha mãe.
Lógico que ela percebeu que tinha algo errado, apesar de ter mais de dez anos que eu não morava com ela, Dona Cida sabia o prazer que eu tinha em dormir ate tarde.
Minha mãe não me perguntou nada, mas o Claudio sim.
- caiu do colchão? - ele me pergunta sentando ao meu lado.
- Não, só perdi o sono.
- Estranhei, você nunca acorda primeiro que eu.
Eu abaixo a cabeça e finjo prestar a atenção no meu café. Se minha mãe me conhecia ao ponto de saber que tinha algo errado, Claudio me conhecia ao ponto de ler minha mente, e eu não queria isso agora.
Eu não sabia o que estava acontecendo comigo, mas eu não podia ficar perto do Claudio, não enquanto não colocasse minha mente em ordem. Assim, evito seu convite de passeio e digo que vou ajudar minha mãe no mercado.
- Eu posso ir com vocês e ajudar, depois a gente sai.
- Não. Pode deixar comigo, vá se distrair. - Digo e dou um sorriso.
Sim, eu estava parecendo um covarde. Fui salvo quando me irmão entrou na cozinha, ele e sua esposa estavam felizes e logo fico sabendo o motivo. Vou ser titio.
Me distraindo com a felicidade do Maycon, tento não pensar em mais nada ate que Claudio sai de casa para dar uma volta pela cidade.
Eu vou para o meu quarto e logo sou seguido por Marina.
- Malu esta adorando a atenção que esta ganhando dos tios. - Ela diz e deita na cama, depois bate no colchão para que eu me deite ao seu lado.
- Quem não ama nossa filha?
Marina me faz deitar em cima da sua coxa e começa a passar a mão por meus cabelos.
- E qual é o seu problema?
- Eu? Nenhum...
- Ah, qual é? Desde que você viu a puta da Clara ontem, você esta estranho.
- Como assim "puta"? Você nem a conhece.
- Nem preciso, o Claudio me contou tudo sobre ela.
- Serio? O que ele disse.
- Que você era apaixonado por ela, tinha plano de casar, formar família e ir tomar conta do sitio da família. Ate que descobriu que ela te traia com metade do colégio. Ah, antes disso, ela deu em cima do Claudio e depois tentou colocar vocês um contra o outro.
- Ele te contou tudo...
- Não fica com raiva dele, nós somos família e eu queria saber um pouco mais do motivo de você ser assim...
- Assim como?
- Desculpa, falei demais.
- Não, me diz, assim como? - eu pergunto e levanto do seu colo, a olhando.
- Celo, você demora a confiar nas pessoas, - ela diz e alisa meu rosto - a deixar que elas entrem na sua vida. Lembra como pobre do Gustavo sofreu contigo?
- E o que isso tem a ver com a Clara?
- Bem, eu acho que isso você que tem que descobrir, só não afasta a gente, e principalmente o Claudio.
- Não, isso nunca.
- Você fez isso hoje. E serio, você morando num sitio? Não consigo imaginar isso.
- Era uma outra vida, um outro Marcelo.
Marina se inclina e me beija, depois levanta da cama e me deixa sozinho no quarto. O que eu tenho que descobrir? Que a Clara quebrou minha confiança nas pessoas e por isso eu não confio em ninguém, isso eu sei...
Talvez o que estava me incomodando não seja rever a Clara, ela já não significa nada para mim.
"Você não é pequeno demais para ficar sozinho no bar?" lembro de ter perguntado para o filho dela. "Não, mamãe fala que eu já sou um rapazinho", mas o quanto ele é um rapazinho? E por que ela colocou o nome dele de Pedro?
Droga... Eu não ia ficar com isso na cabeça. Não vou estragar o natal da minha família. Dou um suspiro e levanto da cama, vou à procura da minha mãe e a chamo para irmos ao mercado.
O mercado esta cheio, não tão cheio quando a lista de compras da minha mãe. Ela vai pegando as coisas enquanto eu empurro o carrinho. Depois de muito tempo, estamos na fila para pagar.
- Oi Dona Cida, me trocou hoje? - pergunta o garoto que fica ajudando a embalar as compras no caixa.
- Eu trouxe meu filho hoje, mas compramos mais do que podemos carregar, então vou precisar de você.
- Seu filho? Esse eu não conheço.
- Você era muito pequeno quando ele foi morar no Rio de Janeiro.
- É esse que é o Marcelo? - ele pergunta com interesse.
- Sou eu sim, e você quem é?
- O pessoal me chama de Bocão, eles dizem que eu falo mais do que devia.
- Serio? - pergunto fingindo surpresa. - nem imaginada.
Eu pago a conta da compra, enquanto minha mãe reclama por isso. O garoto, Bocão, fica assistindo hipnotizado, eu discutir com ela.
- Você sempre esta por aqui? - eu pergunto para ele, quando venço a discussão das comprar com minha mãe.
- Sim, eu trabalho aqui, Eu sempre ajudo sua mãe com as compras.
- Fico feliz em saber disso. Aqui, pega essas bolsas, você consegue? - O garoto parecia tão pequeno, mas ele era forte, - você tem quantos anos? - pergunto quando começamos a andar em direção a casa.
- Do.ze. - ele me respondeu com um sorriso do tipo "aposto que você não esperava por essa"
- serio? Você parece ter menos.
- Sempre falam isso.
- Mas eu quando tinha a sua idade, também era assim, né mãe?
- Sim, você é o Claudio pareciam que competia para ver quem era o mais miúdo, depois tivera um surto de crescimento.
- Claudio?
- Sim, meu amigo, ele mora comigo.
- No Rio? E ele veio com você? - Bocão me perguntou.
- Sim
- Legal - ele respondeu e seus olhos brilharam por um momento.
Eu dei um sorriso com sua resposta, não sei o que o garoto tinha, mas eu queria que ele continuasse falando.
- Por que você estava no mercado?
- Eu já disse, eu trabalho lá.
- Você é novo demais para o mercado de contratar.
- Sim, eu só ajudo com as bolsas e ganho uns trocados.
- Sei... - respondo olhando para ele. Bocão era um garoto pequeno para sua idade, suas roupas não estavam em melhores condições, seus cabelos grandes por falta de corte e não por estilo. - Sua mãe...
- Morreu, eu moro com meu tio, ele não é meu tio de verdade, mas é quem eu tenho... Chegamos.
Era verdade, eu olho para minha mãe que vai um pouco à frente, ela coloca algumas de suas bolsas no chão e abre o portão, depois vai abrir a porta.
- Não tem ninguém nessa casa para ajudar com as bolsas? - Escuto ela gritar.
Logo Murilo chega, meu irmão pega as bolsas que minha mãe deixou no chão e mais algumas da minha mão. Nossa, aquilo tava pesado. Bocão continuava segurando seu peso e eu pego algumas bolsas dele.
Dentro de casa, levamos as bolsas ate a cozinha. Claudio já tinha voltado do seu passeio, eu não tinha visto que ele também ajudou nas bolsas.
Colocamos as bolsas em cima da mesa e minha mãe chama o Bocão para dar um dinheiro pela ajuda dele. Eu apalpo meus bolsos procurando onde deixei dinheiro para dar também para ele.
- É ele? - Escuto o garoto me perguntar.
- Ele quem? - pergunto sem entender, tirando a mão do meu bolso, olho em volta e vejo que Claudio tinha se aproximado da gente. Bocão tinha olhado para ele e logo olha para mim de novo - Ah, sim. Você quer saber se ele é o Claudio? É ele mesmo.
De repente Bocão abre um sorriso, o primeiro desde que o conheci, ele se aproxima do meu amigo e o abraça.
Sem entender, Claudio o abraça de volta. Quando o garoto se afasta, percebo que seus olhos estão cheios de lagrimas.
- Ta tudo bem, amigo? - Claudio pergunta se ajoelhando na frente dele.
- Eu não sou seu amigo - Bocão diz, não como se estivesse o respondendo, mas como se estivesse apenas contando um fato - Eu sempre quis conhecer você.
- Me conhecer? - Claudio claramente estava sem entender, não que alguém naquela cozinha estivesse entendendo a reação do Bocão.
- Sim. Eu sou o Bocão, sou seu irmão.
- Caralho - eu solto sem perceber.
Minha mãe me lança um olhar indignado. Claudio olha para o garoto e então olha para mim.
- Que brincadeira é essa? - Claudio pergunta e me olha, eu dou de ombro, então ele volta a encarar o garoto - eu não tenho irmão.
- Filho, senta aqui - Minha mãe se aproxima de Bocão e segura a mão dele, o puxando para cadeira. Eu vou para o lado do meu amigo, que ainda olha pro garoto - Você deve está um pouco confuso.
- Eu não tô, Dona Cida, meu tio me contou - Bocão então olha para gente - Você é o Claudio, que morava do outro lado da rua e foi embora pro Rio?
- Sim - Ele responde um pouco aéreo.
- Então... Somos filhos do mesmo homem, você é meu irmão.
- Foi seu tio que disse isso? - pergunto e seguro a mão do Claudio. - quem disse que é verdade?
- Meu tio é um bosta, desculpa - ele pede olhando para minha mãe - mas por que ele mentiria para mim?
- Meu filho, de repente ele se enganou, o pai do Claudio não teve outro filho.
- Eu preciso me sentar - Claudio diz e eu o acompanho, ele senta do outro lado da mesa. - quando seu tio disse isso?
- Tem um tempo, quando seu pai morreu, meu tio me falou que... - Bocão abaixa a cabeça
- Falou o que? - minha mãe perguntou
- Que o bêbado da cidade era meu pai e finalmente tinha morrido. Desculpa - Bocão tinha falado ainda de cabeça baixa.
- Eu não acredito, não entendo. - Claudio diz mais para si.
- Olha, - Bocão levanta a cabeça – eu não espero nada de você só queria te conhecer, e foi um prazer - o garoto levanta da cadeira - Muito obrigado pelo dinheiro Dona Cida, agora eu tenho que ir.
- Espera - Claudio diz se levantando, mas o garoto já esta na porta e continuou andando, quando chegamos lá Bocão já tinha sumido.
- Que porra foi essa? - eu pergunto.
- É... Que porra foi essa? - Claudio repete ainda olhando para rua.
Eu puxo meu amigo para sala, minha família estava toda ali, nos olhando. Droga, agora não era hora, eu levo meu amigo para o quarto e o faço sentar na cama, sentando ao seu lado.
Começo a contar como conheci o Bocão e o que ele me disse entre o caminho do mercado ate em casa.
- Ele tem doze anos? - Claudio pergunta. - Não parece, isso significa que ele tinha dois anos quando fomos embora daqui. Naquela época meu pai bebia demais, mas por pior que ele fosse, ele não ia me esconder que tinha um filho, ia?
- Talvez ele não soubesse, se é que isso é verdade...
- Eu preciso descobrir se é verdade. - Ele diz e eu o abraço.
- Eu sei.
- Imagina se for verdade, descobrir agora que eu não sou sozinho, que tenho um irmão.
- Você nunca foi sozinho, nunca.
- Eu sei, desculpa...
Ficamos abraçados no quarto, sem dizer nada, mas nossas cabeças estavam cheias.
Alguém bate na porta, Claudio ameaça sair do meu abraço, mas eu o prendo ali, sem me importar com quem bate.
Marina entra no quarto com Malu. Malu é incrível, ela parece saber que seu pai não estava bem, e logo foi para ele, pedindo colo e atenção.
- Hugo chegou, ele vai levar seus irmãos para o sitio e volta para nos buscar.
- Eu não posso ir - Claudio diz - não agora, preciso descobrir sobre meu suposto irmãozinho.
- Nós ficamos, o natal é na sexta-feira, temos tempo ate lá.
- Imaginei que vocês fossem falar isso, talvez seja melhor eu ir pro sitio com a Malu, assim vocês não se preocupam com a gente.
- Tem certeza?
- Claro, sua família é incrível, e o Hugo vai estar lá.
- Então ta bom, o Hugo fica com o carro e nós ligamos quando formos para lá.
Marina confirma e diz que vai avisar para minha família, ela deixa Malu com a gente ate a hora de ir embora.
Quando o pessoal vai embora ficamos em casa planejando o que vamos fazer com a história do Bocão. Qual será o nome dele? Pergunto para minha mãe antes dela ir embora, mas ela não sabe.
Jantamos em silencio e logo depois Claudio vai para o quarto, eu fico na cozinha lavando a louça e depois vou atrás dele, ele estava deitado na cama e falando no celular, quando eu chego, ele se despede e desliga.
- O Guga mandou um abraçado.
- Ta tudo bem com ele?
- Sim, só com saudade da gente.
- E com você, esta tudo bem? - pergunto me jogando do seu lado e o abraçando.
- Ta sim - ele disse ficando de costas para mim e segurando meu braço sobre ele.
Eu me aproximo mais, encaixando meu corpo a sua volta e o abraçado ainda mais forte, beijo seu pescoço e fico o ninando ate dormir.
CONTINUA...
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Obs.1: Esste conto é uma continuação direta dos contos "Na Web" e "Antes da Web" e seria bom se fosse lido da ordem.