Ele deu um sorriso. Certamente pensava que havia conseguido me trazer de volta. Mas eu só queria parar aquela conversa, porque estava me incomodando. Naquela hora olhei para o visor de meu celular e na área de notificações havia o símbolo de uma ligação recusada. “Agenor”, me lembrei. Precisava retornar aquela ligação o quanto antes. Ele poderia ser uma peça chave em meus planos futuros.
[...]
Fui acompanhada pela atendente até uma sala no piso inferior e ali recebida por uma moça no alto de seus trinta anos, morena com aproximadamente 1,55m de altura e não mais que uns 50kg. Era o exemplo literal do que se chama “mignon”. Sorridente me acolheu dentro de seu consultório:
- Dona Fernanda, meu nome é Camila. Sou ginecologista e filha do Dr. Galeano. - Se apresentou e continuou: - Ele me para coletar amostras para uma série de exames.
- É um prazer, doutora. Pode me chamar somente de Fernanda.
- Ok, Fernanda. Ele também me pediu sigilo absoluto em virtude do motivo que originou os exames e quero que você fique tranquila: tudo o que falarmos aqui ficará restrita ao meu consultório.
- Obrigada, doutora.
- Preciso te fazer algumas perguntas antes para saber quais materiais terei que coletar, ok?
- Ok.
- No dia do fato, você se relacionou com quantas pessoas?
- Eu não me relacionei, doutora. Fui subjulgada e violentada. - Tratei de enfatizar.
- Não… Sim, é claro. Desculpe, minha colocação.
- Tudo bem. Com três, pelo que me lembro.
- Certo. - Disse enquanto anotava em um bloco: - Praticaram sexo oral, vaginal e anal?
- Que eu me lembre, sim; mas não com todos. Acho que oral com dois, parece que um deles gozou, e vaginal e anal com outro, que se me lembro bem usava camisinha e não gozou. - Respondi claramente constrangida.
- Por favor, fique tranquila. São perguntas necessárias para eu avaliar quais e qual a profundidade dos exames terei que fazer. - Se explicou e continuou: - Me fale dos dotes deles? Você chegou a ficar machucada?
- Os dois do oral eram bem dotados, mas não transei com eles, pelo menos não me lembro, acho que não. O terceiro era de pequeno para médio. - Falei tentando procurar as palavras: - Machucada fisicamente, não. Meu ânus ficou dolorido, mas nada grave; mas psicologicamente não posso te garantir nada.
Ela parou por um instante e colocou sua mão sobre a minha, tentando me passar alguma segurança e empatia, então continuou:
- Porque a senhora diz que acha se lembrar?
- Acho que fui drogada, por tenho lapsos de memória…
- Entendo… Que dia isso aconteceu?
- No sábado passado.
Ela parou um minuto, avaliando a informação e retornou:
- Infelizmente, seu organismo já eliminou quaisquer vestígios de droga que eles possam ter lhe dado. Há, entretanto, uma exame que verifica vestígios no seu cabelo. Gostaria de fazê-lo?
- Prá quê? Eu não vou denunciar ninguém. - Respondi, contrariada.
- Não vai denunciar? Fernanda você foi claramente estuprada. É uma das mais violentas e impensáveis violência que se pode praticar contra a mulher. Eles merecem ser punidos!
- Você parece ser meu marido falando. - Disse, a encarando e continuei: - Ele é advogado, doutora, estou ciente de tudo, mas realmente não posso denunciá-lo.
- Acho que você está errada, me desculpe. Talvez você ainda esteja em choque, mas deveria reconsiderar… - Falou claramente contrariada.
- Não… e vou te explicar o porquê da minha decisão. Tente se colocar no meu lugar: moramos eu e minha família numa cidade do interior de MG com menos de 30000 habitantes. Lá a internet é lenta, mas a fofoca viaja na velocidade da luz. Se eu denunciá-lo, certamente a notícia chegaria na minha cidade e todos descobririam que eu e meu marido temos um relacionamento liberal. - Acabei me abrindo, falando mais do que queria, mas continuei: - Agora, imagine as pessoas supostamente religiosas e carolas nos apontando na rua como desviados/pecadores; imagine o estrago no nome profissional de meu marido, sendo chamado de corno ou frouxo; imagine como eu seria vista pela comunidade, certamente me apontariam como uma puta; imagine ainda o "bullying" que praticariam contra nossas filhas, chamando-as de filhas da puta e de corno; imagine o efeito em nossas famílias tradicionais, fechadas, católicas apostólicas romanas, que certamente nos repreenderiam e ainda diriam que a culpa foi nossa. Agora some tudo isso e responda sinceramente: se estivesse em meu lugar, faria a denúncia?
A médica se calou por um instante, chocada com todas aquelas informações. Certamente também viu que meus olhos marejaram e com uma empatia imensa, se aproximou e me deu um abraço fraternal:
- Desculpe. Eu não tinha o direito de me meter assim na sua vida. Eu nem consigo imaginar a dor que você está passando.
- Pois é.
- Bem… Vou pedir para você ir o banheiro, tirar sua roupa e colocar este robe. - Entregou-me um robe azul: - Depois volte para eu fazer um exame completo em você coletar as amostras.
- Exame?
- Sim, mas fique tranquila. Acredito que você não tenha nada. Ainda assim preciso seguir o protocolo para apurar eventuais doenças.
Apesar de eu ter pensado que somente faria coleta, aquilo não me pareceu incorreto. Então segui sua orientação:
- Deite-se na maca, por favor. - Ela me pediu.
Fez então uma série de exames físico, verificou existência de hematomas, traumas físicos, lesões, avaliou todo o meu corpo como meus órgãos genitais e boca:
- Essas marcas em seu corpo…
- Sim, são daquele dia. - A interrompi.
Então, ela coletou amostras de minha vagina, ânus e boca, lacrando-as e as enumerando:
- Fernanda, aparentemente você não possui lesão alguma. Mas alguns exames ainda terão que ser repetidos para termos plena certeza, ok?
- Repetir?
- Sim. Daqui a aproximadamente cinco semanas você deverá voltar para eu renovar os exames para verificar eventual infecção por gonorréia, clamídia, HPV, sífilis e hepatite.
Eu devo ter me encolhido, ou sei lá:
- Fica calma. Vou te ajudar em todos os momentos. - Disse, enquanto colocava uma mão sobre a minha e me olhava nos olhos: - E, infelizmente, ainda tem mais.
- Mais?
- Com noventa dias, vamos repetir o teste de HIV. Depois com seis meses, repetiremos os de sífilis, hepatite e HIV.
- Poxa, doutora. Isso vai acabar com meu casamento. - Lamentei.
- Não. Não vai. Vocês terão que ser fortes agora nesse período, depois é vida normal.
- Normal se eu não tiver sido infectada com alguma doença… - Lamentei novamente.
- Calma, Fernanda. Fisicamente você está bem. Não verifiquei nenhuma lesão aparente. Além disso você tem uma boa saúde. Tudo isso, por si só, dificulta uma infecção. Vamos manter uma mentalidade positiva. Tudo bem?
- Eu não vou poder tocar e beijar minha família? - Perguntei, aflita.
- Tocar é claro que pode. Beijos na face geram um risco mínimo para sífilis, gonorréia e clamídia, quase inexistente mesmo, mas beijos na boca podem gerar risco se uma ou ambas as pessoas tiverem alguma lesão na mucosa oral. Seria bom evitar, por enquanto.
- Ah, meu Deus!...
- HPV e HIV somente pelo contato sexual vaginal e anal, ou oral se tiver lesão. Mas é só usar preservativo e uma boa higiene pós ato sexual.
- Tá, tá. E quanto tempo para os resultados ficarem prontos? - Perguntei.
- Alguns entre três e dez dias. O HPV pode demorar mais, até trinta. - Parou por um momento e continuou: - Meu pai já ligou no laboratório para fazer a coleta de seu sangue?
- Sim. Saindo daqui já iremos para lá.
- Então, vem comigo. Eu te levo e já aproveito para deixar suas amostras. - Falou.
Me troquei no banheiro novamente e saímos. Em quinze minutos já estávamos entrando no laboratório e não devemos ter ficado mais que vinte minutos lá. Logo já voltávamos para o consultório:
- Obrigada, doutora. Já me ajudou bastante. - Disse.
- Fernanda, por fim, eu, como médica, sou obrigada a fazer uma notificação administrativa para a Secretaria de Saúde e…
- Notificação!? Não, nada disso! - Respondi já me levantando: - Ninguém me falou nada sobre notificação, senão nem teria vindo.
- Entendo, mas é apenas uma notificação para fins estatísticos. Ninguém ficará sabendo.
- Não! Não, não e não!
Na saída do banheiro, ela me esperava de pé ao lado da porta:
- Tudo bem. Tudo bem. Não quero estressá-la mais do que já está. Vou acompanhá-la até o consultório de meu pai e lá decidiremos como proceder. Pode ser? - Me perguntou.
- Tudo bem. - Respondi, já abrindo a porta de sua sala.
[...]
Na sala do Dr. Galeano eu degustava um café, sentado de frente para ele:
- Por que ela está demorando tanto? - Perguntei.
- É um exame simples, mas por ser invasivo, íntimo, a abordagem deve ser delicada e suave, a fim de não constrangê-la ainda mais. Mas fique tranquilo, minha filha já atendeu casos semelhantes. - Respondeu.
- E você, Mark? Desistiu daquela história de vingança? - Insistiu.
- Doutor, pare com isso! Não vou falar sobre isso com o senhor. Eu não quero. Minha prioridade é a Nanda. Depois eu decido o que fazer…
Ele por mais que tentasse não conseguia entrar no assunto comigo porque eu sempre o limitei. Vendo que não conseguiria uma abordagem direta, passou a divagar, enquanto esperávamos o retorno da Nanda:
- Mas me fale de suas filhas, qual a idade delas?
- Onze e seis anos, doutor.
- Que delícia! Idade boa, sem preocupação nenhuma. - Disse dando um sorriso: - Elas já falam o que querem ser no futuro?
- Então, a mais velha já quis ser advogada, veterinária, agora está totalmente indecisa. A diretora da escola chegou a insinuar que ela teria dom para Arquitetura, porque realmente desenha muito bem. Mas acho que é muito cedo ainda para qualquer definição. - Falei.
- Claro que sim, mas a fantasia ajuda a moldar a realidade. Ela imaginar e fantasiar viver aquela situação, pode facilitar a escolha futura.
- É pode ser. - Tomei um gole de café e continuei: - A mais nova quer ser tudo o que vê pela frente. A última fez que conversamos ela queria ser cantora, veterinária, dona de casa e mãe de dez.
- “Mãe de dez”? - Riu o doutor Galeano.
- Pois é. Ela ainda não sabe o trabalho que dá criar somente um. - Respondi também rindo.
- Por isso te falo que a vingança não vale a pena. Veja a família que tem. Considere como elas precisam do apoio e do pulso forte do pai até crescerem e aprenderem a se virar sozinhas. Acha mesmo que um pequeno momento de satisfação valerá o risco de perder todo o prazer da convivência com elas e suas descobertas? - Falou, novamente me encarando.
Ele era bom. Nesse momento me calei e desviei o olhar, não pela conclusão dele, mas porque eu não tive o “pulso forte” que a Nanda precisou:
- Mark? - Disse o doutor Galeano: - O que foi?
- Nada, doutor. Nada. Deixa pra lá.
- Fale comigo, rapaz. Deixe-me ajudá-lo a interpretar seus sentimentos.
- “Pulso forte” foi justamente o que não tive quando a Nanda precisou…
- Mark. Não se culpe pelo que aconte…
Foi interrompido por dois toques em sua porta:
- Nós continuamos depois. Deve ser sua esposa. - Disse enquanto se levantava para abrir a porta.
Nanda então entrou com a cara fechada e se sentou na sua poltrona. Atrás dela, uma médica que eu ainda não conhecia, certamente a filha do doutor Galeano:
- Doutor Mark, está é minha filha Camila. - Disse enquanto a trazia para perto de mim: - Camila, este é o doutor Mark, esposo da Fernanda.
Levantei-me para cumprimentá-la e tive a impressão de que ela me lançou um olhar atravessado, de reprovação. Fiz de conta que não notei e voltei a me sentar:
- Posso falar com o senhor, pai?
- Claro. Só um minuto, meus amigos.
Notei que eles começaram a conversar sobre os exames da Nanda e sobre uma notificação, situação que Nanda não queria e eu respeitava. Como advogado, na hora saquei meu celular e ativei um aplicativo para gravar as conversas do ambiente. Por mais baixa que fosse a gravação, se necessário melhorá-la, bastaria utilizar um programa específico de áudio. Se ela fizesse algo à nossa revelia e/ou contra nossa vontade, eu agiria da forma mais dura possível:
- Doutores! - Falei em alto e bom som: - Se querem tratar de um assunto relacionado a minha esposa, queremos participar.
- Mark, minha filha me disse que a Fernanda não quer fazer uma notificação administrativa relatando a ocorrência do estupro e minha filha insiste em fazer. - Disse o doutor Galeano: - Essa notificação é apenas para fins estatísticos.
- Nanda? - Perguntei.
- Não quero. Não quero correr risco algum disso vazar. - Falou, enfatizando.
- A resposta está dada, doutor. Assunto encerrado.
- Eu não concordo. Até aceitei os motivos dela para não denunciar o agressor, mas a notificação não gerará efeito algum. - Insistiu a médica.
- Doutora, entenda: minha esposa, apesar de fragilizada, tem fortes argumentos para não querer que nenhuma informação vaze a respeito do que aconteceu. Respeite isso.
- Eu não concordo e farei a notificação. - Teimou.
- Está vendo este celular. - Apontei para meu aparelho e disse friamente: - Ele está gravando desde que a senhora entrou e começou a discutir com seu pai sobre a notificação. Caso a senhora não respeite a vontade de minha esposa e faça a notificação, eu utilizarei todos os instrumentos jurídicos disponíveis para cassar seu registro no CRM, além de processá-la por eventuais danos materiais e morais que possam ser decorrentes de um vazamento dessas informações.
- Você está me ameaçando? - Perguntou alterando seu tom de voz.
- Doutora, não lhe dei intimidade para me chamar de você. Para a senhora sou doutor Mark. - Disse me colocando de pé: - E não, não a estou ameaçando. Para seu conhecimento, ameaça pressupõe a prática de algo ilegal, uma agressão, por exemplo; a advertência, por sua vez, pressupõe a prática de um procedimento legal. Então, eu estou lhe advertindo que a senhora não gostará de conhecer meu lado profissional.
Surgiu um silêncio. Camila me olhava com raiva. Já o Doutor Galeano estava com olhos arregalados e, depois de analisar os fatos, falou:
- Camila, você não fará notificação alguma.
- Mas pai… - Quis insistir.
- Mas nada! Se Fernanda não te autorizar, você não fará, e ponto final!
Ela me lançou um último olhar de ódio e saiu da sala pisando alto:
- Nanda, acho que já podemos ir…
- Por favor, Mark, não. - Me interrompeu e continuou: - Peço desculpas por minha filha. Acredito que ela tenha ficado “mexida” com o que aconteceu com Fernanda. Ela não é má, só não está madura para certos assuntos ainda.
- Que é isso, doutor? Sua filha tem quantos anos? dez? A minha primogênita deve ser mais equilibrada que ela. - Falei claramente contrariado: - Começo a duvidar de seu equilíbrio profissional para clinicar.
- Mark. Para. - Me pediu Nanda.
Olhei para Nanda, raivoso ainda, e depois para o doutor Galeano que se mantinha calado. Eu havia extrapolado:
- Desculpa, doutor. Não devia ter falado isso. Só estou com a cabeça quente…
- Fica tranquilo, meu rapaz. Não se preocupe com minha filha. Eu me responsabilizo por ela. - Disse enquanto colocava a mão em meu ombro: - Mas, por favor, sente-se. Vamos conversar mais um pouco.
Ele sabia ser convincente. Olhei para Nanda e ela balançou positivamente sua cabeça. Então, voltei a me acomodar:
- Posso falar uma coisa? Gostei de sua reação, da forma como você se levantou para defender sua esposa, ficou mais claro para mim o sentimento que os une.
Olhei para Nanda e ela esboçou um sorriso para mim:
- Bem, Fernanda, tirando esse imprevisto, como foram os exames? Minha filha comentou algo?
- Ela disse que aparentemente está tudo bem. Colheu as amostras e como tinha que levá-las no laboratório, aproveitou e me levou também. Disse que assim que os resultados forem ficando prontos, entregará para o senhor.
- Maravilha, Fernanda! - Disse e se voltou para mim: - Vê, Mark? Minha filha tem os problemas dela, mas é uma boa pessoa.
- Eu acredito que sim, doutor. Depois quero pedir desculpas para ela por ter me exaltado… - Respondi.
- Bem, Fernanda, retomando de onde paramos estive pensando e, se você preferir, posso utilizar com você a mesma técnica que utilizei com Mark, te ajudando a revisitar os fatos daquele dia? Vou relembrando a estória que ele me contou e a senhora me corrige ou complementa os fatos quando quiser. O que acha?
- Eu ainda não estou certa, doutor. - Respondeu envergonhada.
- Quer que eu saia? - Perguntei outra vez.
- Não. Não mesmo.
Vendo que não sairíamos daquilo se alguém não tomasse uma iniciativa, me levantei, retirei a mesinha que estava entre nossas poltronas, colocando-a de lado, coloquei minha poltrona bem próxima da dela e me sentei. Eles ficaram me observando todo o momento, sem nada entender:
- “Dá o pezinho, Lôro!?” - Falei para ela enquanto esticava minha mão em sua direção.
Ela deu um sorriso gostoso na mesma hora e entendeu o que eu estava fazendo. Era uma brincadeira nossa. Deu-me sua mão em seguida:
- Vai me pedir em casamento novamente também? - Perguntou me olhando.
- Não. É que preciso da sua mão para assinar o divórcio. - Rebati, rindo na sequência.
- Ah, vá… Mark. - Respondeu também rindo.
O Doutor Galeano somente nos observava com um sorriso no rosto. Ele entendeu na hora que eu estava quebrando o gelo e a preparando para o que viria a seguir:
- É o seguinte, Nanda. Ele vai recontar a estória sob a minha ótica, com base nas minhas informações. Não vai ser legal, mas é necessário. Quando quiser fazer alguma correção é só você falar. Ok? Não adianta ficar fugindo ou protelando, enfrenta. Eu estou aqui. - Disse para tranquilizá-la.
Quando fiz menção de puxar minha mão para me recostar melhor, ela me segurou forte:
- Devolve meu poleiro ou não vou dar conta. - Me pediu.
Então, ficamos ali de mãos dadas enquanto o doutor Galeano recontava toda a nossa história de vida. Ele tinha anotado tudo o que havíamos conversado. Nas palavras dele, eu me senti personagem de um conto. Ela ouvia tudo com a cabeça baixa, mas aceitou bem. Ele lembrou o início de minha fantasia e o início dela: o exibicionismo, a primeira brincadeira no rodeio com Cadú, depois a primeira vez na praia com o Caio, nossa trepada com a Laura. Vendo que ela parecia constrangida com tudo aquilo, ele fez um aparte:
- Fernanda, não precisa ter vergonha ou remorso de sua história. Não estou aqui para recriminá-la.
- Ah, doutor. Mas é tão esquisito… Eu nunca pensei em viver isso no meu casamento. Eu sonhava casar, ser apenas dele, ter filhos, envelhecer e morrer. - Disse e depois me olhou: - Aí, vem meu marido e me pede para traí-lo. E o pior é que depois eu até gostei das sensações. Mas sei lá…
- Fernanda, traição é o que se faz às escondidas. Vocês tem um acordo, é tudo feito às claras e com concordância mútua. Não há traição, a meu ver.
- Mas com o Caio, eu o traí… - Insistiu.
- Eu não diria que houve traição. Melhor considerar que, numa situação nova, a senhora acabou se envolvendo e, no calor do momento, ultrapassou um limite, sem maior importância…
- Eu discordo, doutor! - O interrompi e frisei: - A questão dela querer transar com o Caio à sós, realmente não teria importância alguma, mas o fato dela ter feito isso sem proteção foi muito errado, sim.
- Fernanda? - Ele a chamou para se manifestar.
- Sim, eu sei. Realmente foi um erro. Eu podia ter colocado nossa saúde em risco…
- Correto! Mas mesmo errando acertaram. - O encaramos e ele continuou: - Conseguiram entender e superar um erro e, com isso, devem ter entendido a importância do estabelecimento e o cumprimento de limites para sua própria segurança. Parabéns para ambos.
- Mas ainda assim é estranho…
- Seu relacionamento íntimo pertence a você e seu marido, e ninguém mais. Tenho vários pacientes que mantêm casamentos de fachada, infelizes, ou tem vidas paralelas, outra família, ou traem seus parceiros sem nenhum remorso. É uma decisão pessoal e eu não estou aqui para recriminá-los, mas pessoalmente não concordo. Acho muito mais honesto e proveitoso um relacionamento como o de vocês, porque vocês se respeitam, se divertem e criam uma cumplicidade inimaginável. É uma parceria realmente linda.
Ela o ouvia de boca aberta, surpresa com o entendimento apresentado:
- Não é errado querer conhecer novas formas de prazer. Se seu marido se excita em vê-la com outro e a senhora tem prazer em vê-lo excitado, e consegue aproveitar o sexo nos braços desse outro, ou vice-versa, gozem à vontade, sejam felizes. De que adiantaria viver uma vida sem cor, sem prazer? - Continuou e então concluiu: - O maior erro está no entendimento de que sexo e amor são a mesma coisa: não são! Amor você vive com seu marido, vem de um sentimento interno e de uma cumplicidade construída ao longo do tempo; já sexo é uma satisfação momentânea da carne que podemos, ou não, ter com quem amamos. Simples assim.
Ela me encarou, como que buscando confirmação daquilo:
- Eu já falei isso para você. Talvez não com essas palavras, mas já falei. - Disse.
- É. Eu sei lá. No começo eu não queria aceitar, mas realmente quando acontece de estarmos com outra pessoa, as sensações são totalmente diferentes. Dá um frio na barriga, um ciúme, um tesão diferente… Sei lá, às vezes eu me sinto uma puta, noutras, uma rainha! - Ela falou.
- Rainha tudo bem, afinal quando está com dois homens, eles estão ali para servi-la é a sua vontade que impera, são seus vassalos, seus serviçais. Puta eu já discordaria, porque você não vende seu corpo. Esse dar que você faz é somente pelo prazer, então é uma troca: o prazer é mútuo. - Disse.
- É. Isso é… - Ela concordou.
- Então, por favor, e que sirva para os dois, essa forma de relacionamento não é a responsável pelo que aconteceu. Tudo bem?
Apenas o olhamos, porque havia sentido nas suas palavras:
- Agora precisamos relembrar o momento fatídico… - Disse e se calou por um momento, analisando-a: - Então, a senhora foi conduzida para dentro do salão pelo tal Bruno e de lá para o barzinho, correto? E ali aceitou uma, duas bebidas dele, provavelmente já adulteradas. - Ele falou.
- Elas não tinham gosto de nada, doutor. Aliás, tinha gosto de refrigerante. Só isso. - Tentou justificar.
- Sim, mas certas drogas em nada ou quase nada alteram o sabor da bebida. Se ela estivesse adulterada, que é o que parece, você dificilmente notaria. - Ele ensinou.
- Não acredito que fui tão burra, imprudente assim!
- Imprudência é um fator que pode decorrer de um momento. Infelizmente todos nós estamos passíveis disso…
- Bem, daí a senhora voltou para a portaria, a fim de encontrar o Mark, mas não o encontrou, supondo que ele já estivesse dentro do bar, fato também suposto pelo tal Bruno, correto? - Ela balançava sua cabeça confirmando: - Então, seguiram em direção ao palco, quando Mark tentou contato com você e foi ameaçado pelo Bruno que depois lhe roubou um beijo, correto?
- Sim. - Balbuciou Nanda.
- Então, vocês foram para os camarins, onde as moças da banda notaram que você não estava no seu “eu normal’ e tentaram de proteger dele. - Agora, ele falava pausadamente, sempre analisando ela: - Então, vocês dividiram um garrafa de água.
- Que as meninas haviam me dado. Eu dei água para ele, que me devolveu a garrafa um pouco depois. E agora consigo enxergar que ele deve ter drogado também. - Ela mesmo complementou.
- Correto. Então…
- Então, eu perdi meu próprio controle. Quando ele me chamou de amor, pensei que fosse o Mark, porque ele me chama de “Mor”. Então, como eu estava confusa e com a visão estava embaçada, pensei que fosse meu marido me levando para algum lugar.
- Você poderia ter desconfiado… - Eu disse.
- Mark, por favor. Não é hora de encontrarmos culpados. Agora é hora de revisitarmos os fatos para que vocês compreendam não ter culpa alguma no que aconteceu.
- Desculpa, “Mor”! - Falou Nanda.
- Não. O doutor está certo. Eu é que te peço desculpas. Por favor… - Falei.
- Vamos devagar agora: Então, a senhora foi levada para o escritório do Bruno e…
- E eu não queria entrar, mas eu pensava que o Mark estava ali comigo, falando para eu transar com eles. E como nós temos, aliás ele tem essa coisa de se excitar me vendo fazer sexo com outros, não estranhei nem achei que fosse errado estar naquele lugar. - Seus olhos marejaram, mas ela continuou: - Então eu deixei que eles fizessem sexo oral comigo e gozei, doutor. Eu gostei e gozei!
O doutor Galeano, experiente que era, ainda assim não esperava que ela fosse confessar ter gostado. Me olhou por um momento, mas nessa hora eu não havia prestado atenção nesse detalhe. Então, me indicou uma caixa de lenços sobre a mesinha e eu dei um para Nanda:
- Ah, Mark. Desculpa!... - Falou estranhamente calma.
Eu não sabia o que falar, então só acariciava sua mão. Olhei para o doutor Galeano e ele fez sinal para que deixássemos ela falar. Tomou um pouco de água e continuou:
- Mark, eu não quero que você se machuque mais ainda…
- Mais? Por que? - Perguntei sem entender: - Quer que eu saia para você continuar com o doutor?
- Não. Mas não quero que você sofra.
- Põe pra fora, Nanda! Eu já conheço a história. - Tentei animá-la.
- Ah, meu Deus! - Invocou antes de respirar para continuar: - Daí me lembro que fui colocada de quatro de frente para os dois barbudos e eles se revezaram me fazendo chupá-los, e um deles literalmente fodeu minha boca e gozou na minha garganta, quase me afogando.
Ela falava e me olhava, tentando analisar minhas reações. Eu fiquei imóvel, apenas a olhava, tentando não demonstrar sentimento:
- Então, o outro me fez chupá-lo também, mas não me forçou. Disse para eu fazer do jeito que eu quisesse e eu fiz. Eu fiz, sem ninguém mandar! Então, o Bruno se posicionou atrás de mim, colocou uma camisinha e quis me penetrar. Eu sentei e disse que só transaria quando você chegasse. Mas o Bruno não aceitou, me colocando novamente de quatro e me penetrou. Ficou algum tempo na minha boceta e depois foi para meu cu, onde enfiou sem dó. Não sei quanto tempo ficou. Então você arrebentou a porta e é tudo que eu me lembro.
- E eu nunca vou esquecer! - Disse enquanto analisava suas palavras, algumas contraditórias.