[...]
Curiosamente, naquela noite uma calmaria, uma paz, uma leveza se instaurou em nossa casa. Depois de sairmos do escritório, passamos na escola para pegar as meninas e depois do banho tomado, decidimos sair para comemorar as “boas novas”. Estávamos os dois mais felizes e tranquilos, e essa tranquilidade foi repassada inconscientemente para nossas filhas que eram só sorrisos. Brincamos, nos divertimos muito naquela noite. Faltava apenas dar tempo ao tempo para realizar os exames restantes e termos certeza de que Nanda não havia sido infectada com nenhuma doença, e essa verdade chegaria em breve.
Ainda naquela noite, eu já estava deitado em nossa cama e ela, depois da higiene noturna, veio se deitar e se aconchegou em meu peito. Alguns tempo depois eu já estava cochilando quando a ouvi me chamar uma, duas, três vezes:
- Que foi, Nanda? - Perguntei com a voz embargada.
- Você está acordado? - Ela me perguntou obviamente sabendo a resposta.
- Não. Eu costumo responder dormindo quando chamam meu nome… - Respondi ainda sonolento.
- Poxa!...
- Que foi, Nanda? Já me acordou, agora fala! - Minha paciência já estava diminuindo.
- Eu queria conversar…
- Agora!? - Disse e, após esfregar meus olhos e olhar para meu celular no criado mudo, completei: - São quase 1:00 da madrugada. Não dá para ser de manhã?
- É difícil com as meninas…
- Então, fala. Vai… - Disse enquanto me recostava na cabeceira da cama: - O que pode ser tão importante que não pode esperar?
- É que eu… eu… - Começou a dizer e se virou para o outro lado da cama.
- Você o quê? - Perguntei, já meio sem paciência.
- Eu… Eu não contei tudo pra vocês. - Disse e se calou.
- “Vocês” quem, Nanda? Não estou entendendo nada.
- Para você e para o doutor Galeano…
Pelo tom de sua voz, alguma coisa realmente não parecia estar certo e comecei a estranhar sua postura:
- Nanda, que história é essa? - Perguntei.
Ela se mantinha imóvel de costas para mim e em silêncio. Mas já que tinha começado, não seria justo me deixar naquela situação:
- Nanda, senta e olha pra mim. - Pedi.
- Ah, Mark. - Começou a choramingar.
- Sem essa! Você começou a falar e agora vai explicar isso direitinho. Senta. Vai. - Pedi uma vez mais, quase mandando mesmo.
Ela se sentou do meu lado, mas não me encarou. Dava para notar que tinha os olhos cheios de lágrimas e aquilo já começou a me incomodar, principalmente porque no dia anterior, eu havia conseguido colocar aquele filho da puta do Bruno na cadeia. “Será que é isso que a está incomodando?”, perguntei para mim mesmo:
- Vai, Nanda! Estou esperando. - Falei.
- Eu não sei como te falar. - Disse.
- Eu não tenho como te falar como fazer isso, porque não sei em que você mentiu.
- É sobre o Bruno… - Balbuciou, timidamente.
Parece que meus temores estavam se concretizando. Eu já tive a impressão que ela havia ficado triste quando anunciei a prisão dele e agora ela me fala que mentiu justamente sobre ele. “Qual seria a bomba agora?”, pensei:
- Explica melhor. - Falei, calmamente, depois de respirar fundo.
- Antes de qualquer coisa, eu queria que você soubesse que tudo o que eu fiz foi porque eu te amo e não queria que você acabasse com sua vida numa vingança contra o Bruno. - Me olhava com certo temor enquanto disse isso, então respirou fundo e continuou: - Eu preciso contar a verdade pra você antes que eu fique louca mesmo…
- Porra, Nanda. Fala! - Pedi, já sem paciência e esperando pelo pior.
- Depois que você quase matou o Bruno naquele dia, eu fiquei com medo que você pudesse voltar ou mandar alguém para terminar o que não tinha conseguido. - Começou a dizer, parando apenas para analisar minhas reações: - Daí com medo que ele pudesse te processar, te colocar na cadeia, ou mesmo tentar se vingar de você, eu liguei para falar com ele.
- Você fez o quê? - Perguntei, aturdido com aquela revelação, mas vendo que ela havia se retraído, preferi me conter: - Desculpa. Foi no calor do momento. Pode continuar.
- Eu… Eu não sabia o que fazer e eu te conheço, sabia que você estava com intenção de fazer alguma coisa contra ele, só não sabia o que. Eu não podia deixar você acabar com sua vida e das meninas. - Falou com os olhos cheios de lágrimas: - Eu estava perdida. Então pensei que poderia ligar para pedir desculpas ou tentar comprar o silêncio dele de alguma forma. Sei lá.
Eu a encarava sem acreditar no que estava ouvindo. Ela me contava aos poucos e analisava minha reação. Talvez para evitar uma discussão mais acalorada, talvez apenas para conseguir se controlar. Logo continuou:
- Mas eu não consegui falar com ele. Sempre que alguém me atendia, falavam que ele estava em viagem de negócios e pediam para eu deixar meu telefone de contato. Lógico que nunca deixei.
- Nanda, o que você tem na cabeça? Tentar negociar com um lixo de homem como ele!? Se você tivesse conseguido falar com ele, o que você acha que ele teria te pedido para ficar calado? - Perguntei.
- Não sei. Tenho umas economias que estava guardando pra gente fazer uma viagem… - Disse acho que mais tentando se convencer do que a mim.
- Nanda, não acredito nisso! Até não duvido que ele aceitasse receber algum dinheiro, mas faria isso só pra te atrair. Quando você fosse pagá-lo, ele iria te estuprar, sozinho ou com os amigos dele, e, dessa vez, seria sem chance de defesa, porque certamente você não iria me contar do seu plano antes, iria? - Disse, a encarando com expressão séria.
Ela abaixou a cabeça, envergonhada. Certamente já havia pensado posteriormente nas consequências daquele plano imbecil e que certamente quem iria se dar mal de verdade seria ela:
- Naquele dia, ele já te forçou a fazer coisas que você não quis. Imagina o que ele poderia ter feito com você para se vingar da surra que eu lhe dei. Certamente, aquele dia seria fichinha perto do que ele poderia fazer com você. Tenho até medo de pensar… - Falei.
- Eu sei. Depois pensei melhor e entendi que aquilo não iria dar certo, mas nem me preocupava comigo. O que me acontecesse não significaria nada se eu conseguisse te proteger e as meninas. - Falou, respirou fundo e, me olhando, continuou: - Daí tive outra ideia: me divorciar de você e deixar a guarda a guarda das meninas com você.
- Como é que é? - Perguntei, atônito.
- Lembra daquela noite, nós dois transando na cozinha e eu te chamei pelo nome dele? - Perguntou.
- Claro que me lembro. Uma facada daquelas não dá pra esquecer fácil… - Respondi.
- E da sessão no doutor Galeano quando eu disse que não sabia se tinha gostado de transar com eles?
- Lembro também.
- Então… Eu pensei que dizendo coisas desse tipo, faria com que você inconscientemente deixasse de me amar. Daí, se fosse necessário, eu arrumaria uma transa com um qualquer para quebrar de vez nossa relação, mesmo que corresse o risco de ser vista por você como uma puta. Então, a gente se divorciaria e eu deixaria a guarda das meninas com você. - Disse e continuou, agora com lágrimas escorrendo por seu rosto: - Eu estava perdida! Não sabia o que fazer. Pensei que saindo da sua vida com o divórcio, você não teria que se preocupar mais comigo e se concentraria somente no bem estar das meninas, que sei que são seu grande amor nessa vida.
Eu ouvia tudo boquiaberto. Não conseguia falar. Aliás, não conseguia pensar direito e muito menos acreditar naquela sandice. Ela então me encarou e preocupada perguntou:
- “Mor”, você está bem? Meu Deus do céu, fala comigo. - Disse, enquanto me dava uns tapinhas no rosto, aparentemente preocupada.
Eu não sei se cheguei a apagar, ou se fiquei em choque, ou seja lá o que aconteceu. Só sei que logo depois de alguns “tapinhas”, consegui encará-la. Então, peguei em suas mãos e as abaixei. Eu a olhava, mas por alguns instantes, não a reconheci. Aquela não era a minha Nanda! Não a mulher por quem me apaixonei e aprendi a amar, e com quem me casei para formar uma família e ter uma vida.
Eu ainda me sentia estranho, meio gelado, parecia estar sem chão. Então decidi sair do quarto porque ali não estava me sentindo bem. Coloquei uma bermuda e uma camiseta e quando estava saindo do quarto, ela veio em minha direção:
- Por favor, fala comigo. Me xinga, me bate, qualquer coisa, mas não me deixa assim.
Eu a encarei por um momento, mas ainda não consegui reconhecê-la. A segurei pelos braços e a coloquei sentada na cama sem dizer uma única palavra. Ela também não me disse mais nada. Saí do quarto e fui até a cozinha, onde peguei um copo de água e só aí me dei conta de meu nervosismo, porque o copo sambava em minhas mãos. Eu não acreditava naquilo que acabara de ouvir. Pouco depois ela chegou atrás de mim e se sentou na mesa me encarando:
- Como você teve a coragem de bolar um plano contra nossa família, Fernanda? - Perguntei, sem a encarar.
- Eu… Eu estava perdida! Já te falei… Pensei que seria melhor para vocês ficarem sem mim por perto. Elas te amam e sei que você as ama mais que tudo e faria de tudo para elas ficarem bem. - Justificou.
- Acabando com nosso casamento? Acabando com nossa família? Essa é a sua brilhante ideia. - A encarei e então rebati secamente: - E fazendo tudo isso com base numa mentira. Achando que isso faria me deixar de te amar, de uma hora para outra!?
- Me perdoa! Eu sou uma idiota. Nunca duvidei do seu amor, mas só tive noção do quanto você me amava depois que vi quanto estava preocupado com meu bem estar e, mesmo te chamando pelo nome daquele outro e ainda dizendo que poderia ter gostado de transar com eles, você ainda assim não me deixou, continuou do meu lado me apoiando, me ajudando a superar tudo… - Disse, agora chorando.
Por melhores que fossem suas intenções, suas lágrimas agora não me comoviam como antes. Ela ter tomado aquela decisão e tentado me manipular realmente me machucou. Levantei-me da mesa para ir até a sala de estar, mas, num rompante, decidi pegar meu celular, carteira e chaves que estavam num aparador próximo à porta e saí de carro para arejar as ideias. Fiquei dando voltas e mais voltas sem destino até encontrar um “comilão” aberto. Ali entrei, pedi uma cerveja com uma porção de salame e fiquei remoendo todas aquelas informações. Não demorou e Nanda me ligou uma, duas, três vezes. Silenciei meu aparelho. Notificações de mensagens dela no WhatsApp começaram a aparecer na tela de meu celular, mas também não as quis responder.
Por volta das 2:30 ou 3:00, após não sei quantas cervejas, escuto uma voz forte e conhecida me chamando pelas costas. Me volto e vejo então Laura com um sorriso no rosto, mas não era de alegria por reencontrar um amigo ou amante, parecia mais estar satisfeita pelo dever cumprido:
- Oi, Mark. - Disse me dando um beijo na bochecha: - Que surpresa te encontrar aqui sem a Nanda.
- Oi, Laura. Tudo bem?
- Eu estou bem. Melhor agora por encontrar um amigo querido; mas você já não me parece muito bem, né?
- Pois é. Laura, você vai me desculpar, mas hoje eu não sou uma boa companhia. Queria só ficar aqui quietinho, tomando minha cervejinha, se você não se importa. - Falei, gentilmente, lhe dando um fora.
- Uai! Se beber é o que você quer, então eu topo. Melhor beber acompanhado que sozinho, não acha? Daí a gente pode conversar se você quiser, ou só ficamos aqui e enchemos a cara, que tal? - Me disse e já pediu uma cerveja para não dar tempo de eu negar.
- Você é que sabe, Laura, mas eu realmente não estou pra papo hoje. - Insisti.
- Então, vamos beber que a gente ganha mais! - Respondeu enquanto pegava uma cerveja para me acompanhar.
Começamos então a beber juntos. Ela se pôs a falar sobre sua vida, intercalando com alguns “causos” divertidos de seu dia a dia. Ela era realmente uma companhia divertida para se beber. Se eu não estivesse “de bode”, talvez tivesse curtido realmente:
- Laura, a Fernanda te pediu para me procurar? - Perguntei, cortando uma piada que ela contava.
Ela parou, me encarando séria por um segundo, e respondeu:
- Eu não vou mentir para você. Sim, ela me ligou preocupada dizendo que vocês haviam discutido e você havia saído com o carro. Disse também que tinha te ligado e mandando mensagens, e você não a atendeu. Então, me pediu se eu não poderia dar uma volta para tentar te encontrar. Como nossa cidade é muito grande, com muitas opções noturnas, não foi difícil te achar aqui. Além do mais, eu moro a duas quadras daqui, então te achei na primeira tentativa.
- Obrigado pela sua honestidade, Laura, mas tudo que não preciso é uma espiã da Fernanda aqui comigo hoje. Se não se importa, eu gostaria de ficar sozinho. - Disse.
- Qual é, Mark!? Não sou espiã de ninguém e é claro que me importo, sim, com você. Por mais que não tenhamos uma amizade de tempos, gostei demais de vocês e não vou deixar um amigo sozinho num momento de aperto. - Disse, enquanto colocava uma mão sobre meu ombro: - Porque a gente não faz assim: eu te levo para a sua casa e você conversa com ela numa boa? Tenho certeza de que vocês vão se entender.
- Laura, tudo o que não quero agora é ver a cara da Fernanda, nem pintada de ouro. - Frisei: - Além do mais não preciso de babá. Estou muito bem para dirigir.
Dito isso, movido pelo meu machismo adquirido, me levantei para demonstrar minha condição física e não sei se a pressão caiu ou se a bebida subiu, mas dei uma bela cambaleada, sendo amparado pela própria Laura, que rindo, falou:
- Estou vendo, sim. Está uma maravilha, mesmo! Me dá a chave do carro agora.
Antes que eu dissesse qualquer coisa, ela se apossou de minha chave e o colocou no bolso da frente de seu jeans. Eu a encarei e, rindo, falei:
- Realmente é uma proposta tentadora, Laura, mas se eu colocar minha mão no seu bolso, as pessoas irão comentar e tudo o que não preciso agora é virar fofoca na boca do povo.
- Então, é melhor a gente ir embora, porque você já está de pilequinho e as pessoas podem começar a comentar que o doutor Mark estava bêbado numa lanchonete, a altas horas da noite, acompanhado de uma sapatona.
- A gente sabe que você não é sapatona, Laura. - Disse a encarando.
- Claro. Mas o povo, não. - Ela me falou, piscando um olho.
- Vou pegar mais uns latões de cerveja, pagar a conta e você me deixa num hotel, então. - Falei.
- Que hotel que nada! Já que você quer beber, a gente vai beber em minha casa. Só vou ligar pra Nanda para acalmá-la.
- Quero que a Fernanda se foda, Laura! Esquece dessa peste de mulher, pô.
- Tá, tá, tá… Não começa a dar show aqui. Só paga a conta que tenho cerveja em casa.
Lembro que paguei a conta e saímos. Eu meio que cambaleando, ela meio que me segurando, um muro meio que me ralando e um poste que teimou surgir do nada em meu caminho, me acertando a cabeça. Na casa dela, me disse que iria pegar um saco de gelo, mas eu pedi uma lata de cerveja bem gelada que serviria para beber e acalmar meu galo. Sentei-me no chão da sala, bebericando a cerveja e a usando na testa, enquanto ela pediu licença para se trocar. Voltou logo depois com um short curto e um top de ginástica. Dei um assovio e, tentando meu melhor sorriso malicioso, falei:
- Ora, ora, ora... Acho que vou ficar por aqui mesmo, Laura. A recepcionista daqui é muito "simpática".
Ela sorriu, pegou uma lata de cerveja e veio se sentar do meu lado. Eu, movido pela decepção, pelas cervejas e pelo tesão que a proximidade com aquela mulher me despertava, me virei mais em sua direção e comecei a acariciar seus braços, enquanto bebíamos. Voltamos a conversar amenidades, ela certamente tentava me fazer esquecer o problema que estava enfrentando. Num dado momento, comecei a alisar sua coxa e ela, apesar de ter notado, se fez de desentendida. Quando aproximei minha mão de sua boceta, ela me segurou e disse:
- Mark, seria um prazer transar com você. Gostei muito daquele dia. Você tem uma pegada muito gostosa, meio selvagem e romântica. Não sei explicar ao certo. - Disse, enquanto pegava minha mão e a colocava na minha própria coxa: - Mas hoje não vou fazer isso, porque você precisa de uma amiga, não de uma mulher.
- Porra, Laura! Você vai me rejeitar!? - Falei, contrariado.
- Nunca! - Disse, me encarando e com a mão em meu rosto: - Você é um sonho de homem: gostoso, sério, safado, é tudo de bom! Mas você não precisa transar; precisa conversar, chorar, xingar, sei lá. Faz alguma coisa, homem!
- Trepar é uma forma de desabafar, não é? - Perguntei.
- Não. Não é, espertinho! Vou buscar uns “belisquetes” pra gente.
Ela se levantou e foi até a cozinha. Não pude deixar de olhar aquela bunda se afastando e acabei me inspirando a segui-la. Ela estava de costas para mim e de frente para pia, picando alguma coisa. Cheguei-me por trás dela, a encoxando e perguntei bem perto de seu ouvido:
- Tem certeza que a gente não pode se entender melhor hoje?
Ela se arrepiou toda, apoiou a faca na pia e, depois de respirar fundo, falou:
- Mark. Não faz isso, por favor. Eu também não sou de ferro…
Sei que se tivesse insistido um pouco eu a teria abatido, mas também não seria justo usá-la para me vingar de um sentimento nada amistoso que nutria pela Fernanda naquele momento. Então, a abracei por trás e lhe dei um beijo em sua bochecha:
- Desculpa, Laura. E obrigado por não perder a razão e não me deixar sair da linha. - Falei: - Você está certa: hoje não! Vamos deixar para um outro dia, quando as nuvens já tiverem ido embora.
A soltei e me sentei na mesa. Vi quando ela deu uma outra suspirada profunda e voltou a picar um salaminho para nós. Depois trouxe para a mesa, pegou outra cerveja para bebermos e falou:
- Se você tivesse insistido eu teria topado, você sabe, né?
- Sim. Mas não seria justo com você. Não quero te usar como um instrumento de vingança contra a Fernanda. Você não merece isso. - Respondi.
- Não vi você falar um único “Nanda” hoje. É só Fernanda, Fernanda. Mas, enfim, o que aconteceu entre vocês para você estar tão sentido assim? Ela te traiu ou coisa assim?
- Meio que “coisa assim”, Laura. Mas não quero falar sobre isso.
Ficamos ali comendo, bebendo e conversando até por volta das 4:00, quando ela me convidou para dormir. Como ela morava numa espécie de quitinete com um só quarto, me convidou para dividir a cama com ela que eu respeitosamente recusei:
- Melhor não, Laura. Você vai se esfregar em mim; eu vou me esfregar em você e nós sabemos no que isso pode terminar. Melhor não facilitar. - Falei e continuei: - Eu fico no sofá, sem nenhum problema.
Só me lembro de deitar e apagar. Acordei por volta das 10:00 com vozes de mulheres na cozinha. Sem identificar as vozes, levantei minha cabeça e Fernanda olhava em minha direção. Estava com olheiras e cara de quem não dormiu nada à noite. Logo, Laura apontou seu rosto pelo lado direito e, sorridente, me perguntava se eu queria tomar um café ou outra cerveja:
- Um café, com meio Engov, por favor. - Respondi, fazendo com que ela risse: - Posso usar seu banheiro, Laura?
- Claro, vai lá. Uma porta antes do meu quarto.
Fui até lá e não consegui fechar a porta porque a fechadura estava com defeito. Encostei a porta e enquanto fazia minhas necessidades primárias, não pude deixar de ouvir a conversa das duas:
- Vocês transaram, não transaram, Laura? - Perguntava Fernanda.
- Não, Nanda. Não transamos. Ele precisava mais de uma amiga que uma mulher ontem. Não tinha clima…
- Mas se tivesse, vocês teriam transado?
Após um breve silêncio, Laura respondeu:
- Claro que sim, Nanda. Ele é um gostoso, charmoso e tem uma pegada legal. Mas não faria nada nas suas costas, porque gosto de vocês dois e não quero ser um problema no casamento de vocês.
Lembrei-me de nosso primeiro encontro na minha casa e como ela havia se insinuado para mim. Mas agora já não sabia se aquilo teria ocorrido realmente ou se era uma falha de minha interpretação dos fatos naquele dia. De qualquer forma, eu estava de consciência tranquila porque realmente nada havia acontecido entre nós. Saí do banheiro e fui até a cozinha:
- Laura, sua fechadura está com defeito… - Falei.
- Desculpa. Esqueci de te falar. O cuzinho travou e não conseguiu fazer seu cocozinho por isso? - Me perguntou, rindo.
Acabamos rindo todos de sua pergunta. Ela então me serviu um café numa mão e um Engov na outra. Peguei somente o café e falei:
- Só estava brincando com você. Eu estou legal.
- Melhor assim. - Depois de colocar o Engov sobre a pia, ela se voltou para mim e falou: - Mark, eu… a Nanda estava tão preocupada ontem, então… olha, não fica bravo comigo, mas eu não pude deixar de ligar para ela.
- E aposto que você ligou ainda ontem, quando nós chegamos aqui e você foi trocar de roupa no seu quarto, não foi? - Falei, a encarando, enquanto ela apenas confirmava com a cabeça: - Fica tranquila. Não estou bravo contigo. Eu já desconfiava…
- Então… Eu vou deixar vocês dois sozinhos para conversarem e depois eu…
- Não vai, não, Laura. Só vou tomar meu café e ir para casa me trocar. Tenho que trabalhar para garantir o futuro das minhas filhas… - Eu a interrompi.
- Minhas filhas… - Disse Fernanda na sua cadeira, também me interrompendo: - Se não quiser conversar comigo é só falar. Não precisa ficar arrumando desculpas…
Eu a olhei por um momento enquanto tomava um gole do meu café e depois voltei meu olhar para Laura, dando a entender que não teria condições de conversarmos naquele momento e ela entendeu na hora, dizendo:
- Tudo bem, então. - Me devolveu as chaves do meu carro e disse: - Então, depois eu levo a Nanda para casa.
A agradeci pelo café e por tudo o que havia feito por mim, me desculpando pelo papelão que eu havia feito na noite anterior. Me despedi dela com um beijo no rosto e vi, de relance que Fernanda me olhava triste da cozinha, parecia ter os olhos cheios de lágrimas, mas me fiz de forte e saí sem nem mesmo me despedir dela.
Fui para casa, troquei de roupa rapidamente para não dar chance dela chegar e fui para meu escritório. Eram quase 11:00 e minha secretária já estava saindo para o almoço, mas não sem antes me entregar uma lista de recados, dentre os quais um nome se destacava “Palhares”.
Pedi para ela trancar o escritório quando saísse e fui para minha sala, fechando a porta atrás de mim. Logo, ligava para o Palhares:
- Alô? Palhares?
- Fala, doutor!? Tenho ótimas notícias para o senhor, mas só vou entregá-las se me pagar um almoço. - Disse, rindo do outro lado da linha.
- Uai, Palhares. Pode ser. Que tal daqui uns trinta minutos no “Pague o Peso”? - Perguntei.
- Joia, doutor! A gente se encontra lá, então.
Desligamos e aproximadamente meia hora depois nos encontrávamos na porta do restaurante “Pague o Peso”. Após os cumprimentos de praxe, sentamo-nos numa mesa mais no fundo do restaurante para podermos ter mais liberdade, mais tranquilidade para conversar:
- E, então, Palhares? Tem boas notícias? - Perguntei, já sabendo a resposta.
- Melhor impossível, doutor. O meliante já está preso. - Respondeu, rindo, e continuou: - E o melhor é que nem precisei me esforçar pra isso.
- Como é que é, Palhares? Não foi você que mexeu os “pauzinhos” para ele cair?
- Não, exatamente, doutor. Eu liguei nas delegacias das cidades em que os processos foram abertos e expliquei a situação da sua cliente. Eles disseram que o “modus operandi” que eu relatei era o mesmo que ele utilizou por lá. Quando eu mandei a foto da CNH falsa dele, disseram que apesar do nome diferente, a foto era dele mesmo e já disseram que entrariam em contato com a delegacia da cidade em que ele morava. - Parou por um instante enquanto sua cerveja lhe era servida.
- Não brinca, Palhares!? - Eu disse, simulando não saber daquilo.
- Para o senhor ver como o carinha é sujo. Parece que teve um tiroteio por aquelas bandas há coisa de uns dias atrás envolvendo uns traficantes que forneciam para o tal “Brunão” distribuir dentro do bar. Sei até que andou tendo morte… - Disse e bebeu um copo de cerveja para continuar: - Daí como o bar dele já estava sendo relacionado com o tráfico, quando chegou o mandado de prisão, foram em cima dele como abelhas. Durante a prisão dele, encontraram várias fotos das mulheres que ele estuprava. O filho da puta fodia com elas, mas arregaçava pra valer mesmo, e depois tirava fotos com elas depois que estavam acabadas como uma “lembrancinha”.
- Mas que filho da puta, Palhares! - Falei.
- Pois é. Tinha foto de mulher, de menor, filha de político da região. Só sei que esse cara vai pegar uma cadeia legal e pelo tipo de crime, o senhor sabe como eu, que ele não tem um futuro muito colorido e longo na prisão, não é? - Riu e continuou: - Entrei em contato com a delegacia e me disseram que apreenderam computadores, cofre, celular e tudo foi mandado para a perícia, e que ele já estaria sendo transferido para a cidade de… Agora não me lembro o nome de qual, porque ele tem processo em quatro cidades diferentes e mandado de prisão em três delas.
- E será que ele já tomou umas “coças”, Palhares? Afinal, aquele filho da puta merece, não é? - Perguntei.
- Doutor, aqui na nossa cidadezinha, ele já teria sido amaciado. Lá no estado de São Paulo, pela minha experiência, a situação é bem pior. Então, acho que ele já deve ter tomado um belo chá de “cipó cabeludo”, se é que o senhor me entende… - Falou, me encarando com clara malícia.
- Só espero, Palhares, que não acabem com ele antes dele ter a chance de sofrer um bocado na rola dos outros detentos.
- Rola, doutor!? Rola é só uma das coisas que eles usam para foder com estupradores. Já soube de estuprador que tomou cabo de vassoura, garrafa e outras coisinhas mais pesadas, e depois que estão arregaçados, ainda passam vinagre e sal para curar as hemorroidas deles.
- Bem. Ele fez por merecer, Palhares.
- Vou assuntar depois e se tiver alguma novidade, aviso o senhor. - Disse, então deu dois tapinhas na barriga e falou: - Bom. Vamos pra parte boa agora, doutor? Vamos lá fazer um “PFão”?
- PF, Palhares? Claro que não. Vamos comer rodízio. - Falei.
- Rodízio!? Quero abusar não, doutor.
- Que é isso, meu amigo? Vou comer um rodízio e você vai me acompanhar. Faço questão.
- Uai! Já que é assim, vou só pegar uma saladinha… - Disse, se levantando.
Ali ficamos uma hora e meia almoçando e trocando informações sobre o caso. Comentei com ele o que já sabia de antemão pelo Agenor e disse que os envolvidos no tiroteio eram os outros dois que estavam com o Brunão naquela noite e que, pelo que eu sabia, um tinha morrido e o outro estava na beira do precipício. Ele, por sua vez, disse que levaria essa informação para a delegacia daquela cidade e depois me avisaria das novidades.
[...]
Eu não acreditei quando ele saiu da casa da Laura sem nem mesmo se despedir de mim. Ela retornou meio sem graça e se sentou do meu lado, tentando entender o que estava acontecendo:
- Nanda, não sei o que aconteceu entre vocês. Se você quiser me falar, fique à vontade; se não quiser também não tem problema. Sei que casais passam por problemas, mas vocês se amam e logo vão se acertar.
- É. Eu realmente não queria falar sobre isso, Laura, mas queria te agradecer muito por tê-lo procurado e encontrado. Fiquei com muito medo que ele pudesse fazer alguma besteira, porque ele saiu bem transtornado depois de nossa conversa ontem.
- Besteira até acho que ele não iria fazer, mas já estava numa meia bebedeira que, para um advogado, também não ficaria bem, não é?
- Pois é. - Disse, concordando, enquanto enxugava uma lágrima rebelde que insistiu em descer meu rosto e perguntei: - Sabe que eu ainda não acredito que vocês não se pegaram ontem? A química de vocês naquele dia em casa me deixou bastante surpresa…
- Olha, Nanda… Talvez se fosse num dia normal, ele não estivesse de porre, e não estou falando do porre alcoólico, e se fosse com você junto, eu acho que poderia rolar sim. Gostei muito de ficar com vocês naquele dia. - Me respondeu Laura, com seu meio copo americano de café na mão.
- E se eu te permitisse ficar com ele, até mesmo sem a minha presença, você ficaria? - Perguntei, curiosa.
- Você quer dizer só eu e ele, sem você, mas com sua permissão?
- Isso! Você ficaria?
Ela me encarou por alguns segundos, como que analisando se aquilo não seria algum tipo de teste, mas aparentemente resolveu ser sincera:
- Olha, se fosse tudo de comum acordo entre todos nós e se isso não colocasse seu casamento em risco, eu ficaria sim. Gostei muito dele. - Me respondeu com uma sinceridade que chegava a doer e continuou: - Porque você está falando isso?
- Não. Nada não. Só curiosidade…
Nesse instante ouvimos um toque abafado de celular e nos encaramos como que esperando que a outra fosse atender. Daí reconheci que aquele parecia ser o toque do meu aparelho e era realmente, tocando de dentro da minha bolsa. Peguei o aparelho e vi na tela o nome de Valkíria. Pedi licença para Laura e atendi a ligação:
- Alô!?
- Alô. Nanda. É Valkíria quem fala. Tudo bem com você?
- Oi, Valkíria. Vou bem, sim. E você?
- Também estou ótima. E vocês já animaram para entrar no clube?
- Valkíria, para te falar a verdade ainda nem sentamos para conversar sobre isso, mas vou falar com ele assim que possível. Pode deixar.
- Legal. - Respondeu e tive a impressão que ela respirou fundo para continuar: - Nanda, me desculpe estar te ligando a essa hora, mas acredito que a notícia que tenho é de seu interesse.
- Interesse?
- Sim. É sobre o Brunão.
- Acho que nada que venha dele pode me interessar, Valkíria. - Falei, incomodada ao ouvir aquele nome.
- Nem que ele foi preso?
- Preso.
- Isso. Já saiu em tudo que é site de fofoca daqui da região e já deve estar nos jornais locais. Parece que ele é mais sujo do que a gente imaginava. Tinha cometido outros estupros em outras cidades por onde passou e estão dizendo que ainda tinha envolvimento com tráfico de drogas.
- Poxa! Mas que pena pra ele, hein, Valkíria!? Espero que ele apodreça na cadeia daí.
- Aqui ele não vai ficar, não. Parece que vai ser transferido para alguma cidade do interior onde já tem processo aberto, mas não me lembro qual.
- Melhor ainda! Que apodreça bem longe daí… - Respondi sem titubear, mas me tocando da baixaria, me corrigi: - Me desculpa. Fui grossa com você. Ele merece o pior, mas você não. Gosto muito de você e só tenho que te agradecer por toda sua ajuda.
- Não se preocupa, amiga. Quando der, apareçam para tomarmos umas cervejas e fazermos boas lembranças juntos.
- Vamos sim. Obrigada. Beijão.
- Beijo.
Quando ela desligou eu senti pela primeira vez que meu casamento tinha uma chance verdadeira de seguir em frente, mas eu precisava encontrar o Mark e tentar me explicar, me desculpar. Fazer ele entender que o que fiz foi pensando no bem dele e das meninas. Perdida em meus pensamentos, lembrei-me que estava na casa da Laura, que me olhava sem nada entender:
- Desculpa, Laura. Acabei me distraindo com uma ligação e me esqueci de você. - Falei.
- Foi nada, não. Mas que história é essa de prisão, Nanda? Não entendi nada…
- Melhor você nem tentar entender, Laura. Deixa para lá… - Respondi, claramente tentando terminar aquela conversa e disse: - Vou pedir um Uber e ir para casa esperar o Mark para conversarmos.
- Eu te levo. Espera só eu achar as chaves… - Me disse enquanto se levantava para procurá-las.
- Não precisa, Laura. Fica tranquila. Vou rapidinho pra casa. - Rebati já me levantando e indo em direção à porta.
Laura me seguiu e me deu um abraço, desejando boa sorte e dizendo para eu ligar se precisasse de ajuda. Agradeci e sai à rua. Andei uns poucos quarteirões tentando me distrair e encontrei um ponto de táxi, contratando os serviços do primeiro que encontrei para me levar para casa. Ao chegar, notei as roupas que o Mark usava, mas nenhum sinal dele. Pelo horário, certamente almoçaria na rua, certamente não faria questão de estar comigo naquele momento.
[...]
Terminei meu almoço com Palhares quase às 13:00. Adoro um rodízio e, apesar de não sermos íntimos, a companhia dele foi ótima naquele momento porque, além do jeito bonachão, descobri que ele era um ótimo piadista e contador de “causos” de primeira. Ri pra valer de suas estórias e isso me ajudou muito a ficar mais tranquilo. Lembrei-me das meninas e, apesar de não querer falar com a Fernanda, tive que ligar para saber sobre a escola delas:
- Alô!? Mark? Que bom que ligou. - Disse ela, animada do outro lado da linha.
- Fernanda, você já levou as meninas para a escola? - Perguntei, secamente.
- Não. Pedi para minha mãe fazer isso, porque falei que tinha um assunto para resolver e você tinha um compromisso inadiável e não poderia fazer isso. - Falou e, depois de um breve silêncio, perguntou: - Você está bem? Quer conversar?
- Não, não quero. Tenho trabalho para fazer e não vou poder fazer isso agora. - Respondi de modo que Palhares não desconfiasse da existência de um problema íntimo.
- Poxa, Mark. Por favor, vem tomar um cafezinho comigo mais tarde… - Praticamente me implorou.
- Acho difícil. - Disse e, para não me estressar novamente, já conclui: - Vou desligar agora porque estou muito ocupado, Fernanda. Tchau.
- Mark!? Eu te amo, viu!?…
Desliguei antes que ela continuasse aquela conversinha. Ainda estava ofendido por tudo o que ela havia me falado. Ela fora honesta comigo, isso é fato louvável; mas sua honestidade, dessa vez, havia me machucado pra valer. Palhares, como bom investigador, viu que alguma coisa não estava certa:
- Problemas no paraíso, doutor? - Perguntou.
- E que casal não tem, Palhares? - Respondi, desviando do alvo pretendido por ele com a pergunta.
- É alguma coisa que eu possa ajudar? - Insistiu.
- Não, Palhares. É coisa que se resolve com o tempo, ou resolvemos depois de um tempo. - Falei, objetivamente.
Despedimo-nos na porta do restaurante e eu voltei para meu escritório. Ainda estava meio perdido com todas as revelações da última noite e agora só pensava em como proceder para não deixar transparecer para minhas filhas. Trabalhei como foi possível naquela tarde: pouca inspiração, quase nenhuma concentração. Por sorte, nada havia de maior importância que me exigisse tais competências. Eu só precisaria de paciência, porque minha tempestade pessoal parecia não querer se dissipar.