NARRADOR: ADAM
Eu tive uma conversa séria com o Coronel Afonso. Expliquei todo o tipo de provocação que o Cristian vinha sofrendo nos últimos anos. Ele era o líder desta comunidade. A obrigação dele era defender qualquer um, principalmente, o filho. Estava cansado com todos julgando o Cris por apenas ser quem ele era.
O Cristian estava sentado à mesa, mas não falou nada. Diante do pai, ele se acovardou, só que eu não ia deixar isso barato. Qualquer um que se aproximasse do Cristian iria morrer.
— São muitas pessoas diferentes, Adam. Eu...
— Eu vou matar a próxima pessoa que mexer com o Cristian, senhor. E não estou blefando. Estamos vivendo em tempos difíceis, eu não quero que nada de mal aconteça com o seu filho. — comentei, sentando ao lado do Cristian e pegando em sua mão. — Eu amo o seu filho e vou protegê-lo.
— Vocês estão certos disso? — o Coronel questiona, antes de sentar à nossa frente.
— Sim. — eu respondi, sentindo a mão do Cristian tremer.
— Você tem minha permissão, Adam. — soltou o Coronel. Olhei para o Cristian, que não esboçou reação, talvez, por medo ou vergonha. Acho que ele e o pai nunca conversaram sobre o fato dele ser gay.
— De me relacionar com o seu filho? — quis ter certeza da resposta.
— De matar qualquer que tente encostar no Cristian. — o Coronel levantou e ficou perto do filho. — Eu prometi à sua mãe que nada de mal te aconteceria. Com a epidemia, inimigos de todas as áreas e busca de recursos, eu esqueci de como ser pai. Mas, não pense que o meu amor diminuiu, Cristian. — abraçando o filho e o beijando na testa. — E, por favor, manerem nos barulhos noturnos. — saindo da cozinha.
Realmente, o apocalipse trouxe muitos problemas, além dos zumbis. O Coronel era um cara durão, mas baixou a guarda pelo seu único filho. Estar vivo nos dias de hoje é pior do que morrer, porém, as pessoas têm medo de fazer a travessia. Eu, por exemplo, não acredito em nada. Creio que quando o coração para de bater tudo acaba.
O Cristian não diz nada, deixa apenas às lágrimas escorrerem pelo rosto. Ele ainda está usando apenas uma toalha. Pego a vela, vou até a caixa de primeiros socorros e pego o material para limpar as feridas em suas mãos. O meu namorado arrebentou a cara daquele leproso desgraçado. Eu não faria melhor.
Gaze, algodão e álcool. Vou limpando aos poucos, ainda mais quando o Cris faz uma expressão de dor. Estamos em um silêncio que não incomoda. Acho que a sua mente está repassando os últimos acontecimentos. Só quero que ele tenha certeza de que nada de ruim vai acontecer.
— Nós somos namorados? — o Cristian questiona quebrando o silêncio.
— Sim, — deixo os materiais e fico de joelho no chão. — Cristian, você aceita namorar comigo?
— Você tem certeza? Eu sou cheio de inseguranças e...
Dou um beijo no meu namorado. Ele precisa ter certeza do meu sentimento. Eu amo o Cris. Acho que nunca amei alguém desse jeito na minha vida. Se bem que não sou um bom parâmetro para recordações, mas algo dentro de mim me diz isso. O Cris vai se vestir e decidimos dar uma volta pela vila.
O idiota do Eric está sendo atendido pela enfermeira Lidiane. Não sabemos o motivo, mas ele não prestou queixa contra o Cristian. Acho que posso mata-ló. É fácil manipular a cena de um crime, por alguma razão, eu sei disso, entretanto, não externalizo para o Cristian, que continua tímido devido ao pedido de namoro.
Como um ser humano consegue ser tão doce em um mundo de cão? Todo dia é matar ou morrer. Lutar ou Fugir. Só queria um lugar tranquilo para viver ao lado dele. É pedir demais? Decidimos usar nossas habilidades de parkour para subir em uma das torres velhas da vila. No escuro é mais complicado, porém, o auxilio da melhor maneira possível.
— Você está virando um craque. — comento, tirando uma risada abafada do Cris.
— Aqui é tão silencioso, né? Sem comentários, gracinhas. — ele senta na beira e seus pés ficam suspensos. Sento logo em seguida.
— Porque você ficou tão emocionado com as palavras do Coronel? — perguntou, segurando em sua mão, mas lembrando do machucado e tomo cuidado para não apertar demais.
— Certa noite, o papai me pegou me beijando com um dos soldados da vila. Eu tinha só 15 anos. Com raiva, ele baniu o rapaz para o Arcádia...
— A embarcação? — questionei, cortando o Cris, que respondeu balançando a cabeça positivamente. — E você ainda ama o rapaz?
— Não. — ele disse com pressa, algo que me fez rir.
— Desculpa, eu não queria parecer um babaca. Mas, voltando ao seu pai, Cris. Eu acho que ele te ama demais. Senti a sinceridade dele. — comentei, ainda de mãos dadas com o Cristian, que admirava a lua.
— Obrigado por me defender, Adam.
— Cristian, — puxei o rosto dele para a minha direção. — você não fez nada de errado. Nós não estamos fazendo nada de errado. — garanti o beijando. — Isso aqui, não é errado. O que estamos sentindo não é errado.
— E se você já tiver alguém? E se houver alguém te esperando? — ele questionou com medo do futuro.
— Acho que um soldado da IBDT não tem tempo para trabalhar. — disse, lembrando do sonho que tive quando era criança. — Somos treinados de maneira desumana.
Somos máquinas de matar. Me perdoa, Cristian. Eu não posso apagar o passado, mas posso te prometer um futuro melhor. Estou de quatro por você. Eu não consigo me imaginar sem os seus abraços e carícias. Seus beijos me fazem flutuar e esquecer da merda que vivemos. Se antes eu não tinha forças para seguir, agora estou com o tanque cheio.
Ficamos observando a lua. Não precisamos dizer nada. É um silêncio gostoso. De cima, a vila parece sem importância, assim como o resto do mundo. A nossa única testemunha é a lua. Ela nos vela durante toda à noite. Decidimos dormir na torre de vigilância. A reforma dela começaria apenas na próxima semana.
Pela manhã, acordo com uma coceira no nariz. Abro os olhos e me assusto com um pombo. Levanto e o animal voa para longe. Dou uma risada e o Cristian continua dormindo. Parece um anjo de tão tranquilo e inocente. Toco em seu rosto e o meu corpo todo treme. Ele tem esse poder sobre mim. E eu meio que gosto.
— Bebê, o sol raiou. Precisamos ir. — digo, tocando em seu rosto.
— Já? — Cristian se espreguiça e boceja.
— Sim. Quer descer do modo tradicional? — aponto para as escadas, que estão com alguns degraus quebrados.
— Por favor. — ele faz um beicinho. Eu não resisto e o beijo.
— Ok. Ah, hoje você está liberado do treino. Suas mãos precisam de um descanso. — aviso, recolhendo os nossos pertences e colocando na mochila.
A semana corre de maneira tranquila. Sou convocado para mais caçadas. Faço tudo em tempo recorde para não deixar o Cristian preocupado. Porém, confesso que a caça é a minha atividade favorita. Acho que isso faz parte dos treinamentos da IBDT. Quais serão minhas outras habilidades? Perder a memória é foda.
Neste dia, conseguimos o recorde de dez cotias, sete coelhos, quatro frangos e diversas frutas. Vai dar para toda semana. Em uma casa abandonada encontrei uma coleção de livros chamados "As Crônicas de Nárnia". Levo para dar de presente para o Cris. Ele vai ler todos em menos de um mês, eu tenho certeza.
Eu não sabia que a vida na vila me faria tão bem. E pensar que no início eu queria ir embora. aos poucos, eu vou gostando da rotina e das pessoas. Começo a reconhecer rostos, nomes e fazer laços. É um sentimento que reconforta a falta de memória. Estou entregue a essa vida, ainda mais com um parceiro ao meu lado.
De longe, avistamos um carro da IBDT. O meu coração acelera e faço o cavalo galopar em uma velocidade maior. Quando dou por mim, estou correndo desesperado. Ao chegar no portão, pulo do animal e corro na direção da entrada. De repente, uma mulher corre na direção e me abraça.
— Arthur, graças a Deus. — ela diz ao me abraçar.
— Arthur? — questiono me afastando.
— Eu me chamo Adam.
Do nada, a minha cabeça começa a doer. É uma dor aguda e distribuída por todas as partes do meu cérebro. Eu fico de joelhos no chão. Então, lembro de tudo. Me chamo Arthur Soares, tenho 33 anos e faço parte da artilharia da IBDT. Perdi meus pais aos cinco anos e, a partir desta idade, passei a ser treinado para me tornar um soldado.
UM MÊS ATRÁS - DIA DA MISSÃO POSEIDON
Recebemos uma informação valiosa. O barco Arcádia, um dos poucos santuários seguros no Brasil, deixou uma carga preciosa em uma área próximo à Santa Catarina. A diretoria não nos informa o tipo de mercadoria, apenas pedem para que queimemos tudo.
— Ei, Adam! — eu chamo a atenção do meu melhor amigo na IBDT, porque fomos treinados juntos.
— Late, Arthur. — ele responde dando uma risada e cuspindo no chão.
— Acho que vou pedir despensa. — digo, chamando a atenção do meu amigo, que se aproxima e pega no meu ombro.
— E para onde nós vamos? — Adam questiona, colocando a mão no meu ombro.
— Tem o barco Arcádia, que tal?
— Vai encontrar o teu príncipe encantado? — Adam pergunta, olhando para os lados, porque sabe que esse assunto é proibido.
— Ei, porra. — o repreendo, nervoso. — Tá, louco?
— Desculpa, desculpa. Cara, eu só quero a sua felicidade. Finalmente, vai perder esse cabaço. — Adam brinca, suspirando fundo. — Vamos sair dessa porcaria. Tudo já está tão precário. Essa é a última?
— Essa é a última. — repeti, pegando no ombro dele. — O helicóptero está nos esperando. — aviso, andando em direção ao heliporto.
— Vai ficar em qual função? — Adam quer saber, enquanto anda ao meu lado.
— Vou ser os seus olhos. — informo, colocando o meu capacete e dou uma risada, porque sei que vem uma piadinha.
— Ótimo. Vou passar a missão olhando para peitos e bundas. Peitos grandes e gigantes! — brinca Adam, imitando peitos gigantes com as mãos.
— Panaca.
A IBDT é uma corporação que começou a operar durante a pandemia. Todos os recursos deram uma estrutura autossuficiente, mas poucas pessoas tinham acesso a essas mordomias. Nós soldados vivíamos como animais presos em ambientes pequenos, entretanto, contávamos com água quente, alimentação balanceada e conforto.
Atualmente, são 400 soldados, que fazem um trabalho minucioso saqueando recursos, principalmente, de lugares abandonados e de difícil acesso. No helicóptero, temos uma visão do que sobrou do mundo. A mata passou a encobrir a maioria das cidades, alguns prédios estão ruindo com o passar do tempo e os animais passeiam livremente.
Da base, uma equipe vai nos orientando. Estamos no turno do Capitão Henrique. Ele é um cara legal, mas que ficou estranho quando perdeu a família. Temos que lidar com suas explosões de humor. Nós chegamos a conversar sobre a vontade de pedir dispensa. Isso é possível, porém, a IBDT nos dá poucos recursos para encontrarmos uma nova moradia.
Abro o computador e tenho uma noção das coisas que o Adam olha. Ele está fazendo várias brincadeiras com as mãos, por causa disso, levamos uma bronca do Capitão Henrique. "Vocês são duas bichinhas?", ele grita pelo rádio, algo que faz o nosso piloto rir. Afinal, o Adam e eu somos considerados o casal do esquadrão.
— Cê quer levar a porra da missão a sério? — pergunto, quando o Adam fica apontando a câmera na minha direção.
— Chegamos! — avisa o piloto, que faz uma aterrissagem suave e desliga o helicóptero.
— Senhor, o que estamos procurando? — Adam questiona do Capitão.
— Adam e Arthur, vocês querem pedir a dispensa, né? E se eu falar que tem uma possibilidade de vocês saírem com mais recursos do que o normal? — o Coronel dispara nos deixando felizes.
— Claro, senhor. Aceitamos. — solta Adam, sem me dar tempo de pensar.
— Ok. Chegou uma informação de que estão testando uma cura em jovens, porém, os testes estão dando um resultado contrário. Precisamos que vocês eliminem qualquer rastro dessas aberrações. — ele avisa.
— Ok. E porque mandou só nós? — pergunto.
— Vocês querem sair. Digamos que essa é uma festa de despedida. — comenta o Coronel, suspirando fundo. — Me deixem orgulhoso.
O Adam se prepara para entrar no prédio. Não há sinal de vida. A instalação parece ser um hospital abandonado. Corredor por corredor. Não existe uma única pessoa. De repente, o Adam escuta alguns passos na direção oeste. Com cautela, ele empunha a arma e segue o rastro. Através da câmera, acompanho tudo, mas, na verdade, queria estar ao lado do meu amigo.
Tudo parece tranquilo, até que o Adam se depara com um grupo de pivetes e mulheres. Eles estão com uma aparência estranha. Uso o zoom da câmera e foco em uma garotinha. Seus cabelos estão caindo, os olhos vermelhos e a pele parece ressecada demais. Só que diferente dos zumbis, eles parecem estar entendendo o que está acontecendo.
— Arthur, você está vendo isso? — questiona Adam que está com a arma apontada para eles.
— Sim. — é a única coisa que consigo responder.
— Moço. — uma das mulheres toma a linha de frente e tenta argumentar com o Adam. — Essas crianças estão doentes, por favor.
— Porque elas têm todos os sintomas? — Adam pergunta, sempre com a arma apontada para o grupo, que deveria ter umas 15 pessoas, a maioria, crianças.
— Existe algo no DNA deles. Algo especial. Só queremos viver em paz. — pede mais uma vez a mulher.
— Devemos recuar? — Adam pergunta.
— Não, caralho! — grita o capitão, que está acompanhando a transmissão. — Matem todos.
— Espera. — eu peço, ainda em choque. — Adam.
— Vocês não querem a liberdade de vocês? — o Capital questiona.
Começamos uma discussão, ao mesmo tempo, que as mulheres tentam convencer o Adam a não atirar. A pressão é muita. Consigo ouvir a respiração ofegante do meu amigo. Então, o Adam cede e abre fogo contra o grupo. Todas as pessoas caem sem vida no chão, só que outros começaram a aparecer. O Adam não economiza dos disparos.
— Adam, para! — eu grito, chamando a atenção do piloto, que liga o helicóptero. — Espera, porra. — agora, estou gritando com o piloto.
O Adam continua matando todos que aparecem. Um dos jovens o fura com uma faca na coxa. Com raiva, o meu amigo pressiona a cabeça do inimigo contra a parede. Eu grito para que ele pare e volte para o helicóptero, mas o Capitão o incentiva. Droga, a maldita adrenalina.
— Adam, não! — grito, ao tentar sair, mas o helicóptero levanta voo. — Não, filho da puta, espera.
Somos alvejados com flechas. Uma delas atinge o motor do helicóptero. Eu olho para o computador sem acreditar no que estou vendo. O meu melhor amigo sendo morto por um grupo de jovens zumbis, que tem plena consciência do que estão fazendo. Um deles tira a câmera do capacete do Adam e aponta para o seu corpo, completamente desfigurado.
— Adam, acorda! — eu grito. — Adam, porra, acorda, por favor.
— Soares, eu não estou bem. — o piloto avisa.
Tiro o cinto de segurança e sigo para a cadeira do copiloto. Uma das flechas o acertou no peito. Um dos motores do helicóptero falha e começamos a rodopiar no ar. Assumo os controles e o ajudo a estabilizar, só que não temos um lugar seguro para pousar. Seguimos mais alguns quilômetros e só tem mata fechada à frente.
— Kairo, você vai aguentar? — pergunto ao olhar para o piloto.
— Não sei, mas temos que pousar em segurança e urgente. — ele nos guia com uma velocidade inacreditável. — Droga. O motor está falhando feio. Já fomos mais de 100 quilômetros.
— Porque não voltamos para a base? — pergunto, olhando em volta atrás de um lugar para aterrissar.
— Soares, o controle não está respondendo. Só podemos ir para frente. Só nos resta esperar a gasolina acabar e cair com estilo. — ele explica, me deixando ofegante e pensando em um plano de fuga.
O helicóptero mostra sinais de instabilidade. Sou lançado para cima e bato a minha cabeça com força nos controles da aeronave. O sangue escorre pela minha cabeça, mas eu continuo atento para a situação. Rodopiamos no ar, então, sou lançado em direção às árvores e apago.
***
ATUALMENTE
— Fala, Arthur. Como você veio parar aqui? — questionou Beatriz, uma das comandantes da IBDT, e também conhecida como a minha melhor amiga.
— Eu, eu, eu...
— Arthur? — escuto a voz do Cristian, que me olha de uma maneira estranha.
— Cris, eu posso explicar. — digo, mas o meu namorado sai correndo.