YURI
O voo seguiu sem problemas, quer dizer, o Zedu teve um pesadelo e assustou todos os passageiros, mas não tivemos problemas com o avião. O piloto nos deixou em segurança no destino final. Demoramos para sair da aeronave. Estou tão sonolento, que nem vejo quando o Zedu se levanta.
— Amor, vamos. É a nossa fileira. — Zedu avisa, já segurando a mochila e uma mala de mão.
— Ok.
Caramba. Estou acabado. Foram as piores quatro horas da minha vida. Após o susto do Zedu, eu não consegui dormir mais. Fico imaginando quais são esses pesadelos. Ele nunca me contou como os sonhos acontecem, mas imagino que deva ser algo horrível. O Zedu acordou gritando e chorando.
Seguimos para a área de despacho das malas. Ainda bem que as bagagens maiores vão ser entregues na casa da tia Olívia. Eu separei duas malas grandes com roupas para o dia a dia. Principalmente, agora que o Zedu é um chefe e precisa dar o exemplo. Não demora muito para as malas aparecerem, será que isso é uma vantagem da classe executiva? Prioridade no despacho da mala. Eu vou me acostumar mal.
Milhares de pessoas transitam no aeroporto de Manaus. Encontrei o meu irmão, Richard, no saguão. Uau, o traste está deslumbrante. O Richard e a Giovanna herdaram os bons genes dos nossos pais. Percebo que um rapaz o acompanha. A gente se abraça. Um abraço longo e apertado, não da minha parte, mas do Richard.
Nos últimos anos, o Richard ganhou massa muscular. Inclusive, o traste fez uma série de tatuagens sem a permissão de ninguém, mas agora o meu irmãozinho já era maior de idade e cobriu um dos braços com desenhos aleatórios. Pelo menos, no universo acadêmico o Richard se destacou e entrou para o curso de Medicina.
— Estava com saudades. — ele cochichou no meu ouvido, ainda me abraçando.
— Eu também, irmão.
— Zedu. — Richard me abandonou e seguiu para abraçar o cunhado. — Escroto. — murmurei, pois gostei do momento fraternal.
— Richard, cara. Você está gigante. — reparou Zedu ao dar um forte abraço em Richard.
— E você é o todo poderoso. — brincou Richard dando uma risada. — Gente, esse é o meu namorado, o Ned. — ele jogou a informação em nós.
— Namorado? Tipo, namorado de relação homoafetiva? — questionei confuso, esperando alguém gritar: É pegadinha!
— Sim. — respondeu Richard, passando as mãos nos cabelos.
— Eu... — olhei para Zedu, procurando um apoio moral, porque não sabia como reagir.
— Que bom, Richard. O Yuri só está surpreso. — olhando para Ned, que nos observava com uma cara de pânico.
— Fala sério, Richard. — dei uma risada e olhei para os lados. — Onde estão as câmeras? É uma brincadeira.
O Richard ficou vermelho. Algo típico de quando é contrariado. Em um único movimento, o Richard pega o Ned e dá um beijaço. Eu fico boquiaberto com a pegada do meu irmão. Não sei se fico orgulhoso ou preocupado. O Zedu empurra o meu queixo e fecho a boca. Puta merda, o Richard é bissexual.
— Richard. — Ned o repreende e arruma a postura.
O Ned é o total oposto do meu irmão. Ele é um jovem franzino e moreno. Seus cabelos são longos, na altura do ombro. Os traços do namorado do Richard são indígenas. Que o Zedu me perdoe, mas é um belo rapaz. A família Teixeira tem um ótimo gosto para parceiros.
— Tá, tú é bi. — me dei por vencido.
— Sim. Conheci o Ned na faculdade. Demorou um pouco, mas consegui penetrar no coração dele. Se é que me entende. — piscando para mim e o Zedu. — E penetre...
— Cala boca. — usei o dedo indicador para silenciar o meu irmão. — Só vamos para casa.
— Zedu. — uma voz masculina chama pelo meu noivo.
ZEDU
Anos de trauma. Eu vivo com medo há anos. Um medo constante e que me tira a paz. A última vez que vi o José Leandro foi um dia antes dele ser julgado. Eu não consegui. Eu corri. Fugi. E continuei fugindo durante anos, mas nada adiantou. Lá estava o meu irmão. Em carne e osso, ou seja, um pesadelo real.
Nos meus sonhos, o JL aparece com um aspecto juvenil, mas a realidade é que ele está acabado. Eu não sei como reagir. O Yuri está com os olhos arregalados. Ele espera uma reação minha, mas eu não sei como agir.
— Eu preciso falar com você. — JL tentou chegar perto de mim, mas dei um passo para trás e fiquei na frente do Yuri.
— O que você está fazendo aqui? — eu perguntei, olhando para trás para ter certeza que o Yuri estava seguro.
— Estou tentando falar com você. Eu preciso pedir perdão e...
De repente, um barulho de explosão ecoa no ar. Em um ataque rápido, eu derrubo o JL. Uso o meu peso para imobilizá-lo no chão. Eu não sei qual é o plano dele, mas ninguém vai nos machucar. A briga chama atenção das pessoas que transitam no aeroporto.
No fim das contas, o estrondo foi uma caixa de metal que caiu no chão. Só que eu continuei imobilizando o meu irmão. Não arriscaria a segurança de ninguém.
— Eu só quero pedir perdão. — continua JL, ofegante.
— Fica longe de mim e do Yuri, entendeu! — eu grito.
— O que está acontecendo? — pergunta um segurança.
— Esse homem é um presidiário perigoso. — digo levantando e olhando para o segurança. — Ele tem passagem na polícia. Se eu fosse vocês daria uma olhada nas coisas dele.
— Zedu. — Yuri interveio.
— Vamos. — pegando na mão do Yuri e saindo de perto de JL.
Fiquei fora de mim. Na confusão, esqueci as bagagens. Sorte que o Richard voltou para pegá-las. O trauma estava mais vivo do que nunca, mas eu mostrei para o meu irmão que não baixaria a guarda. Eu faço de tudo para proteger as pessoas que eu amo, principalmente, o Yuri.
O meu corpo começa a transpirar. Percebo que ainda estou usando o sobretudo que trouxe do Sul. Com ajuda do Yuri, eu tirei a peça e pude respirar melhor. O meu noivo não saiu do meu lado, nem para recuperar as malas.
— O que aconteceu? — ele perguntou.
— Eu protegi a gente, Yuri. Você é a minha prioridade. E se esse maluco tentar te machucar? — coloco as mãos na cintura e respiro fundo.
— Ele não ia tentar nada, Zedu. Você não acha melhor a gente voltar e tentar ajudá-lo. Ele acabou de pegar o regime aberto e...
— Não vamos a lugar algum, Yuri. Eu quero que ele volte para a cadeia. — falei de maneira grossa para o Yuri, que não argumentou mais.
YURI
Meu Deus. Em todos esses anos de relacionamento, eu nunca vi o Zedu agindo de uma maneira tão fria. Mandei uma mensagem para o Fred, irmão do Zedu. Alguém tinha que ajudar o JL, afinal, esse mal entendido poderia custar a sua liberdade. E, claro, que o insuportável do Richard deixou as coisas mais estressantes.
— Quem era aquele? — sussurrou Ned, carregando uma das malas.
— O irmão do Zedu. Um verdadeiro psicopata. Anos atrás, ele tentou matar toda a família. Menino, um bafafá. — fazendo uma voz afetada. — Mas, o cunhadinho mandou bem. Eu teria batido mais.
— Richard. Só guarda as malas e cala boca. — pedi, querendo ir para casa e esquecer esse papelão.
À noite, a cidade de Manaus é outra. Não existe trânsito, gente falando ou, típico, calor do dia. As coisas são tranquilas e silenciosas. O Richard dirige com cuidado. Ele é um ótimo motorista. Vou reconhecendo alguns pontos da cidade. A Avenida do Turismo, com o seu característico cheiro de mato, eu amo isso. Em seguida, passamos pela Praia da Ponta Negra. Confesso, que algumas vezes eu apago, afinal, estou lutando contra o efeito dos remédios.
— Chegamos! — grita Richard, se espreguiçando. — Você vai dormir aqui?
— É claro, que... — eu paro de falar, pois percebo que o Richard perguntou para o Ned.
— Eu não sei. Vou mandar uma mensagem para a minha avó.
O Zedu saiu do carro sem falar nada. Ele tá puto. Por parte, eu não tiro a razão do meu namorado. Só que eu fico pensando na Tereza. Ela estava em uma encruzilhada: Zedu ou JL. Eu mal tenho tempo de pensar e sou atacado por um abraço apertado. É a minha irmã, Giovanna, que, assim como o Richard, parece ter tomado o chá do crescimento. Ela está deslumbrante.
— Que saudades, Yuri. Não aguento mais conviver com o Richard. Ele é inteligente demais. Como a gente nunca percebeu? — ela questionou de maneira dramática.
— Eu ainda estou confuso com o fato dele ser bi. Giovanna, nosso irmãozinho é bissexual. — comentei, ainda abraçando a minha irmã.
— Eu sei. — fingindo um choro e rindo.
— Isso, falem de mim. Eu sempre fui o incompreendido da família. — reclamou Richard, tirando as malas do carro.
— Disse o menino que colocou fogo no banheiro de casa. — recordei, um dos primeiros dias que nos mudamos para Manaus.
— Ah, lembra quando ele mudou a rota do barco? — perguntou Giovanna rindo.
— Muitas aventuras. — falei de maneira saudosa.
— Uê, cadê o Zedu? — Giovanna olhou em volta e não viu o cunhado.
— Longa história, o Richard te atualiza. Deixa eu falar com ele. — pedi licença e entrei em casa.
A casa da tia Olívia recebeu uma transformação. O escritório do Carlos deu certo. O marido da titia se destacou no cenário criminal e ganhou muito dinheiro. Ele deu uma vida melhor para todos nós. Digo isso, porque o Carlos pagou as minhas despesas em São Paulo. Enfim, a tia Olívia tirou a sorte grande.
— Yuri. — chama a tia Olívia, que estava na cozinha preparando um chá.
Faço um resumo de toda a confusão no Aeroporto. No meio tempo, o Fred manda uma mensagem e avisa que pegou o irmão e não aconteceu nada demais. Menos um problema para pensar. A tia Olívia pede para que eu tenha cautela com o Zedu. Uma vez que o trauma ainda está instaurado dentro dele.
Subo para o quarto. A tia Olívia colocou várias fotos nossas pelas paredes. É quase como uma viagem em uma máquina do tempo. A foto que está próxima à porta do meu quarto é uma que tiramos em Presidente Figueiredo, a primeira viagem que fiz no Amazonas. Éramos tão jovens e sonhadores.
Parei em frente a porta e respirei fundo. O Zedu já estava se preparando para dormir. Ele tirou todas as roupas e se preparava para tomar um banho. Aproveitei para fazer companhia para o Zedu. Peguei nossos pijamas e os deixei em cima da cama. Em seguida, fui para o banheiro e encontrei o Zedu chorando no box.
Normalmente, o Zedu não costuma mostrar vulnerabilidade. A cabeça dele deve estar uma bagunça, principalmente, depois que encontrou com o irmão. Me despedi e entrei no box. A única reação que tive foi abraçá-lo.
— Vai ficar tudo bem, meu amor. — o tranquilizei. — Eu estou aqui. Vai ficar tudo bem.
— Desculpa, eu não queria ser grosso contigo.
— Eu entendo. E aceito as desculpas. Você está sob muito estresse. Vamos dormir e amanhã você pensa com mais clareza. — pedi, pegando o sabonete e passando no corpo do Zedu.
Com o banho tomado, fomos para a cama. A tia Olívia deu uma atualizada nos móveis do meu quarto. A cama é nova, além de grande é confortável. Parece que estou sendo abraçado por nuvens. O Zedu se apoia no meu peito para dormir. A gente sempre começa nesta posição, mas depois que dormimos é cada um por si. Acaricio os seus cabelos e rezo para que ele se entenda com o JL.
Me perco nos meus pensamentos e acabo dormindo. Quando acordo, o Zedu não está mais do meu lado. Olho em volta e percebo que uma das malas está desfeita. O meu noivo não tem jeito, vai descontar todo o estresse no trabalho.
— Ah, Zedu. O que vou fazer contigo? — pergunto me cobrindo com o edredom e torcendo por dias melhores.