O narcisismo é algo enraizado no ser humano. Em algum momento de nossas vidas seremos narcisistas. Como no dia em que o meu pai descobriu sobre a minha homossexualidade: "Você é um egoísta, Jaime. Vai destruir sua família por um capricho". Na época, eu pensei mesmo ter sido um escroto que decepcionou meus pais, só que com o passar dos anos, a Lúcia abriu meus olhos e pude me libertar da culpa.
O ano letivo estava passando com tranquilidade. Logo, as férias estariam batendo em nossa porta, por esse motivo, a equipe pedagógica precisava correr com os conteúdos. Eu gostava de planejar cada atividade, mas nas últimas semanas, a única atividade que eu queria era ao lado do Henrique.
— Caramba, Jay. — disse Henrique, depois de uma transa gostosa. E, sim, ele passou a me chamar de Jay, depois que o chamei de Henry. — Assim eu me apaixono mais.
— Você é incrível. — tirei o preservativo e joguei no chão. — Um dia você me mata, novinho. — brinquei.
— Deus me livre. Não vai a lugar nenhum. Demorou muito para eu ter você. — Henrique afirmou me abraçando e beijando. — Ei, as férias estão chegando, né?
— Sim. Graças a Deus. Só tem as reuniões com a pedagoga, depois é só dia de preguiça. — contei, levantando da cama e vestindo minha cueca. — E a faculdade?
— Também, vou passar mais tempo com o meu lindão. — Henrique levantou e seguiu para o banheiro. — A gente podia fazer uma viagem, que tal?
Viagem? Eu nunca viajei com outra pessoa. Nem com a minha família. Apesar dos meus pais terem uma vida confortável, eles não gostavam muito de sair de casa. Os dois preferiam programas mais tranquilos e que envolvessem a igreja.
O Henrique parecia animado demais para viajar. Eu queria estar feliz também, porém, algo não me deixava externalizar. Puxa, ele é tão bom comigo. Acho que não estou alcançando a expectativa dele. A voz dentro de mim pede para terminar as coisas. Pode ser um jeito indolor de manter o mínimo de dignidade que me sobra.
Só que a minha vontade de ficar com o Henrique falava mais alto do que qualquer voz interior. No fim, o meu pai não poderia ter tanta influência sobre mim. Ele está no banheiro. Eu entro e observo. A água cai sobre o corpo do Henrique. Como aquele garoto magricela se transformou neste homem tão gostoso.
Eu não sei o que é mais bonito. Os seus músculos sendo lavados pela água quente. O seu cabelo que cobre parte dos seus olhos. Não me contento em olhar. Estamos tão acostumados em tomar banho juntos, que o Henrique nem se assusta quando meu corpo encontra o dele. O atrito das peles molhadas me causa outra ereção.
— Já? — perguntou Henrique olhando para baixo, mas ele precisou segurar os cabelos que lhe dificultam a visão.
— A culpa é sua. — respondi, ficando vermelho e me afastando.
— Eu estou tomando banho. Mas não me importaria de ter você dentro de mim no chuveiro. — ele comentou, ficando de costas para mim e me deixando mais animado.
— Eu posso? — questionei, querendo o penetrar sem preservativo.
— Eu confio em você. — afirmou Henrique, mas eu não tive coragem. — Quer saber, você topa fazer um exame de IST's?
— Sim. Eu topo.
— Podemos ir pela manhã, antes da escola, que tal?
— Pode ser. — respondo o abraçando. — Você vai dormir aqui?
— Sim.
À noite, assistimos um filme sobre um casal que era separado por um feitiço. O Henrique chorou no final. Era legal ver esse lado sensível dele. Ficamos abraçados por um bom tempo. Às vezes, gostava de ficar daquele jeito, apenas sentindo o Henrique. Quem diria, essa casa que me viu sofrer tanto, agora pode contemplar a minha felicidade. Adormecemos juntos.
***
Eu odeio clínicas. O Henrique marcou um horário pela manhã para fazermos a colega de sangue. O processo não demorou muito, na verdade, eu nem sei o tempo certo, pois nunca fiz exame de AIDS antes. Apesar de ter noção que estou bem, o nervosismo bateu e várias perguntas se formaram em minha cabeça.
Do nada, alguém grita em uma das salas de atendimento. Eu olho para o Henrique, que dá com os ombros. Ele está ocupado finalizando um trabalho da faculdade no celular. A voz ecoa pelo corredor, porém, não tem entendimento do que é dito. Um homem sai de um dos consultórios. Ele está apressado, só que acaba tropeçando e derruba vários papéis no chão.
A minha primeira reação é levantar e ajudá-lo. Isso chama a atenção do Henrique que para de digitar e presta atenção em nós. Recolhi todos os papéis do chão e fiquei em choque quando olhei para a pessoa em questão.
— Fá... Fá... Fábio. — balbuciei e entreguei os papéis para o Fábio.
Ok. Fábio Lucena, o professor de Educação Física do Colégio Espírito Santo, está na minha frente. Ele é tudo o que um homem deve ser: forte, másculo e casado. Seus olhos estão vermelhos e sua respiração ofegante. O ajudo a ficar em pé. Ele senta ao lado do Henrique, que guarda o celular no bolso.
— Cara, o que você está fazendo aqui? — questionei, ainda em pé e cruzando os braços.
— Eu pisei na bola, Jaime. Eu estou muito fodido. — ele confessou chorando igual uma criança, algo que chamou a atenção das outras pessoas.
— Ei, — Henrique o tranquiliza, pegando em seu ombro. — o resultado foi positivo?
— Sim. Eu sou aidético. — confessou, colocando as mãos no rosto e chorando.
— Ei, calma. Você pegou o resultado agora. Precisa passar com o especialista e fazer exames mais aprofundados. — explicou Henrique, que agiu de uma maneira muito humana com Fábio.
— O que eu vou dizer para a minha esposa? — ele questiona, mais para ele mesmo do que para nós.
— Fábio, — me agachei perto dele e peguei em suas mãos. — você precisa encarar de frente. A sua esposa merece saber a verdade. Ela precisa fazer o exame o quanto antes. Se quiser eu te ajudo e...
— Eu prefiro morrer, Jaime. Eu prefiro morrer. — me empurra e sai correndo do laboratório.
— Jay! — exclamou Henrique me ajudando a levantar.
Meu Deus, que situação. Eu não imagino os sentimentos flutuantes dentro do Fábio. Sento e o Henrique segura na minha mão. Como reflexo, eu puxo a minha de volta. Eu sou muito idiota. Eu sou fraco.
Uma moça nos chama. Ela pergunta se gostaríamos de ir juntos ou separados, o Henrique pede para uma consulta dupla. O consultório tem cheiro de limpeza. O médico é um rapaz novo, com certeza, recém-formado. O primeiro contato entre nós é bem tranquilo.
— Jaime Munhoz e Henrique Gusmão? — ele pergunta.
— Eu sou o Henrique, ele é o Jaime. — Henrique nos apresenta.
— Então, vocês são parceiros?
— Mais ou menos. — responde Henrique, que olha para mim e pisca.
— O resultado de vocês deu negativo para HIV, sífilis e gonorreia. O objetivo de vocês é transar sem camisinha? — ele questiona, sem olhar para nós, pois está anotando todas as respostas em uma ficha.
— Sim, Doutor. Mas eu faço o uso do PrEP e quero que o meu parceiro seja iniciado com os medicamentos. — Henrique pega no meu joelho e aperta.
— PrEP? — questiono.
— A PrEP é uma combinação de dois medicamentos (tenofovir e emtricitabina) em um único comprimido, que impede que o HIV se estabeleça e se espalhe pelo corpo. Ou seja, é uma medida paliativa, não é uma cura. — explica o médico, mostrando um vidro de PrEP.
— Tem alguma contra indicação? — quero saber, pegando o vidrinho e analisando.
— Não. É um medicamento seguro, mas não deve substituir a camisinha. O preservativo continua sendo a medida mais segura. — alertou o médico, assinando os nossos exames e me entregando.
Fomos liberados e seguimos para o colégio. Eu ainda tenho alguns minutos, então, tomamos café em uma lanchonete. O Henrique lembra da situação do Fábio. Um homem casado que passou HIV para a esposa. Imagina a culpa que ele deve sentir? Espero que o Fábio conte a verdade, antes que o tempo passe.
— Te pego às 18h? — ele pergunta, enquanto desço da moto e lhe entrego o capacete.
— Pode ser. Quer jantar em algum lugar?
— Sim.
— Mas nada muito caro, por favor. Eu quero pagar dessa vez. O seu gosto é muito refinado. — brinquei, respirando fundo e com um vontade imensa de beijá-lo.
— Claro. Até depois, bebê. — dando partida na moto e saindo.
O que eu estou fazendo? Esse relacionamento está fadado ao fracasso. O Henrique é um cara legal, mas está gastando um tempo precioso comigo. A voz dentro de mim volta com força total. Abstraio todos os sentimentos ruins e vou para a minha primeira aula do dia.
As horas passam de maneira usual. Os alunos buscam uma maneira de me provocar, mas dou o troco em forma de prova surpresa. Esse é o lado legal de ser professor: pequenas vinganças. O tema da filosofia é amplo, então, sempre deixo um teste surpresa preparado para os diabinhos.
No intervalo, pego o meu almoço e procuro o professor Fábio. O encontro na quadra poliesportiva. Ele está comendo e chorando. No início, ele fica arisco com a minha presença, entretanto, acaba se abrindo para uma conversa sincera e dura.
— O que houve?
— É castigo, cara. Estou sendo castigado por ser um babaca. — ele confessou.
— Não fala bobagem. — o repreendi, abrindo a minha marmita e provando.
— E o teu resultado? Pela sua tranquilidade imagino que foi negativo.
— Hum. — concordei, pois estava com a boca cheia.
— Você está saindo com um ex-aluno? Era ele no teste com você. Eu nunca esqueço um rosto. — comentou o Fábio, que mexia no almoço, mas não comia.
— Você sabe quem foi?
— Quem me infectou? — Fábio dá uma risada abafada e começa a chorar. — A lista é grande, Jaime. Eu tentei ter uma vida normal, só que não consegui. Eu traí, eu menti, eu queria prazer.
— Cara, você ainda está em choque. Precisa absorver essa informação. Só não demora muito para contar para a sua esposa. Ela merece saber a verdade. — o aconselhei.
— Obrigado, Jaime. Você é um bom colega. — agradeceu Fábio, que enxugou as lágrimas e voltou a comer.
Depois da aula, o Henrique me pegou no trabalho e seguimos para um restaurante próximo a minha casa. Durante o jantar, ele agiu de maneira romântica e carinhosa. Eu, simplesmente, não consigo ser romântico e carinhoso na frente dos outros. Para mim, todos estão me julgando e com um pensamento igual ao do meu pai.
— Te incomoda eu te tocar?
— Er...
— Você pode ser sincero comigo, Jaime. — ele pediu, afastando a sua mão da minha.
— Eu, eu nunca recebi muito carinho dos meus pais. Muito pelo contrário. Acho que acabei levando isso para a minha vida. — eu revelei, mas comecei a tremer, porque estava lutando contra todos os meus preconceitos para pegar na mão do Henry. — Eu gosto de você. — com as mãos trêmulas e pegando na mão dele.
— Ei, você tá bem. — o Henrique apertou a minha mão e sorriu.
— Eu vou ficar, eu prometo. — garanti, abstraindo todas as vozes e focando nele.
E assim ficamos de mãos dadas em um restaurante lotado. No início fiquei com medo, mas o sorriso dele me deu força para continuar. O Henrique pediu para ir ao banheiro. Aproveitei o momento para pegar o meu celular e desinstalar o 'Finder', o aplicativo de encontro. Aparentemente, eu já havia encontrado o que eu procurava, mas será que só o amor seria suficiente?