No fim do arco-íris tem um pote de ouro. Isso é o que diz uma antiga lenda da Irlanda, na Europa. Geralmente, usamos isso para mascarar as merdas de obstáculos que a vida nos joga. Bem, eu não sei quanto a lenda irlandesa, mas estou pronto para a minha viagem de férias com o Henrique. Vamos passar uma semana em Campos do Jordão, infelizmente, não podemos nos dar ao luxo de férias mais longas.
Chego na Escola por volta das 07h. Apenas alguns poucos alunos e funcionários transitam pelos corredores. Eu mal posso esperar para o fim do dia. Já deixei todas as malas prontas para a viagem. Durante o período de férias, ganhamos alguns dias para relaxar e isso é o mínimo se pensar na dor de cabeça que os estudantes nos dão.
Não vejo o Fábio há alguns dias. Espero que esteja tudo bem. Eu me imagino muito no lugar dele. Uma vez que o sonho do meu pai era que eu tivesse uma família. Ele me apresentou diversas mulheres nos seus últimos anos de vida. Já pensou? Eu preso em um casamento infeliz e tendo que trair a minha esposa escondido.
Perdido em meus pensamentos nem percebo quando a diretora chama por mim. O nome dela é Alice Romão, a mulher mais linha dura que eu já conheci. Sério, ela faz a Lúcia parecer um doce de pessoa. Eu sou louco para ver as duas em um debate. Qual delas sobrevive? É difícil de dizer.
— Jaime. Você pode vir na minha sala, por favor. — ela pediu, então, eu prontamente a segui.
— Com licença. — pedi ao entrar na diretoria.
O gosto da diretora Alice é peculiar. Durante muitos anos, ela foi chefe das escoteiras, um grupo conhecido como 'Anjos de Saias'. Várias medalhas e documentos de honra ao mérito estão distribuídos pelas paredes da diretoria. A parte mais bizarra? A pele de uma onça guardada como um troféu. Eu só estive duas vezes aqui. A primeira foi na minha entrevista e depois na admissão.
— Algumas pessoas me contaram que você almoçou com o professor Fábio no início da semana? — questionou Alice, antes de sentar e abrir o notebook.
— Sim. Almoçamos juntos. Ele está passando por alguns problemas. — expliquei, cruzando as pernas e tentando não me intrometer em um assunto tão pessoal.
— Quais problemas?
— Diretora, acho que isso é algo que o Fábio deveria dizer e...
— Ele se matou, Jaime. O professor Fábio tirou a própria vida. — disse a diretora com uma voz embargada. — Seu corpo foi encontrado ontem no trilho do metrô.
Meu Deus. Como assim? Ele preferiu a morte do que enfrentar seus problemas de frente. Eu não consigo evitar às lágrimas. Quanto peso será que foi colocado sobre os ombros do Fábio? A diretora explicou que a família entrou em contato, pois ele não havia retornado para casa. Então, na madrugada a polícia localizou o corpo próximo a uma estação de metrô.
— Provavelmente, a polícia vai falar com você. Eles querem entender o motivo dessa atitude tão drástica. Eu tive que passar o seu contato. — contou a diretora, que fez algumas anotações no notebook.
— Ele tinha HIV. — soltei, ainda em choque com a notícia.
— O quê? — questionou Alice surpresa.
— O Fábio, ele era soropositivo. Por isso, nós almoçamos juntos. — confessei.
— Você também é?
— Não. Eu fui fazer os exames em uma clínica aqui perto da escola. Estou ficando com uma pessoa e decidimos nos precaver. O Fábio fez um pouco antes de mim. O coitado não sabia que eu estava lá. Ele ficou desesperado, Alice. Meu Deus, eu não pude ajudá-lo. — lamentei, enxugando as lágrimas.
— Jaime, — a Alice me entregou um lenço de papel. — infelizmente, no momento do desespero fazemos escolhas questionáveis. Você tentou, mas não teve o tempo necessário.
— Alice, a esposa dele talvez não saiba. O que vamos fazer? — perguntei, limpando o rosto com o lenço.
— Calma. A polícia vai entrar em contato. Apenas conte o que aconteceu. E, por favor, vamos manter isso entre nós. — pediu Alice, respirando fundo.
Que merda, Fábio. Milhares de pessoas convivem com o HIV e levam a vida normalmente. A medicina avançou muito nos últimos anos. A doença não significa mais uma sentença de morte. A preparação para o feriado começou com o pé esquerdo. Agora tenho um velório para participar e não tenho noção do que vou fazer sobre a situação da esposa dele.
Durante a aula, os alunos fizeram diversas perguntas, porém, tive que desmentir todas. No caso, a maioria era verdade, principalmente, a respeito da morte de Fábio. Apesar de ser um brutamontes, o Fábio era um professor querido pelos estudantes e corpo docente. Realmente, nunca sabemos as lutas internas que alguém passa na vida. Eu só soube sobre a situação dele por um acaso do destino.
A polícia estava me esperando no fim do expediente. Ao mesmo tempo, o Henrique mandou uma mensagem dizendo que já estava na frente do colégio. O policial que me interrogou foi muito clínico nas perguntas. Eu respondi com sinceridade e contando todos os detalhes da última conversa que tive com o Fábio.
— Ok, professor Jaime. Qualquer outra dúvida eu entro em contato. — agradeceu o policial, que me liberou e continuou conversando com outros professores.
Nos meus 48 anos de vida, eu nunca passei por uma situação tão agoniante. Eu não sou culpado pela morte do Fábio, mas as perguntas sempre tinham uma tendência a dizer que sim. A conversa com a polícia durou uns 40 minutos e o sol já estava se pondo quando sai. O Henrique olhava o celular distraído e não percebeu quando eu me aproximei e o abracei.
— Ei. — ele me cumprimentou, talvez estranhando o abraço. — Tá tudo bem?
— O Fábio...
Eu não sou de chorar, principalmente, em público. Só que toda vez que eu lembrava do Fábio a tristeza me invadia. Abracei o Henrique e descarreguei toda a tensão das últimas horas. Ele apenas acariciou a minha cabeça e esperou eu ter forças para contar o motivo de tantas lágrimas.
— O Fábio, o professor que encontramos no laboratório, ele se matou. — disse, deixando o Henrique chocado.
— Por causa do resultado? Meu Deus, Jay. Eu sinto muito. — lamentou Henrique, que me abraçou forte. — Eu sinto muito, bebê.
— O corpo dele foi encontrado nos trilhos do metrô. Ele não teve coragem para enfrentar a doença de frente.
— A doença ou a esposa? Era uma decisão muito difícil. Nem todo mundo consegue administrar tantas coisas. — comentou Henrique, que se afastou e limpou minhas lágrimas.
— Obrigado. Eu só precisava de um abraço seu. — confessei me sentindo um idiota.
— Eu sempre estarei aqui para te segurar, Jaime. Você não está sozinho. — Henrique acariciou o meu rosto, mas me afastei quando algumas pessoas passaram na rua.
— Desculpa. Acho que vamos ter que cancelar a viagem. O velório dele vai ser hoje e...
— Tudo bem. Vamos para a tua casa. Eu vou fazer um chá. Você está precisando descansar.
Em casa, deitei na cama e apaguei. Estava tão cansado que nem esperei o chá do Henrique. Tive um pesadelo com o Fábio. Eu vi o momento em que ele andou até os trilhos, vagando sem rumo e desesperado. O coitado não conseguia ver as coisas com clareza e apenas se jogou quando o trem passou.
Ao olhar para o trem, vi o meu reflexo e eu era o mesmo adolescente medroso que apanhava de todos. Senti uma presença atrás de mim. De repente, alguém me segurou pelos cabelos e me levou para o trilho. A pessoa não disse nada, mas tenho quase certeza que era o meu pai. Ele posicionou a minha cabeça perto do trilho e outro trem se aproximou.
— Não! — grite, quase pulando da cama e assustando Henrique, que fazia um trabalho da faculdade no notebook.
— Meu Deus, Jaime. O que houve? — ele perguntou se aproximando e sentando ao meu lado.
— Um pesadelo. Nada demais.
— Acordar gritando e chorando não é "nada demais". — ele usou os dedos para fazer aspas.
— São que horas?
— 20h. — ele disse ao olhar no celular.
— Droga. — peguei meu celular e vi uma mensagem da diretora.
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Caros,
O corpo do Fábio vai chegar na Funerária Vila Mariana, às 20h30. A esposa dela se chama Pamela. Encomendei uma coroa de flores em nome da escola. Por favor, cliquem na localização para saber como chegar lá. Vamos nos unir neste momento tão delicado.
Grata,
(LOCALIZAÇÃO)
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Encostei a cabeça no travesseiro. Eu só queria voltar a dormir, entretanto, fiquei com medo de ter um novo pesadelo. O Henrique desligou o notebook e deitou ao meu lado. Ele estava usando minhas roupas, pois achava as peças mais quentinhas. O mês de julho pode ser um problema para as pessoas que não gostam de frio.
— Vamos?
— Acho melhor eu ir sozinho, Henrique. Você é um ex-aluno. Todo o corpo docente da escola vai estar presente e...
— Entendi. Eu vou só te deixar, então, pode ser?
— Ok. — respondi. — Henrique, acha que devo contar para a esposa do Fábio? Eu ainda acho que ela deve saber a verdade. O tempo é essencial nesses casos.
— É complicado, Jay. — ele pensou um pouco. — Ela merece a verdade, mas é o velório do esposo dela. Talvez você possa esperar mais um ou dois dias.
— Eu não queria essa responsabilidade, mas o certo a se fazer é pedir que ela faça o teste de HIV. — falei, fazendo carinho nos cabelos de Henrique, que se alinhou no meu peito.
Tomei um banho demorado. O Henrique não me acompanhou. Eu nem preciso dizer que chorei no banheiro. O caso do Fábio despertou vários medos e inseguranças de adolescência. Principalmente, por causa do HIV. Afinal, o meu pai achava que esse era o meu final. Apodrecer na cama de um hospital com alguma doença sexualmente transmissível.
No trajeto para a funerária eu não conversei com o Henrique. A única coisa que conseguia ouvir era o vento. Eu segurei com força nele. Até pensei em convidá-lo para o velório, mas eu não queria me expor tanto assim. Já pensou o que os meus colegas iam dizer de um professor que está transando com um ex-aluno.
O Henrique me deixou e combinamos de nos encontrar no dia seguinte. Entrei e já havia algumas pessoas, inclusive, alunos que gostavam dele. Por motivos óbvios, o caixão estava fechado. Uma bela fotografia do Fábio centralizada no meio do salão deixava tudo mais real.
Sentei em uma cadeira e contemplei a foto. Cara, será que eu teria conseguido impedir essa loucura dele? Que droga, Fábio. As minhas mãos começaram a ficar geladas, então, as coloquei nos bolsos do casaco, quando eu senti um papel do lado direito.
É o mesmo papel que usamos na escola. É uma espécie de carta, a assinatura me deixou assustado. É uma carta do Fábio. Sua letra é péssima e a carta está com diversos erros ortográficos, mas a mensagem é compreensível.
Ele deve ter deixado a carta quando viu o meu casaco na sala dos professores. Meu Deus, se eu tivesse visto antes. A culpa é minha. A culpa é toda minha.
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JAYME,
EU TÔ A HORAS AQUI NA SALA DOS PROFESSORES. EU N SEI COMO DIZER PARA A PAMELA QUE ESTOU TENHO HIV. EU NÃO SOU O TIPO DE CARA FORTE OU DESPREOCUPADO COM A VIDA. EU FIZ MAL PARA A UNICA PESSOA QUE ME ESTENDEU A MÃO, A MINHA ESPOSA. DESCULPA SER UM FARDO PARA VOCE EU SEI QUE NÃO É O QUE VOCÊ QUERIA. SÓ QUE EU NÃO VOU AGUENTAR, EU LAMENTO. OBRIGADO POR TENTAR ME AJUDAR. VALEU POR SER UM AMIGO. DESCULPA POR NUNCA TER TE DADO OS DEVIDOS CREDITOS. E APROVEITE A SUA VIDA.
FÁBIO.
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— Ele te escreveu uma carta? — perguntou Pamela, que me pegou de surpresa.
— Eu...
— Tudo bem. — ela disse sentando ao meu lado e mostrando uma carta. — A letra do Fábio era horrível. — chorando copiosamente.
— Eu sinto muito pela sua perda. — lamentei, pegando no ombro de Pamela.
— Você também tem o vírus? — quis saber Pamela, enquanto enxugava às lágrimas.
— Não. Eu não tenho. Ele contou na carta?
— Sim. Eu vou fazer o teste ainda, só esperar isso tudo passar. — revelou a viúva do Fábio.
— Meu Deus, eu sinto muito. Eu não sei o que dizer. — as palavras não se faziam presente na minha cabeça.
— Eu vou lutar. Eu não vou me entregar igual ao Fábio. Essa vai ser a minha vingança contra ele. Quero fazer o exame e viver da melhor maneira possível. — explicou Pamela, que parecia cansada demais, então, eu a abracei.
— Vai dar tudo certo, Pamela. Vai dar tudo certo. — garanti.