***CAPÍTULO VINTE E DOIS***
Não tem mais volta: as portas estão abertas.
Passo meus olhos pela sala, procurando por ele. É um escritório como qualquer outro, não que eu tenha visto muitos, apenas em filmes e novelas.
Uma parede forrada, com livros do teto ao chão — muitos livros —, me chama a atenção, mas forço a desviar os olhos. Os seguranças estão de costas para a sala, olhando pela janela de vidro quando entro. Agora estão me encarando, meio sem reação.
Gabriel está na cadeira, atrás de uma mesa rústica enorme, com Vinícius em seu colo. Antes de se assustarem com a porta, ele estava com a cara enfiada no pescoço dele.
— Então é isso que você faz nessa merda de escritório? Agora entendi por que é proibido pra mim — afirmo, com uma falsa calma, como ele faz comigo.
Gabriel me fulmina com os olhos e se levanta, tirando Vinícius de cima do seu colo. Meu peito se aperta, mas me obrigo a não chorar. Assusto quando ele bate com as duas mãos na mesa.
— O que pensa que está fazendo? Eu mandei você ficar no quarto! — altera a voz como o todo-poderoso, achando que está certo.
— Acha mesmo que vou ficar no quarto como um menininho obediente enquanto faz o que quer com esse daí? — Mais uma vez meu coração está se partindo.
Quantas vezes precisarei aguentar?
— Esse daí não... — Vinícius começa.
— Cale-se, ViníciuViníciue se cala imediatamente. — Saia daqui agora mesmo, Samuel! — grita, dando outro tapa na mesa.
Vinícius ri.
Furioso é pouco para o que estou sentindo.
— Por que faz isso? O que fiz a você? — Ele vacila, seu olhar muda por alguns instantes, dor. — É porque quebrei as suas regras, porque não faço tudo que me manda, porque não sou seu maldito brinquedo?
Ele abaixa a cabeça, suspirando.
— Sai daqui, Samuel! Saia! — Seu grito reverbera pela sala, chegando aos meus ossos, estilhaçando o que resta do meu coração.
Não vou aceitar isso. Ou ele me mata ou me deixa ir.
— Eu nunca pedi essa vida. Você me trouxe aqui, decidiu me fazer seu noivo. Se não está feliz, me deixe ir embora. Não pode ser tão cruel a esse ponto. Fique com ele se isso te faz bem, por que tem que me envolver nisso?
Vinícius sorri enquanto minha vontade é desfazer aquela cara de boi.
“Ele sempre vai voltar pra mim.” Foda-se.
Gabriel dá a volta na mesa e vem em minha direção. Mantenho o seu olhar, mesmo que esteja me devastando por dentro. Não corra, Samuel! Passaria por qualquer coisa só para odiá-lo mais. Queria nunca mais sentir o que sinto por ele.
O que sinto por ele?
Seus dedos apertam meu braço, arrastando-me para fora, como fez no bar ontem à noite, só que dessa vez mais apertado — aposto que amanhã estará roxo.
Ouço a risada de Vinícius, me fazendo sair humilhado.
Osvaldo corre atrás de nós, não tinha aberto a boca em nenhum momento, mas neste, ele faz questão de dizer:
— Senhor, ele só estava curioso, não precisa tratá-lo assim.
— Cale a boca, Osvaldo, depois lido com você. — Sua voz é afiada, feito navalha.
Osvaldo arregala os olhos de medo, parando de nos seguir.
Outro. Estou colecionando vítimas.
— Você é muito teimoso! Por que faz isso, Samuel? Gosta de me ver irritado com você? É só seguir minhas ordens, droga! — resmunga, assim que chegamos ao quarto.
— Ordens? Acha mesmo que vou seguir as suas ordens? Eu sou uma pessoa, Gabriel, também tenho os meus princípios e orgulho.
— Você me pertence, essa merda de orgulho não funciona comigo.
Ele ainda aperta meu braço, me agitando.
— Você é um desgraçado! — Despejo a minha raiva. — Você é um maldito bipolar. Primeiro diz coisas tão doces e bonitas, e depois consegue me dizer coisas amargas a ponto de não mais te reconhecer, pois é grosseiro e estúpido na mesma proporção. Onde está o cara que passou a noite comigo? — indago, enfurecido.
— Ele não existe. Fui apenas gentil para conseguir o que queria, e consegui.
Sem pensar, ergo a mão e dou na cara dele. Só percebo o que fiz quando sinto a ardência na minha mão.
Ele me solta.
— Tenho nojo de você, Gabriel. Você é um monstro sem alma. Nem sei como me deixei enganar por você, me envolvi por suas palavras, me... — estou prestes a dizer que me apaixonei, mas só iria me machucar mais, então respiro e continuo: — Tudo o que disse e fez foi uma mentira? Quando disse que precisava de mim era mentira? Seja sincero, eu quero saber se aquele homem que dormiu comigo é falso, aquele que vi com a Laurinha, com a sua família. Me diz, por favor, que aquele homem é apenas uma farsa. Fale agora, Gabriel! — esbravejo com todas as minhas forças.
Ele me encara, incrédulo, com a mão no rosto, onde o atingi.
— Samuel, um homem como eu não pode amar, eu não amo, não tenho coração — diz, tirando a mão do rosto. Seus olhos estão tão escuros que parece um abismo sem fim.
— É mentira! Não acredito nisso, é só uma fachada quebrada que você tenta manter no lugar a qualquer custo, mas essa máscara te faz repugnante e não estou a fim de saber o quão cruel pode ser só para manter essa sua aparência de homem de negócios; um homem forte e intocável, o fodão que manipula tudo a sua volta para ter o quer. Me deixe ir, me liberte desse inferno.
— Não posso.
— Então, fique longe de mim! — Dou um soco no seu peito, e o empurro. — Saia!
Ele fica me olhando por um tempo. Vejo a raiva se evaporar dos seus olhos, mas outra coisa toma o lugar: culpa. Um olhar atormentado, cheio do passado sombrio e doloroso que carrega.
Dá um passo para trás, me olhando uma última vez antes de sair do quarto.
Bato a porta atrás dele e me jogo na cama, chorando. Os soluços são cortantes e pungentes, tirando minha vontade até de viver.
Choro por horas. Acho que meu estoque de lágrimas acabou, porque estou exausto e com o corpo mole, quase adormecido.
***
Batem à porta fortemente, me despertando. Sei quem está batendo sem precisar abrir, só não entendo por que ele não entrou, já que as regras não existem mais.
— Samuel! Está atrasado para o jantar! — fala alto entre a madeira da porta.
Se não estivesse tão devastado, eu riria. Será que ele achou mesmo que eu desceria para jantar com ele? Nem morto.
— Eu não vou jantar! — respondo, colocando o travesseiro no rosto.
A porta é aberta com força, ele quase arranca o batente.
— É sério que tirou o dia para acabar com a minha paciência? — Sua voz é fria, chega a ser sombria. — Vai mesmo ser outro dia infernal?
— Já disse para me deixar em paz. — Puxo o lençol no meu corpo e viro de costas para ele.
— Levante-se daí e venha jantar comigo.
— Não quero.
Ouço-o se aproximar da cama, mas não me toca. Ele solta o ar, tentando controlar a raiva.
— Por favor. Desça e coma comigo.
Como se ser gentil fosse ajudar em alguma coisa.
Não caio mais nessa, imbecil. Dá vontade de gritar na cara dele, e é isso que eu faço:
— Não!
Levanto-me da cama e o empurro para conseguir passagem para o banheiro. Ele segura meu braço, porém fico de cabeça baixa. Não vou deixá-lo ver os meus olhos inchados.
— Se não descer, vou dar ordem de que não sirvam o jantar aqui e em lugar nenhum — ameaça.
— Não me importo, assim morro mais fácil e facilito as coisas pra nós.
Não quero parecer desesperado nem nada do tipo, mas não consigo falar sem que o som saia embargado e cheio de dor.
— Não seja dramático, está parecendo a Isabel — debocha.
— Eu não vou, desista. Chame o Vinícius, ele vai adorar te fazer companhia.
— Ele já foi — diz Gabriel, como se a ideia anterior fosse viável.
Rio, amargurado.
Sou um nada! De novo essas palavras rodeiam meu cérebro.
— Me solta! — Puxo o braço, está dolorido, mas é inútil. — Saia daqui, Gabriel.
Empurro seu peito de novo, ele segura meu outro braço, me deixando de frente enquanto continuo de cabeça baixa.
— Te dou meia hora para ficar apresentável ou voltarei para te arrastar lá pra baixo. Sabe muito bem que não me importo se você quer ir ou não — afirma ele, no meu cabelo. — Só faça o que estou mandando.
— Não vou! — Empurro com mais força, e ele me solta, dando um passo para trás.
— Meia hora. Julia vai te ajudar a se arrumar.
Ele sai como se não tivesse me quebrado por dentro, como se eu fosse mesmo um nada. As lágrimas que achei que não tinha mais estão escorrendo pelo meu rosto novamente. Entro no banheiro e tomo um banho rápido só para me jogar de volta na cama.
Quero que vá se ferrar, Gabriel!
Escuto Julia bater à porta e colocar a cabeça para dentro do quarto.
— O senhor Miller me pediu para vir ajudar.
— Entre, Julia.
Ela é tão doce e me faz lembrar a minha mãe. Sinto um nó se formar na garganta. Estou com saudades dela, do meu pai... Do Lucas. Queria tanto ter notícias deles.
— Está tudo bem? — nego, sentindo a quentura das lágrimas em meu rosto. — Venha, vou te deixar lindo, e ele vai se arrepender de ser tão grosseiro com você.
— Não precisa, não vou descer. Você nunca mais me verá fora desse quarto. — Choramingo.
— Oh, menino, não pode agir assim, ele só vai ficar mais bravo com você. Por que não faz o que ele pede? Vai ver como as coisas vão melhorar. Gabriel está acostumado com a sua rebeldia, mas a sua obediência não. Estará sendo inteligente se fizer o contrário. Seja gentil e mostre a ele que não se incomoda, que ele não pode te ferir. Fazendo isso, te garanto que ele se sentirá culpado e vai te pedir desculpas.
— Não sei não. Gabriel me irrita tanto. Não vou conseguir aguentar aquela frieza sem arrancar os olhos dele.
Ela dá uma risadinha sem graça.
— Conheço Gabriel desde pequeno, fui babá dele. Sempre foi mimado, gosta de tudo do jeito dele, mas, no fim das contas, também gosta de atenção. Ele ultimamente tem feito de tudo para intimidar e, se perceber que você não se importa com as suas histerias, virá atrás o quanto antes.
— Ele mudou. Você não sabe mais como é agora.
Talvez o antigo Gabriel fosse mimado, mas esse é cruel.
— Claro que sei. — Olho para ela, a fim de ver se entendi direito. — Vejo muito, filho, e sei exatamente quem Gabriel finge ser. Mas o poder ainda não o consumiu por completo, ele ainda está lá. Depois que você apareceu, vejo mais dele. Sei disso toda vez que me dá um beijo na cabeça. Como ele é gentil quando não está nervoso! E não deveria te contar isso, porém, hoje mais cedo, ao sair do seu quarto, logo após você ter entrado no escritório, vi Gabriel expulsar todos de lá, colocou todos pra correr, até aquele ruivo.
Então ele não voltou pra Vinícius? E o que eu tenho com isso? Não ligo.
Mas por que sinto meu coração se encher?
— Você acha que vai funcionar? Só quero que ele pare de gritar comigo. — Claro que sim, você vai ver.
— Então me deixe ficar apresentável — repito as palavras dele. — Farei como está dizendo, mas não garanto nada. Se ele me irritar muito, vou jogar todo o jantar na cara dele.
Ela ri com mais humor agora.
— Será um jantar muito bem aproveitado.
***
Coloco uma roupa branca. Julia penteou o meu cabelo. Ajudou-me, também, a cobrir a minha tarde horrorosa com uma boa base.
Ouvimos alguém bater à porta novamente.
— O jantar está pronto — Osvaldo anuncia, no momento em que Julia abre a porta.
— Avise que ele já vai descer.
— Ah, graças a Deus — Osvaldo agradece aparentemente aliviado e logo vai embora. Nem me dá tempo de pedir desculpas pelo ocorrido à tarde.
Me olho no espelho outra vez. Estou bem apresentável como Gabriel assim desejou. Abro um sorriso para mim mesmo, apesar de não chegar aos meus olhos.
— Está lindo, Samuel — diz Julia, fazendo um elogio.
— Obrigado. Vamos?
— Vamos. — Ela parece aliviada também. — Seja gentil e sorria, ele vai notar.
— Obrigado, Julia. — Dou um abraço e um beijo nela.
Do alto da escada, ouço a voz congelante de Gabriel.
— Você não disse que ele já estava vindo?
— Tenha calma, senhor. — A voz do Osvaldo é de medo. — O menino vai descer.
Será que ele teme por mim ou pela forma que Gabriel é?
— Vou buscá-lo — Ele resmunga, irritado.
— Não será necessário — digo, descendo os degraus um de cada vez, com Julia ao meu lado.
— Pensei que não fosse descer — Gabriel fala grosso e bufa de raiva, passando as mãos pelos cabelos engenhosamente despenteados.
— Já estou aqui — rebato, docemente. Acabo de descer os últimos degraus e paro na sua frente. — Podemos jantar?
Me controlo ao máximo.
Vejo a confusão passar por seus olhos, mas logo se recompõe.
— Venha.
Ele sai na frente, me irritando.
— Respire, tenha calma — Julia sussurra do meu lado.
Concordo com um menear de cabeça e vou atrás dele, tentando buscar a paz interior. Se um panda conseguiu em uma guerra, eu consigo em um jantar. Sei que é um desenho, mas quem se importa? Preciso achar a minha paz e bem rápido, antes que o mate enforcado com a própria gravata.
A mesa está toda posta, com pratos de porcelana, talheres de prata, taças de cristal e vasos de flores no centro, duas velas acesas, um balde com gelo e uma garrafa de vinho dentro.
Hum... Jantar à luz de velas? “Que romântico”.
Isso é um exagero pra quem não se importa comigo.
— Alguma ocasião especial para as velas? — Não consigo conter a língua, quase nunca consigo.
Ele me olha por um tempo.
— Não, e você está lindo.
— Obrigado. — Mantenho meu olhar preso em sua escuridão particular.
Tento um sorriso, porém ele continua sério.
Assim que ele ergue a mão, o jantar começa a ser servido.
Degusto em silêncio, sentindo seus olhos em mim, perfurando a minha pele e queimando meus ossos; mas mantenho a calma. Faço o possível para manter os meus sentimentos somente para mim, até que ele fala:
— Não devia ter entrado no escritório.
A sua repreensão é semelhante a forma como meu pai fazia quando eu era criança. Fecho os olhos e respiro. Paz interior.
— Desculpe, isso não irá mais acontecer. Perdi a cabeça quando soube do Vinicius, mas compreendi e percebi que estou confundindo algumas coisas, mas já coloquei a cabeça no lugar e está tudo bem agora.
Queria que tudo fosse verdade, mas não é. Meu coração ainda está partido.
Ele para o garfo no meio do caminho.
— Colocou a cabeça no lugar? — pergunta, desconfiado.
— Sim.
— Como? — Volta o garfo para o prato.
— Percebi que não me importo, que tudo foi rápido demais e acabei me confundindo um pouco, talvez por ter perdido o Lucas de uma forma inesperada. — Ele aperta o garfo quando digo o nome do Lucas. — As suas investidas ajudaram a me confundir. Foi tudo novo pra mim, nunca tinha sentido nada parecido e acabei ficando preso em um sentimento falso. Mas na verdade, o que sinto é a falta do Lucas. Procurei algo parecido em você, me agarrando e me iludindo a um homem que não existe.
Não sei como, mas seus olhos ficam mais negros.
— Sente falta do seu noivo? — A sua voz é fria como o metal.
— Sim, e da minha família também.
E é verdade, não da forma que ele está pensando agora. Lucas fez parte da minha vida, e o amei com toda a minha alma, mas o homem que estou me tornando não combina com ele.
Não é com ele que sonho todas as noites nem desejo quando fecho os olhos.
— Gostaria de estar com ele agora? — Percebo a dificuldade que ele está tendo para fazer essa pergunta.
Deveria mantê-lo calmo, mas a vingança adoça minha língua como açúcar.
— Sim.
Assente e volta a comer. Eu não consigo mais, estou nervoso.
— Vai sair hoje? — Continuo com a voz calma.
— Não, você quer sair? — Franze o cenho.
— Não.
— O que quer fazer? — Ele ainda usa as palavras friamente, mas de um jeito menos grosseiro.
— Não sei... Acho que se você me permitir, gostaria de andar pelo jardim, fiquei encantado quando cheguei aqui.
Vai que rola?
— O senhor Frederico faz um bom trabalho. — Agora me olha desconfiado, e não come mais também.
Frederico deve ser o jardineiro.
— É maravilhoso. — Sorrio, lembrando-me do verde e das flores.
— Também acho. — Ele me encara como se estivesse insinuando outra coisa.
Não vou ter esperanças, não vou mais me enganar.
A sobremesa é servida: bolo de chocolate com morango. Lambo até os dedos e gemo inocentemente, fechando os olhos, saboreando o doce do chocolate e a calda de morango. Quando abro os olhos, Gabriel me encara com a boca levemente aberta. Parece buscar por ar.
O clima começa a esquentar, então resolvo jogar gelo para esfriar as coisas, preciso me manter na superfície.
— Vinícius vai voltar?
— Sim, ele trabalha pra mim. — Ele se ajeita na cadeira, nem toca no bolo.
— Você vai comer isso? — Aponto para o prato dele.
— Não.
— Posso? — peço com um leve sorriso.
Quero dar a entender que não me importo com o Vinícius, não mais. Tirando a parte que me corrói por dentro, estou indo bem.
Corto um pedaço do bolo e me delicio mais uma vez com o sabor do chocolate.
— Hum. — Gemo — Isso está muito bom.
— Samuel — diz ele, com a voz esganiçada. — Pare.
— Com o quê? — questiono, fingindo inocência. — Você quer o bolo de volta?
— Não, é que... — Gabriel sem fala? Uau. — Deixa pra lá.
Olho por um tempo em sua direção, vendo a confusão passar em seu rosto. Vejo sua expressão mudar várias vezes, até seus olhos focarem nos meus.
É agora, tenho que saber.
— Posso te fazer uma pergunta?
— Claro.
— Por que me trouxe? Por que me escolheu em troca da dívida?
— Porque eu podia, porque seu pai me devia, porque você é lindo e eu precisava de um esposo — responde confiante.
— Já fez isso antes... Trocar uma dívida por uma pessoa?
— Não, eu teria matado o seu pai se você não fosse tão encantador.
Dou risada. Fingindo que suas palavras não fazem milhões de borboletas baterem no meu estômago.
— Imagino que sim, pelo homem que você é — Cutuco enquanto ele se mexe desconfortável, também fingindo que minhas palavras não o atingem. — Agora me diz: o que pretendia com esse jantar?
— Bom, tinha planejado tudo antes do acontecido, depois não quis mais cancelar, já que estava quase tudo pronto. E foi bom, porque parece que você entendeu alguns termos, talvez possamos continuar com o mesmo planejamento.
— Terei que assinar algum contrato?
Vai saber...
Ele abre um meio sorriso.
— Não, Samuel, a única coisa que exijo e não abro mão é a obediência. O resto posso proporcionar o que quiser, em cima dos meus termos.
Gelo. Suas palavras pesam como montanhas de Iceberg.
— Você já amou, Gabriel?
Quero saber, porque é difícil acreditar que nunca tenha amado ninguém.
— Acho que já te respondi isso, não sou um homem que ama. Amor é perda de tempo, vulnerabilidade. Amor faz as pessoas agirem por tolice, como o seu pai que, por amor a vocês, jogou; e você, por amor a ele, se entregou a mim.
— Por que é assim? Por que se transformou nesse homem?
Começo a perder a batalha. Estou caindo e tenho que me reerguer, antes que ele perceba que ainda me importo.
— Talvez um dia te conte, ou não. Gosto do que sou e gosto do poder que isso me traz.
Não sei por quê, mas não vejo verdade em suas palavras. Parecem palavras vazias, aquelas que você tem que dizer várias vezes para tentar se convencer de que tem que ser assim.
— Eu não gosto do que me tornei — Confesso. — Sou fraco, me visto com roupas que nunca gostei, como esta que estou vestindo agora e, mesmo assim me sinto bem. Gostei de provocar e ser tocado por você, até cheguei a pensar que um dia pudesse me amar. — Rio com amargura. — Me deixei levar, me enganar, tive esperança, meu coração foi quebrado várias vezes, e ainda acho que o amor existe, que um dia vou poder amar e ser amado. Porque, Gabriel, a fé é a única coisa que ainda não me deixou, é a única coisa que sobrou do meu antigo eu. E justamente por essa fé que ainda tenho a esperança de que um dia você possa me libertar.
Há tantas verdades nas minhas palavras que sinto uma dor terrível no peito, como se ele estivesse se abrindo apenas para derramar os meus sentimentos na frente dele.
— Nesse dia eu serei um homem quebrado, sem forças, um homem fraco e vulnerável.
Uma palavra surge na minha cabeça. Amor, ele seria um homem apaixonado.
— Nesse dia eu serei o homem mais feliz do mundo.
Ele fica me encarando em silêncio.
Assim que termino de comer o restante do bolo, já sem vontade, saímos da mesa e seguimos para as escadas.
— Aonde pensa que vai? — Segura o meu braço quando começo a subir.
— Vou para o meu quarto, é onde me mandou ficar, certo? — Provoco.
Ele suspira.
— Venha comigo. Não queria caminhar pelo jardim?
Mais agrados. Talvez Julia tenha razão.
— Adoraria. — Sorrio.
Ele me dá o braço, como nos filmes, e eu o pego, ignorando a energia que passa entre nós.
— Desculpe por gritar com você.
Aí está o homem que conheci: sem a máscara de durão.
— Não se preocupe, passou.
Não tinha passado, ainda doía dentro de mim, mas logo me lembro de que não posso me importar.
Caminhamos por mais um tempo. A noite é linda e cheia de estrelas, não dá para ver muito a beleza da natureza ao fundo, só que, ver a grama banhada pela luz da lua, é tão lindo quanto.
— Essa roupa está linda em você. — Me elogia de novo.
— Obrigado.
Silêncio, até que, segundos depois, ele volta a falar:
— O que falou sobre seu... Sobre aquele rapaz... Lucas. — Ele força para que o nome saia da garganta. — É verdade?
Será? Ciúmes não combina com Gabriel.
— Depende do que quer saber.
Sei exatamente o que ele quer saber.
— Sente falta dele?
— Sim.
Da pessoa que ele é, da forma como era tratada com carinho, da amizade.
— E quando a gente... Quando esteve comigo, pensou nele? — Gabriel interrompe os passos e me faz ficar de frente para ele.
Engulo em seco pela proximidade, e ele sorri.
— Não, mas como disse: estava confuso e carente. Talvez precisando de carinho, buscando amor, não sei, algo parecido com o que ele me dava.
Nunca pensei nessa possibilidade. Lucas estava bem longe da minha mente quando me deitei com Gabriel, mas ele não precisa saber, não precisa ter mais um motivo para me humilhar.
Ele suspira e se afasta um pouco.
— Então você ainda o ama?
Não preciso pensar muito para responder, entretanto não quero dizer a verdade.
— Por que isso importa?
— Apenas responda.
O que dizer?
— Por esses dias tive dúvidas, mas hoje me dei conta de que estou me perdendo, perdendo a minha essência. Quando estava com Lucas, nunca me senti dessa forma. E o que ajudou foi você deixar claro que sou apenas um brinquedo pra você usar quando quer, ou seja, apenas para te satisfazer. Viu? Eu entendi direitinho, não vou mais te dar trabalho, só não espere que eu retribua com o mesmo fervor. — Deixo a raiva responder por mim.
— Anjo... — Ele levanta o braço para tocar meu rosto.
— Não me chame mais assim. — Gabriel abaixa a mão. — É algo a ser usado com amor e carinho, e você não sabe o que isso significa.
— Olha, Samuel, eu...
Interrompo.
— Gabriel, não me iluda com suas palavras doces e depois me quebre com grosserias, é cruel e desnecessário. E, sobre não sair com outros homens, não tem problema, não me importo mais, pode fazer o que quiser. Só peço que não me toque, pelo menos não depois de tocá-los. Se quiser que eu seja seu, terá que forçar. Não lutarei contra sua vontade, mas como acabei de dizer: não retribuirei com o mesmo fervor. Seguirei as suas regras para que mantenha a minha família segura, fora isso não terá nada de mim.
Sinto meus olhos arderem em lágrimas, mas não as deixo caírem.
— Não é isso que eu quero, e jamais te forçaria a nada. Se não me quer, tudo bem, eu entendo, não tocarei em você. Me manterei distante. É o que mereço por ter apagado a sua linda luz.
— Não, Gabriel, isso não é nem o começo do que você merece. — Dou um passo para trás, buscando mais distância. — O passeio foi ótimo, mas vou voltar para o meu quarto.
Estou à beira das lágrimas e, se eu não entrar, chorarei na frente dele.
Viro as costas e o deixo sozinho, com o peso das minhas palavras moendo seu cérebro.