Dor de amor passa. Cresci ouvindo e acreditando nisso. Amores vêm e vão, e a vida é justamente feita dessa linearidade, cabendo a nós somente acreditar que tudo na vida é cíclico, inclusive os intransponíveis momentâneos que vivemos. Então, reafirmo: dor de amor passa. Mas e a dor do amor que nunca foi vivido, essa dor também passa ou se torna somente uma dor que nos acostumamos a conviver?
Os dias seguintes à saída da Urca foram extremamente caóticos. Se eu, enquanto professor, não estivesse de férias, não sei de onde tiraria forças para me levantar e ir dar aulas. O rompimento com o Ben, inevitavelmente, foi total. É óbvio que ele foi imaturo o suficiente para me bloquear em todas as redes sociais possíveis, inclusive nas que sequer usávamos com tanta frequência.
Quando saí do apartamento, fiz questão de transferir para ele o valor total do aluguel até o vencimento do contrato, além das demais despesas que dividíamos, como internet e televisão, gás, luz, energia etc. No dia seguinte, recebi o estorno total do valor que eu havia depositado na conta dele. A mensagem era clara, ele não queria manter nenhum contato ou vínculo comigo, e talvez fosse essa a coisa que mais me doesse. Eu havia perdido o meu melhor amigo, a pessoa que nas últimas 2 décadas me conhecia melhor do que eu, e que havia participado de todos os grandes momentos da minha vida. Entre nós dois, estava Carol, que se mostrou desesperada diante do nosso afastamento súbito. Me limitei a dizer ela que a convivência diária terminou por nos colocar em atrito, e optamos pelo afastamento total, e que na esteira desse rompimento, não fazia mais sentido que eu fosse o padrinho de um casamento em que o noivo não falava com o padrinho.
Carol não aceitou. Chorou, reclamou e tentou nos reconciliar inúmeras vezes, mas diante das duplas recusas, ela aceitou que não estava ao seu alcance tentar consertar o que havia quebrado entre nós. Nosso grupo de amigos próximos também demorou a entender que não éramos mais amigos. Houve muitas perguntas, muita tentativa de reconciliação - todas frustradas - e muita reclamação, mas no fim, todos, de alguma forma, acabaram se acostumando a essa nova realidade. A vida seguiu. A vida sempre se impõe sobre nós e segue, ainda que nem sempre queiramos que isso ocorra.
E a vida seguiu. Não foi consciente, mas pouco a pouco eu passei a evitar reuniões do grupo em que ele estava, e acredito que ele também, porque nos eventos em que eu estava, ele também não estava. E à medida em que o casamento se aproximava, deduzi que mais atarefado e com menos tempo para outras atividades ele e Carol estavam tendo. Ainda doía quando algum amigo escorregava e comentava que já havia recebido o convite ou que precisava resolver uma ou outra coisa da cerimônia. Eu ainda sentia falta das mensagens, dos abraços e do espaço para desabafo que tínhamos, mas a vida se impõe e segue, e pouco a pouco aquela dor foi diminuindo até chegar a um ponto em que era tolerável conviver pacificamente com ela.
E nesse processo de lidar com a Dor e as dores, oito meses já haviam se passado. Eu ainda estava morando no Flamengo, havia concluído a graduação e estava oficialmente licenciado em História, o que me permitiu começar a trabalhar em outras unidades escolares da Zona Sul e Centro. Devagar, sem pressa e respeitando meu tempo, estava construindo minha rede de contatos e colegas de trabalho.
Nessa de ter um colega, que conhece um colega, que conhece um colega, conheci o André, rapaz negro de pele clara, 1.80, tatuado e de cabelo curto, em um estilo militar. André era fotógrafo e estava há poucas semanas de se mudar para Berlim, onde iria passar dois anos trabalhando como fotojornalista de uma agência de notícias. Talvez pela fugacidade que nos rodeava, nos encantamos imediatamente. Nos conhecemos 2 meses antes da viagem, em um jantar na casa de amigos em comum. Nossa sintonia foi imediata e, naquela noite, na volta pra casa, demos nosso primeiro beijo. Dali em diante, não nos desgrudamos mais.
Com o André eu me sentia confortável para falar as maiores barbaridades e também as maiores seriedades; para ir ao teatro ou apenas caminhar pela praia no final da tarde. Um observador mais distante poderia pensar que ele estava substituindo o buraco deixado pelo Ben na minha vida, mas na realidade, não. Como bem disse Rita Lee, amor é latifuúndio, sexo é invasão. E André representava essa invasão na minha vida, uma pequena grande revolução que pouco a pouco fez com que eu me sentisse confortável comigo novamente. Era óbvio que estávamos cientes que em um momento tudo se findaria, afinal, ele iria embora, mas enquanto estivéssemos juntos, estaríamos juntos.
O convite feito a nós dois por uma amiga minha de longa data para celebrar seu aniversário na Feira de São Cristóvão, se mostrou mais uma boa oportunidade para que pudéssemos curtir mais um momento juntos. Na noite de sábado em que a festa estava marcada, André teve um imprevisto em casa e marcou de me encontrar diretamente no restaurante em que minha amiga estaria, e assim o fiz. Eu estava plenamente ciente de que poderia dar de cara com Benjamin e Carol lá, já que eles também eram amigos de longa data da aniversariante, e ela, anualmente, fazia questão de todos os amigos presentes.
Durante o trajeto até a feira, tentei não pensar muito nisso. O que tivesse de ser, seria. Abrir mão do controle que não me cabe, foi uma das coisas que o André me ensinou.
Cheguei à feira e fui até o restaurante marcado, encontrei minha amiga feliz, rodeada por tantos outros amigos que eu amava e que eram parte da minha história, e que infelizmente eu não via direito há meses. A feira tem uma energia caótica, e quando dei por mim eu estava levemente bêbado, com uma garrafa de cachaça na mão, cantando a plenos pulmões Livin’ on a prayer do Bon Jovi com meus amigos. Estávamos em agosto e apesar de chover com certa regularidade, as temperaturas ainda estavam altas. Naquela noite quente, fui o mais básico possível, all star vermelho, camisa de linho e uma bermuda qualquer, acima do joelho, que na verdade, era bem curta, mas criava um bom contraste com a grande camisa de linho. Meu cabelo, que estava bem maior, eu havia prendido da maneira mais simples possível, mas pulando e dançando como eu estava, em pouco tempo o cabelo já estava solto e voando conforme eu pulava e dançava. Foi nesse cenário de completo caos que eu finalmente avistei o Benjamin.
No prólogo de “Todas as Mulheres do Mundo”, o eu lírico questiona o quê uns olhos têm que outros não têm, e o quê uns sorrisos têm que outros não têm, pra tentar entender o porquê de sua paixão fulminante por Maria Alice, e de certo modo, era o que eu estava me questionando. Enquanto eu pulava e cantava, por um milésimo de segundo, nossos olhares se cruzaram, enquanto ela abraçava aniversariante. Ele estava lindo, mais lindo do que antes. Seu cabelo estava um pouco maior e havia uma barba por fazer, pela roupa, calça, camisa e vans, eu entendi que ele havia vindo direto da redação do jornal onde trabalhava - apesar de não nos falarmos, as notícias acabam circulando. Carol estava com ele, mas de longe, parecia haver um certo distanciamento entre eles. Poderia ser algo da minha cabeça.
A música acabou, e pelo tanto que gritei, a sede bateu. Para me dirigir até o bar do karaokê eu teria que, obrigatoriamente, passar pelos dois; eu não estava devendo nada a ninguém, não havia por que não falar. Fui me dirigindo até a mesa, e mesmo seguro do que eu deveria fazer, um nervosismo se abateu sobre mim. Quando Benjamin me viu se aproximando, ele se levantou e saiu, me deixando extremamente desconfortável. Meu olhar se redirecionou à Carol, que também não acreditava no que havia acabado de ocorrer. Apesar disso, nada iria tirar o brilho daquela noite. Abracei a Carol, que retribuiu o abraço de maneira reticente, sem o mesmo calor de antes.
- Como você tá, querido? - ela deslizou a mão pela minha testa.
- Bem, meu amor. E você? - apesar de tudo, havia um sorriso em nossos rostos. As coisas esfriaram porque estávamos distantes, mas o carinho permanecia.
- Sobrevivendo ao caos, você sabe… - ela quis falar do casamento, mas percebeu que ali não era a hora, e mudou de assunto - aliás, você tá lindo.
- Olha quem fala - rimos. E não era mentira, Carol estava belíssima. Sua pele estava bronzeada e hidratada, os cachos pareciam superhidratados e havia nela um brilho especial, mas ainda assim, ao fundo, parecia haver certa tristeza. Certo incômodo.
- E você e o Ben? - ela indagou, despertando em mim a sensação que meu rosto estava queimando de vergonha.
- Uma hora a gente se acerta. - me limitei a dizer.
Fato é que, falar da nossa situação esdrúxula, ainda me causava um desconforto muito grande. Eu precisava sair dali e ainda precisava beber alguma coisa, expliquei a ela que iria pedir um drink e fui em direção ao bar, pedi uma garrafinha de água, paguei no caixa e, quando estava voltando ao karaokê, encontrei o André na porta. Eu, definitivamente, não consigo descrever a beleza daquele homem naquela noite, mas consigo descrever o sorriso dele quando me encontrou. Uma coisa linda. Seus braços se abriram e caso ele não os abrisse, eu os abriria para caber naquele abraço que era um dos mais gostosos do mundo.
- Como tu tá gato. - ele me beijou rapidamente.
- Não é a primeira vez que eu ouço isso hoje. - disse para provocá-lo, enquanto ria.
- Ah, é?! - ele entrou na onda e, com as mão fixas na minha cintura, me puxou para mais perto.
- É! Mas ninguém era tão gostoso quanto você. - rimos os dois, ele mordeu o lábio e me beijou novamente, agora com a intensidade que eu queria, podendo sentir o seu gosto com calma.
Quando nos afastamos, pude perceber que o Ben estava atrás do meu campo de visão, no interior do karaokê, observando a mim e o André, não havia nele um olhar de raiva, mas de choque, eu diria. Acho que ele nunca pensou na possibilidade de eu seguir sem ele, mas aquilo definitivamente não era uma demanda ou uma preocupação que eu deveria ter. Eu estava na companhia de pessoas incríveis, em um lugar especial, me sentindo bem comigo depois de meses em uma fossa. Nada, nem ninguém teria o poder de diminuir o meu brilho naquela noite.
Enquanto meu corpo aguentou, eu dancei, pulei e cantei, desfrutando da minha alegria e da alegria dos meus amigos. Nos poucos momentos em que parei, percebi que Ben e Carol estavam distantes, pouco interagindo com o grupo e entre eles mesmos. Quando finalmente os vi conversando, pareciam estar discutindo, mas, novamente: não era algo sobre mim, então eu não deveria saber.
Lá pelas 2 da manhã, meu corpo deu os primeiros sinais de que precisava descansar, André também demonstrou alguns sinais de cansaço, e decidimos irmos embora, mas ele para a sua casa, na Tijuca, e eu para a minha. Nos despedimos em frente a feira, pegamos nossos respectivos carros de aplicativo e seguimos.
Era quase 3 da manhã quando enfim cheguei em casa. Àquela altura da madrugada, já não havia mais porteiro e a entrada no prédio se deu por meio de um cartão magnético. Eu estava cansado, mas estava feliz. Troquei algumas mensagens com André, que já estava em casa, e fui tomar banho. Era o meu momento de relaxar e de cuidar de mim. Passei meus cremes, pude concluir minha rotina de cuidados com a pele, passei meu perfume e, enfim, estava pronto para me deitar.
Quando eu já estava no corredor, seguindo para o meu quarto, a campainha do apartamento tocou. Olhei assustado para o relógio, que já marcava 4h da manhã. “Só pode ser má notícia”, pensei.
Apesar de preocupado, eu também não era nenhuma safada. O Rio de Janeiro continua lindo, e a violência também continua. Me precavi e olhei pelo olho mágico, e para a minha total e completa surpresa, era o Ben quem estava na porta. Respirei fundo e abri a porta.
- Eu preciso falar com você. - ele empurrou o meu corpo e entrou no apartamento.
- Você tá maluco? Como assim quer falar comigo? E aliás, como você entrou aqui? - depois de quase 1 ano, ele estava retomando o contato da pior forma possível.
- Aquele casal do sétimo andar tava chegando, e como já nos conhecem de longa data, me deixaram entrar. - ele estava inquieto.
- Então você vai para o apartamento deles e sai do meu. - eu abri a porta e apontei para o corredor. - Sai da minha casa.
- Eu preciso falar com você, porra! Para de graça. - ele caminhou até mim e fechou a porta.
- Eu? Parar de graça? - Ri ironicamente. - Você tá há 8 meses sem falar comigo, hoje foi a primeira vez que nós nos vimos e você me IGNOROU! - a lei do silêncio me impedia de gritar, mas aquela ênfase eu tinha que dar.
- Eu sei, caralho! Eu sei que eu tô todo errado. Porra! - ele se sentou no sofá e colocou as mãos sobre seu rosto, em seguida me encarou. - Eu sei que eu sou todo errado, João. Eu não preciso que mais ninguém me fale isso. Eu sei.
- Ben - eu respirei fundo, ele tinha me quebrado de novo, com aquela maldita carinha, mas eu tinha de ser firme. Vai embora e volta aqui amanhã, não sei.. a gente almoça juntos, tenta conversar, tenta se entender, mas não agora. - me sentei na poltrona ao lado do sofá em que ele estava e prendi meu cabelo, o jogando para trás.
- Tem que ser agora, João. Você me deve isso.
- Eu não te devo nada. - falei sério.
- Deve sim, João. Você fodeu a minha vida quando falou que me amava.
- Eu só falei como eu me sentia… - nossos olhares se cruzaram.
- Conjugação verbal no passado? - ele esboçou um sorrisinho.
- E importa? Tem quase 1 ano já, Benjamin. Seu casamento é daqui a 3 ou 4 meses, eu acho. Nada que aconteceu naquela noite importa.
- Importa sim, João. Importa porque não tem um só dia em que eu não me lembre dela… e de você. Não tem um só dia em que eu não sinto falta do teu cheiro, do teu toque, do teu abraço… do teu sabor e da tua voz rouca no meu ouvido. - a sinceridade extremada do Benjamin sobre suas vontades sempre me deixou desconcertado. Não seria diferente agora.
- E do que adianta sentir tudo isso se a gente se afastou, Ben? Não vale a pena, Benjamin. Você vai se casar, e eu não tô dizendo que você não deve casar, porque você deve. A Carol é incrível. - encolhi o meu corpo na poltrona.
- Ela é foda, João, Eu nunca conheci uma garota tão legal como ela, mas desde que tudo aconteceu, eu só me afastei dela. Ela tentou entender, tentou conversar, mas as coisas só foram piorando, até chegar nesse ponto que a gente tá. Pra te ser sincero, eu sequer sei se a gente vai casar… vamos conversar sobre isso.
- Sinceramente, eu não sei o que falar ou o que pensar sobre isso.
Eu sabia que era um perigo o que eu iria fazer, mas quem estava sentado ali era o meu melhor amigo. Cansado, mal e ainda imaturo, mas o meu melhor amigo. Sai da poltrona em que eu estava e me sentei no sofá, ao seu lado. Permanecemos alguns momentos em silêncio, lado a lado, sabendo o que queríamos, mas sem saber como agir, até que ele quebrou o silêncio.
- Eu tava com muito medo de ter encontrar hoje. - não nos encaramos.
- Por que?
- Porque eu passei quase 1 ano fugindo de você. Não porque eu não queria a sua companhia, mas porque eu sabia que não iria conseguir estar perto de você sem ser como ficamos naquela noite. - Desde a manhã seguinte, eu sabia que no vão das coisas que a gente disse, não caberia nós sermos somente amigos… e eu só não sabia como fazer isso caber na nossa realidade… então você foi embora de casa e eu decidi te bloquear pra ver se passava.
- Passou? - ainda não o encarava, mas sabia que seus olhos já me fitavam.
- Eu achei que sim, mas aí a gente chegou lá e eu te vi com aquele cara. Eu paralisei e depois sentir o meu corpo queimar de raiva… raiva de mim mesmo, por não ser eu no lugar dele.
- Benjamin, eu… - finalmente o encarei, e acho que foi meu grande erro depois de tantos meses longe dele. No fundo, eu quis errar. No fundo, eu precisava errar. No fundo, eu queria errar.
Antes que eu concluísse a frase, ele me beijou, exatamente como naquela noite quente e chuvosa de verão, 8 meses antes. E exatamente como naquela noite, nós não paramos. Nós continuamos. Fomos até o final. Porque mais do que saudade e tesão, havia algo maior nos ligando.
- Eu te amo, João. Daqui até a eternidade. - ele disse entre um beijo e outro, já sem camisa e com as mãos levantando a minha camiseta.
- Eu te amo, Ben. Daqui até depois do fim. - sorrimos, e então ele tirou a minha camiseta e voltou a me beijar.
Ele estava correto: no vão das coisas que a gente disse, não cabe mais sermos somente amigos.