CAPÍTULO Um
*** MATHEUS GARCIA ***
— Aqui! E eu coloquei uma surpresa dentro! — Estendo a sacola de papel para a mãe, mas olho para a filha quando praticamente sussurro as últimas palavras e dou uma piscadinha. A menininha de cabelos escuros e traços orientais, assim como sua mãe, sorri para mim e embora eu saiba que a surpresa em questão é só um origami feito com guardanapo vagabundo, eu me sinto um super-herói por colocar aquele sorriso em seu rosto.
— Obrigada, Mat! Você sempre salva a minha vida! — Bárbara diz com a mão no peito, sobre a gola do terninho cinza que veste, em seu agradecimento diário antes de deixar sua, também diária, contribuição no pote de gorjetas ao lado do caixa.
Ergo meus olhos e dispenso suas palavras com um aceno rápido. Eu jamais me recusaria a fazer qualquer coisa que pudesse para ajudar uma mãe solo. Não quando eu tenho uma em casa que sempre fez das tripas ao coração por meu irmão e eu. Sei bem que qualquer ajuda, mesmo que seja apenas conseguir comprar o lanche favorito da filha cinco minutos antes do horário oficial de abertura da padaria, faz toda a diferença.
— Imagina, Bárbara. Você sabe que pode contar comigo. — Ela se despede com mais um sorriso agradecido antes de passar pela porta em que a placa pendurada ainda tem a palavra “Aberto” virada para o interior do estabelecimento.
Solto um suspiro longo e deslizo os olhos lentamente pelo lugar onde tenho passado muito mais do meu tempo do que em casa nos últimos dois anos. A Garden Gourmet nada mais é do que uma padaria para lá de gourmetizada, exatamente como todos os estabelecimentos dos bairros Jardins, em São Paulo.
Situada no térreo de um condomínio residencial de luxo, ela é parada obrigatória tanto para os moradores do tal condomínio quanto para quem trabalha ao redor e tem um vale refeição gordo o suficiente para pagar dez reais em um brigadeiro.
Da primeira vez que passei pela Garden, mesmo que só em sua calçada, eu tive certeza de que jamais poderia pagar pelo que quer que vendesse ali, eu sequer tive coragem de entrar. Meses depois, quando comecei a trabalhar aqui como jovem aprendiz, eu pude confirmar minhas suspeitas que, na verdade, sempre haviam sido certezas.
A fachada azul Tiffany e branca só não é mais atrativa do que seu interior, todo planejado para se parecer com um desenho de duas dimensões. Do chão às luminárias, em uma foto, tudo parece exatamente como rabiscos monocromáticos sobre uma folha de ofício branca.
Segundo seu José, o português mão de vaca dono da padaria, a arquitetura da Garden foi inspirada em um café sul coreano e, de acordo com o pai dos burros do século XXI e daqueles que não são ricos o suficiente para conhecer presencialmente cafeterias que ficam do outro lado do mundo, ele está certo, e dando a César o que lhe pertence, a padaria paulistana é tão bonita quanto o café na Coréia do Sul.
Olho para o relógio que mais parece um desenho infantil rabiscado sobre a porta. Seis e quarenta e cinco. Ainda faltam quinze minutos para abrirmos.
— Irritantemente eficiente, como sempre... — A voz arrastada e mal-humorada me faz virar o pescoço. Encontro Clarissa passando pelas portas vai e vem enquanto amarra o avental meio amarrotado na cintura.
— Bom dia pra você também, flor do dia.
— Bom dia pra quem, Matt? Você é o único ser humano capaz de estar de bom humor às seis e quarenta e cinco da manhã. E logo você! De todas as pessoas que eu conheço, você é o maior detentor do direito de ser mal-humorado pela manhã! — Ela me encara com as sobrancelhas arqueadas como se o que tivesse dito fosse óbvio. — A qualquer hora do dia, na verdade — murmura as últimas palavras e eu não sei se deveria ter ouvido, mas o comentário me faz bufar.
Não que eu discorde dela, mas quem é que tem tempo para perder com mau humor quando se têm dois empregos, um irmão adolescente rebelde e uma mãe precisando de tratamentos médicos que custam os olhos dos quais preciso para enxergar? Por favor!
— Eu não tenho tempo pra ser mal-humorado, Clarissa.
— E quando eu crescer, eu vou ser igual a você! — diz, antes de seus olhos negros mudarem drasticamente, passando, com uma velocidade inacreditável, a se parecer exatamente como os do gato de botas e eu já sei exatamente o que ela está prestes a me pedir.
— Posso ficar no caixa hoje? Por favorzinho?
Um som incrédulo se expulsa da minha garganta. A cara de pau dessa mulher!
— A sua cara de pau não tem limites, Clarissa! — acuso e ela nem mesmo se dá ao trabalho de negar.
— É um dom — confirma, parecendo muito mais orgulhosa do que deveria. — Posso? — pede, outra vez, e eu reviro os olhos. — E assim você vai poder trocar uma piadinha com o cliente gostoso das sete e quinze. Eu sei que seu dia fica um pouco mais cinza quando você não consegue fazer isso — ela comenta despretensiosamente e algo como um guincho deixa minha boca quando eu me apresso em negar. Mas nem eu acredito na minha tentativa ridícula.
O cliente das sete e quinze. Apenas pensar sobre ele faz um arrepio nervoso atravessar minha espinha de ponta a ponta e uma sensação gelada tomar conta da minha barriga. Eu não sei seu nome, não sei o que ele faz para viver, não sei nada sobre ele, além de que é um feliz morador de algum dos apartamentos luxuosos sobre as nossas cabeças e que todas as manhãs ele pede um mocha e dois pães de queijo.
Parece pouco para um café da manhã, mas qualquer um que veja aquele corpo esculpido por deuses e sempre exposto em ternos, sem dúvida alguma feitos sob medida, entenderia. O homem tem a pele morena num bronzeado eterno como se vivesse de sol e mar, mas isso não é tudo. Está muito longe de ser tudo. Seus cabelos têm cachos caindo pela nuca e cobrindo as orelhas em um comprimento que não é longo nem curto e seus olhos são de um tom obsceno de azul.
Só não mais obsceno do que o conjunto de sua imagem e todas as manhãs, quando ele passa pela porta, fazendo a sineta sobre ela soar, eu preciso reunir toda a capacidade de concentração existente em meu corpo para não fazer papel de tolo, e, ainda assim, há dias em que eu simplesmente não consigo. Mesmo nesses, principalmente nesses, como se soubesse que preciso de algo para não babar em cima dele, o cliente das sete e quinze sempre tem uma piadinha ou trocadilho engraçado para trocarmos durante os trinta segundos em que lhe entrego seu Mocha.
Na verdade, pensar ou usar meu grande amigo google para pesquisar essas piadas se tornou uma tarefa obrigatória no meu dia. E eu sei que eu poderia aproveitar muito melhor o tempo que perco fazendo isso, sendo mal-humorado, por exemplo. Mas prioridades, não é mesmo?
Nos últimos dois anos, o dono dos meus mochas melhores preparados, só deixou de vir tomar café cinco vezes e só entrou aqui em qualquer outro horário que não fosse às sete e quinze da manhã três vezes. Nas três, ele comprou um brigadeiro depois do almoço e eu tenho certeza de que aquelas foram fugas não planejadas.
— Tudo bem — balbucio quando me dou conta de que fiquei tempo demais em silêncio, divagando sobre o cliente, para ser possível argumentar contra as certezas de Clarissa e o sorrisinho em seu rosto não deixa qualquer dúvida sobre isso.
********************
*** BRUNO MAGALHÃES ***
— Ei, looser! — No instante em que aceito a chamada e coloco o celular no ouvido, arrependo-me. Eu sabia o que estava por vir e nem isso me impede de ter vontade de arremessar o aparelho pela janela do carro.
— Sério? — é o melhor que consigo dizer em resposta e é claro que isso não é o suficiente para evitar as palavras que eu sempre soube que ouviria.
— Ah, pode ter certeza de que é muito sério! — O sorriso na voz de Arthur tem cheiro, cor e gosto. Eu os sinto, mesmo à distância. — Você é o desgraçado mais competitivo que eu já conheci e é a primeira vez em vinte e dois anos que eu tenho o prazer de dizer essas palavras. — Ele faz uma pausa, saboreando a própria vitória e eu aperto os dentes, engolindo todo o veneno que gostaria de destilar. — Acredite! Eu vou aproveitar! — declara, satisfeito consigo mesmo e é mais forte do que eu. Um bufar sonoro escapa por entre os meus lábios. Isso o estimula. Meu amigo de infância gargalha, ouvindo através do meu silêncio e sabendo exatamente o quanto ele está me custando. — Todos nós vamos! Na verdade, estamos fazendo uma escala pra te ligar de uma em uma hora todos os dias pela próxima semana só pra dizer isso, então esteja pronto.
É claro que estão. Passo a mão livre pelos cabelos, desejando poder puxá-los até o ponto da dor. Estaciono o carro diante da escadaria de mármore branco de acesso à casa dos meus pais. No meu atual humor, tudo o que eu não preciso é a porra de um almoço de família, mas aqui estou eu.
Saio do carro e arremesso as chaves para Carlos. O funcionário as pega no ar e me dá um sorriso gentil. Eu sorrio de volta, sem vontade alguma, mas o pobre homem não tem culpa dos meus amigos serem uns filhos da puta. Quatro barbados que, quando deixados sozinhos, ainda agem como os moleques que se conheceram no internato há mais de duas décadas.
Mesmo que dadas às circunstâncias, sorrir não esteja entre as minhas prioridades no momento, a imagem que pisca em minha mente faz com que isso seja impossível de evitar. Nós cinco com olhos roxos, sentados em fila na antessala do diretor do Colégio Saint Ives quando tínhamos éramos mais jovens, esperando pela repreensão após termos nos envolvido em uma briga.
Algum idiota, novo na escola, achou que seria uma boa ideia mexer com Pedro por ele ser o típico garoto nerd de corpo franzino, sempre carregando livros, usando óculos retangulares e com os cabelos bagunçados. Nós mostramos ao imbecil e aos seus amigos que, não. Não era.
A verdade é que Arthur, Heitor, Conrado e eu também éramos o que se chamava de nerds naquela época, mas diferente de Pedro, sempre nos importamos em pegar mulher, e homem no meu caso, tanto quanto nos importávamos com números. Então, àquela altura, nós quatro passávamos pelo menos um par de horas na academia do internato todos os dias. Pedro fazia o mesmo, mas ao invés de aproveitar o tempo que estava lá usando barras e supinos, ele estava jogando LOL.
— Eu sempre posso não atender vocês... — digo o óbvio.
— E ser um perdedor duas vezes? Um que perde e que não aceita isso? Ah, não. — Ele estala a língua, adorando cada segundo disso. — Isso não combina com você, Bruninho. — Fodidos. Bando de fodidos que sabem apertar todos os meus malditos botões. Todos eles, ainda que agora eu esteja aturando apenas um. Eu simplesmente não conseguiria ignorar suas chamadas e dizer, ainda que silenciosamente, que eles ganharam de novo. Não. Eu vou aceitar em silêncio até que os cretinos se cansem.
Fingir que não me importo até ser verdade ou, pelo menos, até que eles acreditem que sim. Apesar de duvidar muito que isso vá acontecer. Eles me conhecem há tempo demais.
— Vocês não têm mais o que fazer, não? Da última vez que eu chequei, vocês eram empresários renomados, não desocupados que podem ficar me ligando de hora em hora pra me infernizar.
— Ah, nós somos! — Ele ri, uma gargalhada leve que me faz aumentar o aperto da mão ao redor do aparelho celular. — E é por isso que cada um de nós pediu às secretárias que acrescentasse à agenda um compromisso cíclico. O código é beber água. Acredita?
— Vai se foder, Arthur. Essa ligação tem algum propósito?
— Me vangloriar? — O tom é calculadamente debochado e vai subindo nas escalas de volume e ironia a cada palavra dita. —Tripudiar em cima de você? Te dizer que você fracassou? Te lembrar que você perdeu? Te chamar de perdedor de tantas maneiras quanto for possível sem repetir o adjetivo?
— Uhum. Boa tarde, Arthur. — Sem qualquer remorso, desligo o telefone na cara do meu amigo. Segundos depois, o telefone vibra em minha mão. Não é outra chamada, mas uma notificação de nova mensagem.
— Filho da puta! — reclamo em voz alta, mesmo sabendo que se os papéis fossem invertidos, eu seria ainda mais insuportável.
A verdade é que se estou me descobrindo um mau perdedor, não é novidade para ninguém que eu sou um ganhador ainda pior. E essa é única coisa na qual eu me admito ser ruim, porque, convenhamos, é bom para caralho, como Arthur está adorando esfregar na minha cara.
Passando pela porta de entrada e atravessando os corredores de piso e paredes brancas na direção da sala de estar, onde tenho certeza de que minha família já está reunida, eu balanço a cabeça em negativa. Perder definitivamente não é algo com o qual eu esteja acostumado, falhar não é, na verdade. Apostar? Sim. O tempo todo. Perder? Jamais. Exceto por essa vez. Essa maldita vez em que, nem em um milhão de anos, eu teria previsto que minha aposta estaria completamente equivocada.
— Meu filho! — minha mãe saúda assim que me vê.
A mulher elegante, vestida em seu conjunto de saia e blazer brancos combina com o ambiente de decoração clássica, cercado por imensas paredes de vidro que deixam a luz natural inundar o cômodo de piso marmorizado.
Do imenso sofá cinza, Bárbara Magalhães se ergue em toda sua habitual elegância. Seus cabelos estão presos em um coque no alto da cabeça e seus olhos azuis, como os meus, sorriem, evidenciando as pequenas rugas ao redor deles, segundos antes de eu envolve-la em meus braços.
— Oi, mãe. — Beijo sua testa quando ela se afasta ligeiramente.
— Como estava Paris? — pergunto.
Eu tenho bons pais. Não são os mais presentes do mundo, nunca foram e, na verdade, ir para um colégio interno foi uma escolha minha. Filho único, eu passava tempo demais sozinho enquanto meus pais estavam constantemente viajando.
Uma escola que eu pudesse chamar de casa e que estaria sempre cheia, diferente da minha casa de verdade constantemente vazia, simplesmente pareceu uma boa opção, mesmo que eu só tivesse nove anos na época.
— Divina, como sempre — responde sorridente. — Nós sempre teremos Paris... — cantarola a frase famosa, arrancando-me uma risada. Ela me solta e eu puxo meu pai, já parado ao nosso lado, para um abraço.
— E aí, velho? — O homem de barbas e cabelos grisalhos, tem a pele, naturalmente morena e seus olhos escuros estão fixos em mim. Diferente da minha mãe, que está sobre saltos, mesmo dentro de casa, meu pai está confortavelmente vestido em bermudas e uma camiseta polo.
— E aí, jovem? — O abraço dura pouco. Demonstrações exageradas de afeto também nunca fizeram parte da nossa dinâmica familiar. Eles retomam os lugares que ocupavam antes e eu me sento no sofá, ao lado de minha mãe.
— Como estão os negócios? — É a primeira pergunta que meu pai faz e eu bufo dramaticamente. Ele entende perfeitamente meu protesto ainda que eu não tenha exatamente dito alguma coisa. — O quê? Eu adoraria perguntar sobre seu namorado, noivo ou esposo se você tivesse um.
— Devagar aí, velho! Eu tenho trinta e três, não cinquenta e dois — argumento e é a sua vez de bufar.
— Maurício e Joaquim já tem genros — resmunga baixinho e um som de escárnio deixa minha garganta. Ótimo! Tudo o que eu precisava era ser comparado com os malditos João Pedro Gouvêa e Marcos Valente.
Os filhos dos melhores amigos do meu pai sempre foram uma pedra no meu sapato. Arrogantes, egocêntricos e presunçosos, nossa relação esteve fadada ao fracasso desde que ainda usávamos fraldas. Apesar de termos a mesma idade, percebi muito cedo que reproduzir a amizade dos nossos pais nunca esteve nos planos de qualquer um deles.
Aquela era uma relação a dois e eu estaria pouco me fodendo para o casal se eles não fizessem questão de se exibir como se fossem sempre melhores do que eu. Minha competitividade exagerada nunca foi injustificada. Primeiro, eram os brinquedos, depois, as conquistas acadêmicas, e, por último, os homens.
Dos dois, João Pedro sempre foi aquele que considerei o pior. O imbecil sempre levou as competições ao extremo e dividir o mesmo ambiente com ele se tornava uma prova de paciência. Porque ao mesmo tempo em que eu queria ligar o foda-se e apenas ignorá-lo, não ceder às suas provocações e não entrar no jogo de “quem é o melhor” foi ao algo que me descobri incapaz de fazer.
Com Marcos as coisas eram diferentes. Nós nunca seríamos amigos, mas quando ele estava sozinho, até podíamos manter uma conversa de um minuto. Ele eu podia tolerar. Ou, pelo menos, costumava poder. O filho da puta tinha que ser encucetado e me fazer perder, pela primeira vez na vida, uma aposta?
Porra! Eu nunca teria imaginado! Nunca! Nem em um milhão de anos, ou jamais teria sugerido a competição em primeiro lugar.
Quando anunciaram que o herdeiro da Valente & Camil advogados estava prestes a se casar, foi impossível fugir do assunto e em uma das vezes em que ele surgiu entre meus amigos e eu, fui taxativo em dizer que apostaria minha nova Lamborghini que o casamento não duraria nem seis meses, antes que ele traísse o tal Anthony.
Aquele bastardo nunca ficou com um cara por mais de uma semana. A notícia de que ele estava prestes a se casar não soou nada menos do que absurda. Ainda mais do que a do casamento de João Pedro, algum tempo antes. Por isso, apostar que o filho dos amigos dos meus pais trairia seu marido na primeira oportunidade, quiçá, antes mesmo que subissem ao altar, não era nada demais. Deveria ter sido uma aposta ganha, como todas as outras.
Arthur, Pedro, Heitor, Conrado e eu sempre apostamos tudo. No início, eram as coisas mais banais, como figurinhas, quando éramos moleques. Mas à medida que crescemos as apostas também se tornaram maiores e em algum momento, apostar dinheiro perdeu a graça, afinal, isso nunca nos faltou nem faltará. Não era realmente algo que temêssemos perder. Herdeiros das maiores fortunas do Brasil, ainda que não tivéssemos nos empenhado em criar nossas próprias riquezas, pobres, definitivamente, não seríamos.
Então, começamos a subir os riscos: itens colecionáveis, carros raros e, por último, tarefas impossíveis, ou tão difíceis quanto éramos capazes de pensar acabaram por se mostrar o mais divertido. E quando todos gostaram da ideia de apostar sobre o casamento de Marcos a seu favor e contra mim, eu deveria ter desconfiado de algo. Principalmente quando Arthur propôs o que eu deveria fazer, caso perdesse.
É provável que os infelizes que chamo de amigos soubessem de alguma coisa. Porque, se para mim, que conhecia o homem, era inimaginável que, agora, seis meses depois do dito casamento, ele andaria por aí parecendo não apenas feliz, mas orgulhoso de ter sido encoleirado, para meus amigos, cujo contato com o herdeiro Valente nunca tinha passado de cumprimentos em eventos, deveria ter sido algo para além de impossível.
Deveria, mas não foi. E foi assim que me fodi. Porque, agora, além de ter, pela primeira vez, perdido uma aposta, eu tenho em mãos uma tarefa ingrata. Passar três meses com o mesmo cara, puta que pariu. Apenas repetir as palavras em minha própria cabeça já faz com que eu a sinta latejar.
Eu não tenho nenhum tipo de desequilíbrio emocional que me impeça de desenvolver relacionamentos, nem qualquer trauma num passado sombrio. Não. Mas outra coisa que eu não tenho?
Paciência. E disso, relacionamentos exigem muito. Se há algo no qual eu não tenho disposição para empenhar esforço é em me relacionar com uma pessoa. Não quando tudo o que sempre precisei fazer para conseguir companhia foi sorrir.
E quando nem a isso eu estava disposto, eu sempre pude apenas pagar. O que me leva à segunda razão que deveria ter me feito desconfiar das intenções daqueles quatro filhos da puta. A regra da aposta, caso eu a perdesse. Três meses com o mesmo cara, qualquer cara, desde que não fosse um prostituto. Tratantes do caralho!
— Deixe o menino em paz, Bernardo! As coisas vão acontecer quando tiverem que acontecer — minha mãe silencia meu pai e eu quase estalo um beijo em sua bochecha por isso. O velho bufa, mas não insiste. — Como estão os meninos? — pergunta e minha gratidão recém-adquirida é imediatamente exterminada.