Continuação:
Me recompus rápido, não deixando que ela notasse a minha tristeza. Eu precisava disfarçar qualquer espanto. O Sr. Sérgio e a dona Áurea me olhavam, esperando a minha reação. Lembrei do doce:
- Tem tempo, é verdade, mas eu me lembrei disso. - entreguei à ela o embrulho.
Surpresa, ela abriu o pacote com as mãos trêmulas, dando um sorriso genuíno:
- Só você mesmo para lembrar. Há quanto tempo eu não como isso.
Sem pensar duas vezes, ela enfiou uma Carolina inteira na boca, arregalando os olhos ao sentir o sabor:
- Hummm, está fresquinha. Que delícia!
Achei melhor agir normalmente, não ficar cheio de receios ou com cautela demasiada:
- Que cabelo é esse? Virou hippie ou está em algum culto?
Acho que acertei, pois ela sorriu novamente:
- Ah, sei lá! Deu vontade e eu mesmo cortei. Não gostou?
Senti que era provocação, o que era uma coisa muito normal entre a gente antigamente. Mantive a postura:
- Por que não aproveitou e pintou de roxo? Ia chamar mais a atenção.
Senti que ela relaxou com a brincadeira, pois chegou mais perto de mim:
- Seu bobo! Não mudou nada, né? Se bem que essas roupas sóbrias lhe fazem parecer mais maduro. Eu gosto dessa sua nova versão.
Aproveitando a descontração, convidei:
- Quer dar uma volta? A tarde está agradável.
Ela pensou por alguns instantes e por fim, disse:
- Tá bom! Mas por aqui mesmo.
Eu concordei:
- Podemos ir até a praça, tomar um sorvete, colocar a conversa em dia… o que acha?
Ela entregou o embrulho com o doce para a mãe:
- Guarda pra mim, como depois da janta. - E voltou a se virar para mim. - Vamos sim! Vou colocar um tênis e já volto.
Enquanto ela subia as escadas rapidamente, parecendo bem contente com o meu convite, seus pais me olhavam com olhos agradecidos e um semblante feliz. Não trocamos nenhuma palavra, não era necessário. Jéssica voltou em dez minutos. Havia trocado a bermuda e a camiseta de ficar em casa por uma calça leggings e uma bata mais solta. Estava com o cabelo penteado e uma maquiagem leve. Nós saímos.
Caminhamos calados por alguns minutos, nos olhando de vez em quando e sorrindo. Ela parecia querer dizer alguma coisa, mas acabava desistindo. Apesar de estar mais magra, ainda era possível reparar os belos contornos de seu corpo pequeno e delicado. Resolvi ir direto ao assunto, sem mais rodeios:
- Que história é essa de desistir da faculdade? É sério isso?
Ela me olhou assustada:
- Sei lá, perdi a vontade.
Achei que precisava manter a conversa em um tom sério, sem brincadeiras:
- Isso é meio infantil, não parece uma coisa que você faria.
Jéssica parou e me encarou:
- E o que você poderia saber? Até parece que você se importa…
Eu a interrompi:
- Se não me importasse, não estaria aqui agora.
Me olhando com um misto de raiva e tristeza, ela disse:
- Vocês todos acham que eu sou boba? Eu escuto meus pais conversando baixinho. Eu sei que você só está aqui porque minha mãe foi se lamentar com a sua, e porque o meu pai encontrou com você por acaso na casa da sua namorada, não foi?
Eu não tinha motivos para ficar na defensiva:
- A minha vontade de estar aqui não conta, então? Eu sou apenas um escravo da vontade de outras pessoas?
Jéssica abaixou a cabeça:
- Não sei! Talvez eu não o conheça mais…
Eu fiquei irritado:
- Sei lá… não sei… é só isso que você tem para responder? Esqueceu o motivo das nossas vidas tomarem esse rumo?
Senti que passei do ponto, pois lágrimas escorriam do rosto dela. Respirei fundo e me acalmei. Não poderia ajudá-la sendo grosseiro. Não entendia a mágoa que começava a tomar conta de mim. Em menos de meia hora as coisas já estavam tomando um rumo péssimo.
Parei na frente dela e com a mão em seu queixo, levantei seu rosto, fazendo com que me encarasse. Limpei as lágrimas que escorriam e disse:
- Independentemente de qualquer coisa que tenha acontecido, você sempre fez falta na minha vida. Eu não tinha conhecimento do que você estava passando, por isso não vim antes. Você sempre foi a forte entre nós dois, eu jamais imaginaria que você estivesse sofrendo.
Jéssica me abraçou emocionada, se apertando contra mim, liberando o pranto mais pesado. Eu deixei que ela colocasse tudo para fora, retribuindo seu abraço e acariciando seu cabelo. Ficamos ali, parados na calçada, sendo observados por quem passava e não entendia nada.
Levou um bom tempo, mas ela se acalmou. Decidimos continuar a caminhada até a praça. Eu comprei dois sorvetes e nos sentamos em um banco mais afastado. Decidida, ela foi direta:
- Eu preciso contar tudo, tirar tudo isso de dentro de mim de uma vez. Você ainda quer ouvir? Saber o que aconteceu?
Eu fui honesto:
- Acho que é importante. O futuro da nossa amizade depende disso.
Jéssica me encarou, mas não parecia querer chorar outra vez. Ela pegou na minha mão e entrelaçou nossos dedos. Ela pensava com calma nas palavras:
- Eu sempre senti que tínhamos uma ligação especial. Você e eu, estarmos juntos, era tão natural, tão certo, que eu acabei me sentindo confortável e deixando as coisas seguirem naturalmente.
Ela fez uma pausa, me olhando com preocupação:
- Mas quando as coisas começaram a tomar um caminho romântico, com você sendo carinhoso e sempre tentando me beijar… no começo, eu me assustei, não sabia como retribuir.
Ela apertou minha mão mais forte, me puxando para ficar ainda mais próximo dela:
- Eu estava confusa e acabei deixando você achar que éramos namorados. Eu deveria ter sido honesta e dizer que ainda não estava pronta…
Essa culpa não era só dela e eu precisei interromper:
- Eu também segui o fluxo, era confortável. Eu também estava confuso, mas fiquei quieto e me aproveitei da situação…
- Não! Eu fui idiota. Só percebi a verdade dos meus sentimentos depois que perdi você. Só descobri o que sentia, a intensidade, quando não tinha mais. Clichê, né? Me confundi com uma falsa amizade e interesse amoroso que me fizeram perder você. Fui ingênua.
Eu aproveitei o momento e fui direto:
- O que aconteceu? Você quer contar?
Jéssica novamente abaixou a cabeça, pensando e buscando as palavras:
- Tudo começou nos últimos três meses do ensino médio, quando eu comecei a fazer o cursinho para o ENEM. Eu conheci melhor uma garota que mexeu muito comigo, mas no fundo era tudo encenação.
Vendo que ela perdia a coragem, incentivei:
- Não precisa acelerar, conte no seu tempo.
Jéssica estava ansiosa:
- A Júlia, lembra dela? A loirinha magrinha.
Julia era uma garota do mesmo ano que o nosso, mas de sala diferente. Ela sempre tentou se aproximar da gente, mas eu nunca dei entrada. Jéssica às vezes conversava com ela na escola, mas logo voltava para o meu lado. Eu nunca percebi nada.
Jéssica continuou:
- Quando começou a passar mais tempo a sós comigo, sem você por perto, ela veio com tudo pra cima, me seduzindo, mexendo com a minha cabeça, me enchendo de dúvidas sobre a minha sexualidade…
Vendo que ela novamente se calou, perguntei:
- Mas por que você não foi honesta comigo? Quando foi que nós julgamos um ao outro? O que tínhamos de melhor era o quanto nos entendíamos…
Jéssica, com lágrimas escorrendo novamente, me interrompeu:
- E como eu ia contar aquilo para você? Eu já me sentia traindo…
- Traindo como? O nosso namoro inventado e estranho?
Vendo que eu ria da situação, Jéssica também não conseguiu segurar o próprio riso:
- O meu medo não era perder o namorado, e sim, o meu melhor amigo. E se você me achasse uma pessoa suja, uma anormal?
Eu fiquei realmente bravo:
- E desde quando você me acha uma pessoa preconceituosa e incapaz de entender e apoiar?
Jéssica tinha um argumento:
- Lembra da Mariana? A lésbica da escola? E do Marquinhos, o afeminado? Lembra quantas vezes rimos e tiramos sarro dos dois?
Aquilo me pegou de surpresa e era uma verdade que eu não podia negar:
- Éramos dois idiotas. Adolescentes sem noção. Mas eu jamais pensaria mal de você. É uma situação diferente.
- Diferente até que acontece com a gente, não é? Então passa a ser trágico. Com os outros é engraçado…
Eu não tinha como rebater, preferi me calar. Ela voltou a falar:
- Foi com a Júlia que eu fui até aquele motel.
Eu só queria saber de uma única coisa:
- E o que você me disse na época, que desistiu na hora H, é verdade?
Ela nem pensou duas vezes:
- Sim! Eu desisti e me senti a pior pessoa do mundo por estar fazendo aquilo com você.
Quando eu me preparava para falar, ela foi mais rápida e confessou:
- Mas eu fiquei com ela no dia anterior. Nos beijamos e passamos algumas horas juntas. Ela me deu carona e a gente ficou no carro dela.
Eu não sei se estava puto ou excitado imaginando as duas juntas:
- E o que aconteceu no carro?
Jéssica parecia constrangida, mas decidiu ser honesta:
- Aconteceu mais do que eu gostaria de admitir. Ela chupou meus seios e tentou enfiar os dedos na minha xoxota.
Meu pau já dava trancos e eu precisei disfarçar:
- Tentou enfiar os dedos? Só tentou?
Jéssica ainda não tinha reparado na minha excitação:
- Sim! Eu estava com medo e sai correndo do carro. Quando ela começou a alisar minha xoxota, você veio com tudo na minha cabeça. Eu saí correndo para dentro de casa. Acho que nem fechei a porta do carro.
A história ainda estava incompleta:
- E como vocês foram parar no motel?
Jéssica, de pálida, começava a ficar corada de vergonha:
- Ainda naquela noite, ela me bombardeou de mensagens, me atiçando e mexendo comigo. Eu não resisti, acabei aceitando a proposta. Eu não sei explicar o porquê, acabei indo, ela disse que só queria conversar… você estava distante, triste por ter desistido da medicina. Até o emprego com meu pai foi uma forma que eu encontrei de tentar diminuir minha culpa pelo que fiz a você…
Fui obrigado a interromper novamente:
- E tudo isso é motivo para a sua vida ter desandado desse jeito? Éramos adolescentes em uma relação totalmente anormal. É hora de seguir em frente, não acha?
Jéssica me surpreendeu:
- O problema foi o que aconteceu depois… a sua ausência me mostrou o quanto eu amo você, o quanto fui idiota, a falta que você me faz… me desculpe, por tudo. Por ter estragado nossa amizade, por ter deixado você se afastar com tantas dúvidas…
Eu tinha duas opções: ou esquecia de vez tudo aquilo e perdoava, ou aceitava uma traição meia boca e me fazia de vítima, perdendo definitivamente uma pessoa que fazia uma falta tremenda na minha vida. Comparando nossas vidas, era visível o quanto ela estava arrependida e o quanto eu progredi após tudo aquilo. Decidi pelo óbvio:
- Eu perdoo você, mas com a condição de seguirmos em frente. Podemos voltar a ser amigos, o que me diz? E eu quero ajudá-la a melhorar, voltar a ser a Jéssica de antes.
Me surpreendendo, mas de forma muito honesta, ela disse:
- Eu sei que não posso esperar que você ainda sinta a mesma admiração e o mesmo carinho por mim, e nem mesmo que possa voltar a me olhar da mesma forma, eu sei que errei, mas só de ter você de volta a minha vida, já me sinto menos incompleta, mais pronta para recomeçar.
Ela me encarava com os olhinhos brilhando de esperança, e numa atitude completamente sem noção, não resistindo e não sabendo o porquê de fazer aquilo, eu a beijei. Ela se apegou àquele beijo e retribuiu de forma tão intensa, que eu não consegui escolher um momento certo para parar. Foi um beijo longo e cheio de entrega por parte dela.
Eu estava completamente desorientado e ela se agarrava a mim, feliz, sem querer me soltar. Eu mantinha o abraço apertado para que ela não conseguisse olhar o meu rosto e ver a minha indecisão.
Um pensamento egoísta e covarde me ocorreu: "E se eu der uma nova chance a Jéssica? Minha mãe gosta demais dela, seus pais me respeitam, ela está arrependida e diz que me ama. Ela é linda, mesmo que agora não pareça e juntos sempre fomos incríveis. Posso me livrar de Ester e do provável problema com meu patrão, e ainda mantenho Marcela longe, me livrando do problema Daniel." Eu não seria capaz de tamanha maldade. Aquele pensamento era inverso aos meus valores. Usar as pessoas por conveniência, por capricho, não era uma coisa legal e eu jamais teria tal coragem.
Jéssica me tirou dos pensamentos e me fez encarar a realidade:
- O que foi isso? Você ainda gosta de mim? Por que esse beijo?
Tentei me justificar:
- Me desculpe, não sei…
Ela me interrompeu:
- Não, foi ótimo. Não precisa se desculpar. É muito mais do que eu mereço.
Resolvi jogar limpo:
- Vamos recomeçar. O que você precisa no momento é se recuperar. Não seria justo fazer promessas e não ter como cumpri-las se alguma coisa der errado no caminho. Precisamos ir com calma…
Bastante triste, prevendo uma rejeição, ela me interrompeu novamente:
- Podemos ir com calma, sem pressa, mas não se afaste mais de mim. Eu posso esperar, só me deixe recuperar a sua confiança. Eu preciso de você, JB!
Novamente, eu me via em uma sinuca de bico: rejeitá-la poderia ser o melhor para mim, mas o quanto uma possível rejeição a afundaria mais no sofrimento? Achei melhor manter as coisas de um jeito que eu pudesse controlar:
- Eu não vou me afastar de você, fique tranquila. Mas precisamos ir com calma. Antes de pensar em qualquer outra coisa, você precisa se recuperar.
Ela me encarou um pouco menos triste:
- Eu vou melhorar, já estou vendo uma psicóloga até.
Aproveitando o momento, fui taxativo:
- E a faculdade? O ENEM ainda é válido, o que acha da gente começar juntos? Eu estou pensando em começar já no próximo semestre.
Jéssica me deu o sorriso mais luminoso até então:
- Sério? Resolveu realizar o sonho, vamos mesmo ser médicos?
Naquele momento, achei melhor contar a verdade de uma vez:
- Não! Eu quero fazer Direito, acho que tem mais a ver comigo. Até me ofereceram uma bolsa de estudos no serviço.
Vendo que ela voltou a ficar triste, expliquei:
- Minha mãe está cansada, está na hora de eu assumir o meu papel de homem da casa. Não posso mais abrir mão do salário que ganho e trabalhar em empregos menores. Uma faculdade em período integral me obrigaria a viver de empregos mal remunerados e que pagam muito pouco. Hoje ganho melhor e até já fui promovido.
Concordando comigo, mas mesmo assim, triste, ela apenas disse:
- Eu entendo.
Conversamos por mais de uma hora, e aos poucos, Jéssica ia se mostrando novamente a mesma garota de um ano atrás. Ela me contou do tratamento, do quanto estava feliz por voltar a me ver, mas também, como não poderia deixar de ser, a pergunta inevitável foi feita:
- Você está namorando?
Mas do mesmo jeito que foi feita, a pergunta veio com um pedido de desculpas:
- Não é uma cobrança, é só curiosidade. Eu não tenho esse direito e se não achar que deve, não precisa responder.
Resolvi ser honesto, manter tudo às claras:
Eu realmente me envolvi com uma pessoa, mas não é nada sério, é uma relação casual. Não temos compromisso.
Um pouco nervosa, ela me questionou:
- E você a ama?
Fui firme e honesto:
- Nem um pouco. É apenas o que é, uma curtição sem futuro.
Jéssica pareceu feliz com a resposta, mas resmungou:
- Ela foi a sua primeira, né? Como eu fui burra, deveria ter sido eu…
Resolvi testá-la:
- Injusto você falar assim, eu também gostaria de ter sido o seu primeiro.
Jéssica me encarou com um sorriso malicioso, mas não respondeu nada. Para uma primeira conversa, tudo acabou sendo melhor do que eu imaginava e sinceramente, eu fiquei muito feliz com o resultado.
Por vontade dos dois, caminhamos de mãos dadas até a casa dela, sorrindo como bobos um para o outro. Eu estava realmente feliz por tê-la de volta em minha vida. Mesmo tendo a certeza de que fui traído, não era lá uma traição tão imperdoável assim. Nos momentos mais importantes, ela até conseguiu se segurar e evitar o pior. Eu teria feito o mesmo?
Não consegui negar, e ao me despedir, nos beijamos novamente, mas daquela vez, de forma mais carinhosa do que intensa, apenas para confirmar aquela reaproximação.
O que aconteceria a seguir, o rumo que as coisas iriam tomar, seriam consequências diretas da volta de Jéssica à minha vida.
Continua…