Me tornar professor fez com que eu me tornasse um entusiasta do sonho. Aprendi a admirar, abraçar e encorajar os sonhos dos meus alunos, o que resvalou pras minhas demais relações interpessoais, como família, amigos e, até mesmo, aqueles que eram apenas meus colegas de trabalho. Valorizar tanto os sonhos dos outros fez com que eu aprendesse a olhar para os meus sonhos com um maior carinho e atenção. Longe de mim querer me comparar, mas eu e Martin Luther King tínhamos um sonho comum: viver em mundo que fosse justo, igualitário e, principalmente, de paz.
O desejo pela paz era algo quase ancestral para mim. Me inspirei no Dr. King, mas também passei pelo Gandhi e Mandela, mas quanto mais eu buscava a paz, mais as coisas se afastavam da paz que eu tanto almejava, e mais se aproximavam da intensidade desenfreada que também tanto me perseguia.
Ali, ouvindo o Ben falar sobre a gravidez, tudo parecia ser um delírio inconsistente. Meu corpo parecia flutuar no ar, desconexo a tudo, embora eu ainda o ouvisse falar. Eu precisava voltar à realidade, precisava retomar o controle sobre mim e sobre aquela situação, ainda que minimamente. Era preciso que eu saísse daquele infinito particular em que eu estava.
- Ela disse que descobriu alguns dias antes e que tava se preparando pra me contar, e ai… - ele pausou. Estávamos dentro de casa, sentados no sofá, ambos atônitos em relação a tudo.
- E aí você sumiu durante 12h pra ficar comigo. - me levantei e ele veio atrás.
- Não, João - ele segurou meu braço, me fazendo parar no meio do caminho, eu estava me dirigindo para a varanda. - Não é sua culpa. Nunca foi. - suas mãos deslizaram para a minha cintura.
- Você não transou sem o meu consentimento, Benjamin. - tentei me afastar, mas ele me segurou com mais força.
- Não foi transar com você que nos trouxe até aqui, mas sim descobrir que eu tava completamente apaixonado por você… que eu tô completamente apaixonado por você. E quanto a isso, não há controle seu, não depende de você.
Ele me quebrou. Eu passei anos querendo ouvir do Benjamin aquelas palavras, passei anos idealizando como seria aquele momento, ou como eu gostaria que ele acontecesse, e quando ele enfim aconteceu, o homem não somente estava comprometido, como ainda estava prestes a se tornar um pai de família.
- Eu odeio você, Benjamin. Eu te odeio tanto. - ele tentou falar, mas não deixei - Não cogite falar nada. Eu odeio você! Eu passei anos apaixonado por você, correndo atrás pra te fazer feliz, pra te agradar, e você cagava pra mim, tava decidido a ser somente meu amigo. E aí quando eu finalmente decido assumir esse lugar e sair discretamente, você decide descobrir que tá apaixonado por mim?! Agora que até pai você vai ser, cara?! - o empurrei para longe, mas o longe ficou somente no campo das ideias, porque na prática ele apenas se deslocou um pouco para trás e soltou a minha cintura, permitindo que eu seguisse meu caminho até a varanda.
Cheguei próximo ao guarda corpo e respirei fundo. Não havia no mundo brisa marítima que pudesse abrasar o fogo que queimava, naquele momento, dentro de mim, mas olhar para o mar, sim. Ver o movimento sutil das ondas e observar as luzes do outro lado da Baía trouxeram um pouco mais de serenidade a mim. Me mantive fixo ao que estava à minha frente, mas notei quando ele se aproximou - minha visão periférica melhora muito quando estou com raiva. Não desviei o olhar, permanecemos calados, em um silêncio que contrastava com o fluxo de carros que corriam pelo aterro, abaixo de nós.
- Eu falei com ela sobre a gente. - ele quebrou o silêncio
- Como ela… você sabe… - permaneci sem encará-lo, mas sabia que ele já estava me olhando.
- Ela surtou.
- Com razão. - complementei.
- Com razão, mas as coisas já estavam muito ruins antes de eu te encontrar na feira. Ela ficou puta, mas disse que já sabia que uma coisa dessas poderia eventualmente ocorrer. Eu não entendi muito bem o que ela quis dizer com isso, mas eu só aceitei, e aí, depois disso, ela me disse que estava grávida.
Aquela informação ainda me pegava num lugar extremamente desconfortável - bom, traz a ideia de que transar com o noivo da minha (ex?) amiga e fazer passá-la por palhaça não me causasse desconforto ou remorso. Causava, e muito, mas agora, estávamos falando de um quarto elemento, em uma história que não deveria comportar nem o terceiro elemento, popularmente conhecido como eu.
Pensar naquela gravidez me desarvorava. Saí de perto do guarda-corpo e me sentei na poltrona mais próxima. Ele veio e se ajoelhou na minha frente, ficando um pouco abaixo da estatura em que eu estava naquele momento.
- Olha pra mim, por favor. - ele fez silêncio, e eu sabia que ele só iria falar caso eu o olhasse.
- Vai, fala. - eu o encarei. Ele deu aquele sorrisinho de vitória, que, sim, ainda me desmantelava.
- Tá tudo uma merda, João, eu sei. Ninguém mais do que eu, tá ciente disso. Eu tô largando um casamento às vésperas, uma noiva grávida e uma relação de anos. Eu sei o que você acha sobre relacionamentos que se iniciam a partir de uma traição, e eu sei que eu tô todo errado em ter te trazido pra cá, mas porra, eu te amo.
- Só amar não é suficiente, Benjamin. Olha o tamanho desse caos.
- Eu sei que só te amar não é o suficiente, mas eu quero te mostrar tudo o que tá dentro de mim. Eu quero te conquistar, caralho. Te provar que eu sou muito mais que eventualmente um filho da puta.
- Eventualmente? - saiu mais irônico do que eu havia planejado.
- Eventualmente! - ele se manteve sério.
- Me fala como uma ex e um filho cabem nesse modelo?
- As coisas talvez nunca se ajeitem entre eu e a Carol, mas nós temos um elo eterno. Eu quero ser o melhor pai possível, quero ser o suporte da Carol nessa jornada, apesar de saber que eu já comecei mal. E nada disso anula a importância de ter você por perto. Eu não vou te obrigar a participar de nada, nem a se responsabilizar por algo que diz completamente respeito a mim e as minhas escolhas, mas o que eu quero te mostrar é que há espaço na minha vida pra você, e que eu vou dar o meu melhor pras coisas se ajeitarem.
Eu respirei fundo e pensei por alguns segundos. Tudo ali já era distópico demais. Por que não tentar? Por que não aceitar que eu já estava envolvido demais para não me fazer presente? Por que não aceitar que aquela história, sob muitas formas, era a minha história.
- Quando eu quiser ir embora, eu vou embora. - ele tentou conter o sorriso, sem sucesso.
- Quando você quiser. - seu rosto se aproximou do meu.
- Quando eu quiser. - nossos rostos estavam colados e nossos lábios quase se tocando.
- Você não vai querer ir embora. - e então nossos lábios finalmente se tocaram.
Finalmente eu estava beijando um homem solteiro, mas a qual custo? Assim falou Tim Maia: um nasce pra sofrer, enquanto o outro ri. Naquela que era a noite mais infeliz de alguém, do outro lado da Baía, eu estava descobrindo que era sim possível ser feliz. Eu era realmente tão filho da puta assim pra conseguir esboçar felicidade ante toda essa situação?
-
Nos dias que se seguiram, concordamos que não estávamos namorando, estávamos apenas tentando algo, ainda sem nome e sem definição. E o que quer que fosse esse algo, ele coexistia com a criação de um novo indivíduo: o Ben pai. Esse modelo, ainda estranho aos meus olhos de Benjamin, estava montando um enxoval e entrando em contato com os melhores obstetras para que Carol recebesse o melhor atendimento da cidade.
Ele saiu do apartamento na Urca e se mudou para um apartamento menor, ainda na Urca. Ele estava presente nas consultas e costumava gravar e depois me mostrar os ultrassons. A relação com a Carol era puramente protocolar, depois de muito conversarem, ela decidiu que ele poderia participar da evolução da gestação - sendo ela a gestante, essa era uma escolha que lhe cabia, e desde cedo Ben e eu conversamos sobre isso.
Quanto a mim? Bem, eu tentei entrar em contato duas ou três vezes, mas ela rejeitou veementemente todos os contatos. Ela tinha razão e direito, já que no lugar dela eu optaria pelo mesmo. Não vale a pena ouvir um pedido de perdão quando já se sabe que será impossível perdoar, e acho que ela somente quis evitar todo o desgaste de uma conversa profunda.
Não vou me colocar no lugar de vítima e dizer que foi difícil lidar com essa situação. Lidar com isso era também lidar com as escolhas que eu fiz para mim, e que envolviam completamente o Ben. O distanciamento do grupo de amigos foi inevitável. Não houve briga e tampouco um julgamento moral. O que houve foi uma conversa madura sobre a forma como as coisas foram conduzidas desde o começo. Ainda éramos amigos, e aquilo tudo era quase um experimento social sobre como todos estávamos lidando com todas as transformações daquelas semanas.
Quanto ao meu relacionamento com o Ben, ele igualmente estava em fase de adaptação. Ser bom, não significa que não era estranho em alguma medida, porque, afinal de contas, eu jamais imaginei viver algo com ele sob aquelas condições, mas ainda assim, aquela versão Benjamin pai era extremamente atraente para mim. Não a parte do cuidado que ele tinha com a Carol, mas sobre como ele estava equilibrando pratinhos para que tudo e todos ficassem bem. Aquilo só me deixava mais apaixonado… e excitado.
-
6 meses antes de tudo aquilo acontecer, eu havia me inscrito em um programa de intercâmbio, num primeiro momento visando estudar em algum país de língua inglesa, que eu desloquei para a Espanha, por sentir a necessidade de aperfeiçoar minhas habilidades com a língua e a cultura hispânica. Diria que me inscrevi no ponto máximo da tristeza, sem pretensão alguma de que as coisas dessem certo, e, seis meses depois, recebi a carta final: eu havia sido selecionado para estudar durante 3 meses, em Madri, dali a pouco mais de 2 meses.
Àquela altura do campeonato, quando a notícia chegou, Carol já havia encerrado o primeiro trimestre da gestação, e o Ben estava no auge da sua skin pai, que já havia se tornado parte intrínseca da sua personalidade.
Eu estava dirigindo, saindo do Centro, depois de mais uma manhã exaustiva de trabalho, me preparando para entrar no Aterro e seguir sentido Copacabana para assumir as turmas da tarde em outra unidade, já pensando em como contar ao Ben sobre Madri. Não que ele fosse ficar infeliz, mas eu só não sabia como contar a ele. E de repente, aquele dia precisava ser perfeito. Nada poderia dar errado, porque naquele dia, eu contaria para ele sobre a viagem.
Absolutamente nada poderia dar errado e sair do meu controle. Até que tudo deu errado. Eu estava exausto. O período de avaliações estava roubando as minhas noites de sono, eu precisava entregar os resultados em tempo hábil. E por um milésimo de segundo, eu fechei os meus olhos. Foi mais do que o suficiente para o carro avançar sobre o canteiro do aterro, atravessar a pista contrária e ser atingido em cheio por um ônibus.
Entre acordar e apagar. Ver pessoas e não ver nada, o sistema de viva-voz reproduziu uma mensagem do Ben, que havia acabado de chegar:
- É um menino, Jão. Um menino! Esse é o dia mais feliz da minha vida.
“E na vida a gente tem que entender que um nasce pra sofrer, enquanto o outro ri, mas quem sofre sempre tem que procurar, pelo menos vir achar, razão para viver. Ver na vida algum motivo pra sonhar, ter um mundo todo azul. Azul da cor do mar.”