_É verdade que você teve um ursinho de pelúcia de estimação até os oito anos de idade?_ perguntou Rafael.
_O que? Como você sabe disso?
Ele sorriu safado pra mim.
_Você e minha irmã continuam trocando mensagens? Já não pedi pra parar?
_Por quê? Eu estou me dando super bem com minha cunhadinha. Adoro ela!
_Aff!
_Pare de reclamar! Você devia estar contente por ela ter aceitado tudo tão bem._ falou Alice.
Era noite do sábado posterior ao flagra de Laura, e a turma de faculdade estava reunida no aniversário de um amigo. Tivemos o cuidado de ficarmos num canto um pouco mais afastado de todos para podermos conversar em paz. Mais cedo, num almoço, eu já tinha contado tudo a Alice.
_Isso não quer dizer nada._ falei _Nunca me preocupei muito com ela, pois sabia que a reação dela seria algo parecido como o que foi.
_Tá, mas você podia me deixar aproveitar um pouquinho._ falou Rafael _Você não dá muito brecha pra eu entrar um pouquinho que seja no seu mundo. Essa é minha oportunidade. Não seja tão ranzinza.
Eu e Alice trocamos um olhar rápido nos lembrando da conversa que tivemos há algumas semanas atrás:
“_Rafael tem seus defeitos, mas é um garoto de ouro. Bonito, educado, simpático, inteligente, o genro que toda mãe quer, o sonho dourados de muitos meninos e meninas, e você está deixando isso escaparEstou apenas te expondo os fatos. Rafael vai, sim, sempre querer mais de você, e você não se dispõe a dar o que ele quer. Quanto tempo você acha que vai durar o namoro de vocês assim? Isso cansa, viu? Ele não vai ceder pra sempre com você, uma hora vai jogar tudo pra cima.”
Eu tinha que ceder um pouco para Rafael. Num relacionamento, um pouco de flexibilidade é essencial para as duas partes. Por mais que eu não estivesse disposto a ir tão longe quanto Rafa queria, eu tinha que deixar que ele participasse ao menos um pouquinho da minha vida.
_Ok, Rafa, você pode continuar trocando mensagens indiscretas sobre a minha infância com minha irmã. Só não alimente demais o monstro, não estou certo se ela entendeu mesmo que não sou o tipo que vai acompanhá-la ao shopping e dar dicas de moda.
_Até mesmo porque,_ falou Alice _seu senso de moda é terrível.
_Vai à merda!
Rafael ria satisfeito com sua pequena vitória. Era nessas horas que eu via como nosso namoro estava fadado ao insucesso. Ele só conseguiu aquela vitória devido ao acaso de minha irmã chegar em casa antes da hora. Não ia acontecer de novo, eu não pretendia deixar ele chegar perto assim de mais ninguém da minha família. Era o máximo que ele conseguiria.
_E como vai seu namoro com Pedro, Alice?_ perguntou Rafael.
_Vocês se merecem!_ respondeu com mau humor enquanto nós dois ríamos.
_Já sabe quando ele vai te dar as alianças?
_Vocês dois estão um saco, hoje.
Alice não conseguiu dizer a verdade a Pedro, que tinha transado com ele só porque estava bêbada. A verdade maior é que ela não estava tão bêbada assim e quis dormir com ele, mas ela nunca admitiria. Eu sou capaz de apostar que ela já gostava dele, se não no sentido romântico, ao menos no sentido sexual. Ora, ele era um cara muito bonito e parecia ter pegada, o que acabava mexendo com os hormônios das meninas. Só que ela tinha medo de se deixar levar. Eu acredito realmente que ela não estava apaixonada por ele, mas tinha medo de deixar que isso acontecesse. Eles eram figuras opostas? Sim, mas se encaixavam de uma maneira harmônica quando os colocavam lado a lado. Eu acho que é por isso que desde o começo eu torci por esse relacionamento, porque com a proximidade dos dois, eu conseguia ver a perfeição desse encaixe.
_Falando no diabo..._ ela falou virando os olhos.
Pedro tinha acabado de chegar na festa e vinha em nossa direção carregando um sorriso que parecia querer iluminar todo o lugar. Ele estava muito apaixonado. E ele achava que Alice estava caindo na dele. Não, não estava, ela só não teve coragem de lhe dizer a verdade sobre a transa e agora ele estava interpretando tudo errado. E bota errado nisso: antes mesmo de dizer oi, ela já chegou puxando Alice pela cintura e lhe roubando um beijo. Ela foi pega de surpresa e não conseguiu raciocinar o bastante nem mesmo para fechar os olhos. Eu e Rafa tentamos segurar o riso quando a turma toda gritou em sinal de aprovação e surpresa.
_Oi._ ele falou ao soltá-la.
_Err... Oi._ ela respondeu visivelmente envergonhada.
_Oi, Pedro._ falamos eu e Rafael juntos.
Só então Pedro pareceu ter nos visto, fazendo cara de surpresa.
_Ah, oi, gente. Nem vi vocês aí.
_A gente viu que você está muito ocupado com a boca da Alice.
Ele riu feliz do meu comentário. Alice estava claramente incomodada, o que piorou quando Pedro a abraçou por trás e ficou lá, como um casal de namorados. Não tinha um milímetro do seu corpo correspondendo ao carinho de Pedro, mas ele parecia nem notar.
_Então, vocês parecem muito bem._ falei.
Pedro riu feliz e Alice me lançou um olhar mortal. Era uma situação bastante divertida do meu ponto de vista.
_Sim, e você é o padrinho, viu?_ ele respondeu.
_Sim, o Bernardo é a quem mais devemos agradecer._ falou Alice entre dentes.
_E vocês,_ perguntou Pedro mais pra mim do que para Rafael _o que contam de novo?
_O Rafael conheceu a irmã do Bernardo._ respondeu Alice.
Era lógico que ela só estava esperando a primeira oportunidade para retribuir. E ela, na condição de melhor amiga, sabia muito bem como me atingir: me colocar na corda bamba, me equilibrando entre mentiras.
_Sério?
_Sim..._ respondi sem saber como me livrar daquilo.
_Eu fui buscar um CD meu que tinha emprestado pro Bernardo e ela estava lá._ emendou Rafael em meu socorro _Super gente boa, batemos um papo legal.
_Olha lá, hein, Bernardo. Rafael quer pegar sua irmãzinha, viu?
_Não, ele não faria isso._ respondi rindo sem graça.
Alice sorria da situação extremamente constrangedora que tinha me colocado. Olhei para ela com raiva. Ela era minha melhor amiga, devia saber o quanto aquilo me fazia mal. Nem se comparava a brincadeira de dar corda para Pedro, o que foi uma situação na qual ela mesma se meteu. Foi a primeira vez em que eu realmente fiquei com raiva de Alice.
_Nunca conheci ninguém da sua família, só seus pais de vista na sua festa de aniversário._ falou Pedro _Poxa, você gosta mais do Rafael do que de mim? Vive grudado nele!
Ele falou em tom de brincadeira, mas toda brincadeira tinha um fundo de verdade. Se eu pudesse resumir Pedro num adjetivo, seria “carente”. Ele vivia sufocando Alice por ser carente demais, o que o fazia dele um cara meio meloso em relação a romance. Aquela sua aparente brutalidade de brincar, e até mesmo sua homofobia, não eram mais do que efeitos dessa sua repressão de sentimentos. Afinal, ele não podia manifestar sua carência de um modo muito explícito, ser muito romântico ou dar um abraço pra valer num amigo. Isso seria muito “gay”. E é aí que eu entrava. Ele me tinha como melhor amigo, mas ele não sabia como manifestar isso muito bem. Ele não podia me chamar para jogar futebol ou tomar uma cerveja com ele, pois sabia que eu não curtia nenhuma dessas coisas. Até que Rafael apareceu. É bom frisar aqui que Rafael e Pedro nunca foram amigos. Rafael achava Pedro um homofóbico idiota e Pedro tinha ciúmes de Rafael. Sim, ciúmes de mim. Apresentar Rafael como meu namorado a Pedro estava fora de questão, então aos seus olhos éramos melhores amigos. Só que éramos um grupo do qual ele não fazia parte, um grupo que tinha programas juntos (aos quais ele nem sempre era convidado) e tinha muito mais afinidade do que entre ele e eu.
_Sim, ele definitivamente gosta mais de mim do que de você._ respondeu Rafael devolvendo a indireta.
Alice, lógico, riu do inferno que tinha criado, o que só fez aumentar minha raiva.
_O que gostaria muito mesmo era de uma bebida, então, com licença, moças._ falei saindo de perto deles antes que piorasse.
Não demorou muito para Alice vir atrás de mim. Fiz questão de ir para um local mais isolado, onde as pessoas não poderiam nos ouvir.
O que diabos foi aquilo?_ falei ainda com raiva.
_O que?
_Você me jogando pros lobos. Aquilo é assunto para falar pro Pedro?
_E está super ok me jogar pra cima dele, né?
_Olha a diferença entre a dimensão das duas coisas!
_Só porque você quer!_ falou começando a elevar o tom também.
_Você que cavou esse buraco! Não venha colocar a culpa em mim! Você não estava tão bêbada assim, tanto é que você pode me ligar do banheiro normalmente depois. Você QUIS dar pro Pedro! Ninguém te obrigou!
Estávamos tentando ao máximo não gritar, o que era difícil com os ânimos exaltados.
_Isso depois de meses com você me empurrando pra ele!
_Eu parei! Depois que você me pediu, eu nunca mais movi um dedo pra ajudar ele nesse sentido.
_Ah, Bernardo!
_A culpa é sua que não teve a coragem de ser honesta com ele.
_Quem é você pra falar de honestidade comigo? Rafael sabe que você virou amiguinho do Eric, por acaso?!
Ela sabia que eu ainda não tinha contado aquilo para Rafael. E eu não tinha virado amigo de Eric, tínhamos apenas feito as pazes. Conversamos de vez em quando por MSN e por telefone, mas era só isso. Na faculdade mantínhamos o mínimo de civilidade que a vida em sociedade exige, e só isso já era o bastante para fazer Rafael fechar a cara. Eu não sabia como explicar para ele como Eric precisava de mim. Independente de estar apaixonado ou não por mim, eu tinha uma responsabilidade com ele por ser a única pessoa que podia estar por perto dele. Eric era um garoto muito frágil, e eu tinha medo do que poderia acontecer se eu lhe virasse as costas.
_O que tem isso a ver?!
_Tudo! Você me acusa de não ser sincero com Pedro, mas você tampouco é sincero com Rafael. Você esconde dele uma informação muito importante e esconde porque sabe que ele não vai gostar nem um pouco.
_Sim! E você sabe muito bem o por quê de eu estar fazendo isso. Eu estou protegendo Eric e Rafael.
Ela riu com raiva.
_Essa é a mentira que você conta para você mesmo todo dia? Isso é simplesmente covardia de arcar com o peso de seus atos.
_Então, você é tão covarde quanto eu ao não dizer a verdade a Pedro.
_Ninguém ganha de você em covardia, Bernardo! Você é o rei dos covardes. Você tem medo das pessoas não gostarem de você, então constrói todo um personagem para agradar essas pessoas. Você criou o Bernardo perfeitinho, aquele que não grita, não bebe, não fuma, só anda dentro da lei, tira as melhores notas, se veste da forma mais comum possível...
Ela falava como se estivesse guardado aquilo por muito tempo e enfim explodisse.
_Não me entenda mal,_ continuou _você é uma pessoa incrível, fascinante. Mas você insiste em se esconder atrás desse personagem sem graça que você criou. E tudo isso por covardia, por medo do que as pessoas vão achar se te conhecerem de verdade. Você não percebe? Sua vida está passando! Você está envelhecendo e não está vivendo! Você está preso na sua própria prisão e está condenado a morrer aí dentro. Você é simplesmente covarde demais pra se libertar, covarde demais para mandar o mundo se fuder, covarde demais pra viver a vida como se deve. Você me dá pena, Bernardo.
Eu ouvi tudo com os olhos vidrados nela. Eu não derramei uma lágrima, ou mesmo movi um músculo. Ouvi tudo aquilo impassível. E era tudo verdade. Nada do que ela disse era propriamente uma novidade para mim, eu mesmo me vivia dizendo aquilo tudo com frequência. Mas era diferente de ouvir na voz de outra pessoa. Principalmente a última parte, a do “você me dá pena”.
_Tudo bem por aqui?_ perguntou Pedro.
Ele chegou receoso já sentindo o clima tenso que pairava ali. Alice, ainda carregando sua metralhadora de verdade, a apontou para ele:
_Não, não está nada bem. Você é um idiota. As coisas que você fala retorcem meu estômago e me dão vontade te dar um murro. E é por isso que não vai rolar nada entre a gente. Eu não sou sua namorada e nem vou ser. Transei com você por estar bêbada demais pra julgar corretamente meus atos. Tentei te mandar todos os sinais e indiretas possíveis, mas você é idiota demais até para entender isso, e então estou te falando claramente: eu não quero nada com você, nem mesmo amizade.
E saiu. Pedro estava com os olhos vidrados como os meus, com a diferença e os deles começavam a se encher de lágrimas. Como sempre fiz, sufoquei minhas dores e fui cuidar da dos outros. Abracei meu amigo pelos ombros com vontade e ele se deixou levar, encostando a cabeça no meu ombro e deixando as lágrimas caírem. Era o que um melhor amigo deveria fazer.
Para que serviam os amigos afinal?