Era sábado à tarde. O primeiro sábado de julho. O último dia em Paris. Eu me lembro como se tivesse sido ontem. Era verão, mas fazia um calor temperado, de modo que nos aquecia sem nos incomodar. Ventava pouco, uma brisa morna que parecia aquecer até mesmo nossos corações. As árvores estavam cheias de folhas. As ruas estavam cheio de turistas. Milhares deles tomavam as ruas da cidade-luz aproveitando a cidade mais romântica do mundo. Eu os observava triste pela janela do ônibus que nos levaria até o aeroporto.
Era uma sensação tão estranha. Era como acordar do melhor dos sonhos e voltar à realidade. Tudo se desfazia em frente dos meus olhos. Sim, eu viria a visitar Paris novamente, mas não era a mesma coisa. Paris é um símbolo. E o que aquela cidade simbolizava para mim? Os anos mais felizes da minha vida. Foi tudo uma felicidade pura e quase infantil. Uma felicidade impossível de ser repetida em condições normais de rotina. Paris é o símbolo da minha mais doce fantasia.
Eu deixava naquela cidade que me acolheu por um ano, sorrisos, abraços, beijos, caminhadas de mãos dadas... Eu deixava lá uma alegria que eu não sabia que possuía, uma leveza quase absurda. Ah, aquela sensação de inatingibilidade... Eu deixava em Paris, principalmente, lembranças de um tempo que, de repente, não me pertence mais.
Mas o que é mais importante: o que Paris deixou em mim? Paris me deu a paz e a felicidade que eu tanto almejava, mesmo que por um breve momento. Mas muito mais do que isso, o que ficava o desenvolvimento das ferramentas para que eu pudesse continuar vivendo. Ou seja, Paris me fez descobrir o Bernardo de verdade.
Pode soar cansativo para vocês essa história de “Bernardo de verdade”, mas é de extrema importância para o meu amadurecimento e minha história de vida. Eu sempre me mantive dentro da prisão que eu criei para mim mesmo, uma prisão construída com meus maiores medos. E, de repente, eu me vi livre daquela prisão. Eu pus minha prisão abaixo. Isso é uma coisa enorme para mim! Se eu tivesse conseguido fazer isso antes, eu conseguiria fazer Rafael feliz ou impediria o pai do Tom de fazer o que fez comigo. Eu teria conseguido ser o amigo que Eric tanto precisou. Mas, infelizmente, eu não posso voltar no tempo. Eu não posso voltar atrás nos meus erros, mas eu posso me cuidar para que eles não voltem a se repetir.
Por um momento, eu cheguei a temer um retrocesso, que eu voltasse a ser aquela pessoa fraca que eu era antes. Hoje eu sei que isso não aconteceu, mas mesmo naquele momento no ônibus indo embora, eu já sabia que isso não aconteceria. Eu estava voltando para casa e para os meus problemas, mas não estava assustado. Se eu não estava ansioso para enfrentá-los, pelo menos eu não estava tentado a correr deles. Isso é um avanço imenso em comparação à pessoa que sempre fui.
Enfim, era grande a dor da partida, mas era necessária. Paris foi uma pausa, o tempo parou para que eu vivesse aquilo, pois eu precisava vivenciar e aprender tudo aquilo. Mas acabou. Era chegada a hora de continuar. A vida recomeça agora.
[...]
_Bernardo. Bernardo. Bernardo. Bernardo!
_Hã?
Falei acordando no meu pequeno devaneio. Ricardo me olhava curioso.
_Você está bem?_ ele perguntou.
_Eu? Ah, sim. Por que?
_Você parecia todo distraído aí.
_Estava pensando na vida.
_Ah...
Ele fez uma cara de que estava juntando as peças, mas logo tratei de mudar de assunto.
_Vamos lá pegar as malas, que são muitas!
Eu ainda não tinha terminado com Ricardo. Eu não sabia como fazer isso. Eu me sentia um monstro. Eu lhe dei esperanças que talvez pudéssemos ficar juntos para depois dizer que mudei de ideia. Que tipo de pessoa faz isso? Era cruel.
Quando vi ele acordar mais cedo naquele dia, um a cara toda amassada, um sorriso bobo nos lábios e um pedido de carinho, não tive como dizer a ele. Eu sei que fui covarde, mas não consegui. Então, decidi só contar quando chegássemos ao Brasil. Afinal, não seria legal terminar o namoro e passar as próximas doze horas num voo com seu ex, por melhor que ele fosse.
E lá fomos nós: fizemos o check-in, despachamos a bagagem e entramos na longa fila para a sala de embarque. Lá dentro, paramos para lanchar. Ricardo, não é burro, ele logo percebeu que alguma coisa estava acontecendo.
_Não vai mesmo me dizer o que é?_ perguntou.
_Não é nada, Ricardo. É coisa minha. Sei lá, eu tô indo embora, tem muita coisa me esperando no Brasil.
_Não fica preocupado com isso._ ele respondeu sorrindo e acariciando a minha mão _Vai dar tudo certo, você não é mais a mesma pessoa que era. E, além do mais, agora você me tem ao lado!
Eu ri da sua resposta, mas logo desviei o olhar para que ele não me traísse. Eu queria que tudo fosse perfeito até o fim. E foi. Foi um voo tranquilo, sem turbulências, sem solavancos. Dormi encostado no seu ombro enquanto ele assistia a um filme qualquer. Quando me dei conta, já estávamos pousando em Guarulhos.
Era uma sensação diferente ao voltar para casa. Assim que cheguei ao desembarque, eu estranhei o idioma. Um ano me acostumando ao francês, e o português dos agentes do aeroporto me soou estranho, quase estrangeiro. Mas faltava alguma coisa. Não me entendam mal, eu amo meu país, mas não é por simplesmente pisar em solo nacional que eu me senti em casa. Minha casa é onde está a minha família, e eles estavam em Belo Horizonte. Por isso, a sensação de volta à realidade não foi tão forte ali em São Paulo. Faltava mais um trecho para eu realmente chegar. Era ali que eu me separava de Ricardo.
Eu não sei em que momento Ricardo percebeu o que eu tinha pra lhe dizer. Eu também não sei em que momento eu percebi que Ricardo sabia. Não houve planos de reencontro, de como manteríamos o namoro a distância, de como eu agiria com Rafael, nem nada disso. Ele sabia qual a minha decisão. Caminhávamos juntos pelo o aeroporto em silêncio sabendo que aquele era o fim, mas nenhum de nós tinha coragem de ser o primeiro a falar. Por fim, chegamos a derradeira porta que separava os recém-chegados viajantes de seus entes queridos.
Por mais que eu já tivesse tomado a minha decisão e de modo bastante consciente, só ali caiu a minha ficha. Eu não veria mais Ricardo todo dia. De agora em diante estaríamos separados por seiscentos quilômetros de distância. E, mais uma vez, as lágrimas tomaram conta dos meus olhos e eu não pude controlá-las. A única reação que Ricardo teve foi me abraçar.
_Me desculpa._ falei com a voz abafada em seu pescoço.
_Eu sei... Não precisa falar nada.
Devemos ter passado um longo tempo ali, relutando para dizer adeus. Quando ele se afastou, vi que ele chorava como eu, mas mantinha seu sorriso.
_Isso não é o fim._ ele falou _Eu vou estar sempre aqui. Eu não posso esperar por você para sempre. Seria estúpido e injusto. Mas eu vou sempre estar aqui como seu melhor amigo, não se esqueça disso.
_Eu... Eu...
_E trate de dizer a Rafael que se ele não cuidar bem de você, eu te sequestro e trago pra viver comigo em São Paulo.
Eu ri do seu bom humor.
_Então, sem mais lágrimas._ ele falou _Eu vou te telefonar amanhã pra você ter certeza que eu não fui a lugar nenhum, que eu ainda estou com você. Vou te visitar assim que eu puder e você vai me visitar assim que puder. Esse não é o nosso fim, entendeu?
Balancei a cabeça afirmativamente. Ele tirou um papel dobrado do bolso e colocou no meu bolso.
_É uma carta, mas não leia agora. Deixa para ler depois no avião, ok?
_Ok...
_Até logo, Bernardo.
_Até logo, Ricardo.
Ele me deu um último e carinho selinho e caminhou para fora daquela sala. Seus pais começaram a pular quando viram. Eu ri, mas decidi não fazê-los me ver também. Me virei de volta ao meu caminho e me deparei com algumas pessoas me olhando de modo estranho. Por um segundo eu me perguntei porquê, mas logo me lembrei do beijo. Não estávamos mais na França, eu não podia mais beijar outro sem encarar olhares recriminadores. Em outro momento, com um outro Bernardo, eu teria corrido envergonhado para longe dali, mas não agora. Ergui minha cabeça e puxei minha bagagem até o balcão de conexão. Definitivamente, o Bernardo que partiu não era o mesmo que estava de volta.
[...]
“Bernardo, meu amor.
Estou escrevendo essa carta enquanto te olho dormir. Tão sereno, tão calmo... Ainda não me acostumei com a ideia de não vou mais te ver dormir. Ainda não me acostumei que não serei o primeiro rosto que você vê ao acordar, que este lugar agora é de outra pessoa.
Não te digo que não estou magoado. Estou. Muito. Você escolheu ele. Eu fui o melhor namorado, eu deveria ganhar o jogo! Mas não é um jogo, é? Nunca foi uma corrida pelo teu coração, nunca foi sobre quem teria mais fôlego ou mais força. Nunca foi sobre quem te amava mais. A questão toda foi sobre quem você amava mais. É muito duro admitir isso. Escrever então...
Mas essa não é esse tipo de carta, uma carta amargurada, rancorosa e encharcada de lágrimas. É uma carta que eu quero que você guarde num cantinho do seu armário junto com nossa aliança. Uma carta de saudade. Por mais estranho que possa ser dizer isso, essa é uma carta pra te fazer chorar de saudade quando ler. Mas não saudade de mim, e sim saudade de tudo o que vivemos. Eu vou sempre estar a um telefonema de distância. Sempre.
Essa carta é para lembrar do que fomos durante esse ano. Lembra de nós dois em Montmartre? Dois idiotas rodando abraçados pelas ruas ao som de um violino? Lembra de nós andando de mãos dadas pela madrugada? Lembra que costumávamos passar a tarde toda deitados no colo um do outro nos Jardins de Luxemburgo? Lembra que um corria para a cama do outro no meio da noite para driblar o frio? Lembra que nós descobrimos a cidade juntos? Lembra que éramos capazes de passar um domingo inteiro deitados compartilhando sonhos e memórias? Você se lembra do quanto fomos felizes, Bernardo?
Nós não estamos mais juntos, eu sei. Mas eu vou saber seguir em frente. Você vai estar com Rafael, ou não, não importa. O que eu quero te pedir é que se lembre de mim, Bernardo. Deixe sempre um cantinho reservado para mim em seu coração. O meu maior medo é que você me esqueça um dia... Não faça isso. Com quem você estiver, se lembre de mim. Lembre de mim quando alguém falar de Paris é a cidade dos amantes, afinal, Paris sempre será a nossa cidade. Lembre de mim quando alguém tentar te enganar dizendo que contos de fada não existem. Lembre de mim ao ver um casal apaixonado deitado um no colo do outro numa praça.
E principalmente, lembre de mim nos seus momentos mais escuros. Lembre que você foi feliz e que é possível ser feliz de novo, que é só uma questão de tempo. Lembre que você se descobriu outra pessoa e você amou essa pessoa.
Quando você estiver triste e prestes a desesperar, eu quero que você vá para o seu quarto, se tranque e, muito lentamente, comece a rodar dançando e cantando La vie en rose. É a nossa música, sempre será.
E o mais importante de tudo: lembre-se que eu te amo. E sempre vamos nos amar, afinal, nosso cadeado ainda está preso naquela ponte.
Um beijo, Bernardo. Que você seja feliz com quem quer que você esteja e onde quer que você esteja.
Ricardo.”
Quando eu terminei de ler aquela carta, eu estava novamente morrendo em lágrimas. A aeromoça veio mais de uma vez perguntar se eu estava bem. Eu não estava bem. Meu avião pousou em Belo Horizonte, oras! Eu estava em casa. Seria maravilhoso rever minha família e meus amigos, mas e Ricardo? E Paris? E a felicidade? O que vem agora? E como é tão normal acontecer, eu me vi corroído pela dúvida se teria tomado a decisão certa. Era ali que eu devia estar? Era sozinho que eu devia estar naquele momento? Aprendi a ser forte, mas Ricardo sempre esteve lá pra quando eu não pude ser. E agora, como seria? Questões que só as próximas semanas poderiam me responder.
Lutando para me recompor, pois não queria ser visto do jeito que estava depois de ler aquela carta, saí da sala de desembarque com a cabeça baixa. Antes que eu pudesse racionar ou descobrir a origem daquele grito, minha mãe já estava agarrada ao meu pescoço. Eu sorri. Independente de qualquer defeito que ele pudesse ter, ela é a minha mãe e sempre me deu todo o amor que poderia dar. Então, era sim reconfortante poder abraçá-la depois de um ano sem vê-la. Não vejam ela como a vilã da história, ela nunca foi.
Quando ela enfim me soltou e me encheu de perguntas, eu não consegui respondê-las. Talvez tenha sido o idioma com o qual eu tinha perdido o hábito, talvez fosse o choro que eu ainda trazia entalado na garganta, talvez fosse só minha cabeça trabalhando a mil, mas eu acho que foi ele. Sim, meu pai, meus irmãos, Alice e Pedro também estavam lá me esperando, mas todos foram ofuscados. Um ano sem ver Rafael... E como ele estava diferente! Ele estava mais forte, usando um corte mais rente, barba rala. E aquele sorriso, meu Deus! Eu sentia que poderia iluminar o aeroporto inteiro com aquele sorriso. Ele me olhava de um jeito tão amoroso. Então, eu tive certeza da minha decisão. Eu amei e amo Ricardo, mas nunca houve como competir com Rafael. Se havia alguma dúvida, ela foi sanada com meu coração querendo pular do peito e aquela vontade insana de beijá-lo ali mesmo, na frente de todos. Mas seu sorriso se perdeu e seu olhar ganhou um tom de confusão. Foi muito rápido, mas eu descobri o motivo ao seguir seu olhar com cuidado. Rafael encarava a brilhante aliança dourada que eu ainda usava no dedo.
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