Voltar para casa era estranho. Ok, ainda era meu lar, mas alguma coisa tinha quebrado. Se antes eu saberia dizer onde cada um dos membros daquela casa estariam quando eu abrisse a porta ou mesmo que assuntos eles estariam discutindo uns com os outros, naquele momento era tudo um mistério. Tudo era um mistério.
Respirei fundo e abri a porta da minha casa no início da tarde daquela segunda-feira. Tudo parecia tão normal, apesar de eu sentir um clima estranho. Talvez fosse só impressão minha. A empregada me cumprimentou normalmente, não devia saber de nada do que tinha acontecido. O resto da casa estava em silêncio. Fui para o meu quarto sem escalas. Àquela hora da tarde, apenas Caio e Laura deveriam estar em casa. Se me ouviram chegar, nenhum deles veio até mim. Não, não acho que estivessem magoados de alguma forma comigo, apenas sem jeito depois do meu desabafo na noite anterior.
Com o dia chegando em fim, os membros da família que trabalhavam e passavam o dia fora foram chegando. O primeiro foi Tiago. Esse não titubeou: assim que percebeu que eu estava em casa, veio falar comigo.
_Tudo bem com você?_ perguntou com um certo cuidado na voz.
_Sim, tranquilo.
Eu tentava passar a impressão de tranquilidade, mas eu não estava tranquilo. Ok, de todos, Tiago era o último de quem eu esperava algum tipo de reação mais explosiva. Mas enfim, tinha muita tensão acumulada sobre as minhas costas.
_Você tem alguma coisa com o Pedro...?_ ele perguntou claramente sem jeito.
Eu ri e ele riu envergonhado. Ele fez a associação por saber que eu tinha dormido na casa do Pedro na noite anterior.
_Não, ele é hétero. E namora a Alice.
_Ah, porque você foi dormir lá e tal...
_Bom, os pais da Alice achariam bem estranho um cara passando a noite com ela na casa dela, sendo que ela namora outro. E eu não tenho muita intimidade com mais ninguém pra pedir pra passar a noite. Tem o Rafael, mas ela namora.
_Mas o Pedro também namora, uai.
_Mas o Rafael é meu ex-namorado, então...
Tiago voltou a ficar sem jeito. Ele me aceitava bem, mas ele não tinha se acostumado a me imaginar na cama ou num relacionamento com outro cara. Esse tipo de pré-conceito não cai de um dia para o outro.
_Vocês namoraram mesmo? Pra valer?
Eu não sei se ele estava mesmo interessado em saber ou apenas tentando participar mais da minha vida, mas resolvi lhe dar um voto de confiança e responder.
_É complicado falar de “namorar pra valer”. Tinha amor, fidelidade, compromisso, sexo, etc. Mas nunca teve aliança, ou idas ao cinema, ou apresentar aos pais. Eu nunca deixei ele fazer essas coisas.
_E como funcionava, então?
_Bem, não funcionou..._ completei triste.
Tiago coçou a cabeça confuso.
_Ele terminou com você por você não querer andar de mãos dadas com ele?
_Mais ou menos. É mais complicado que isso.
Era o máximo de resposta que eu pretendia dar, mas Tiago continuou me olhando esperando por mais. Dei um longo suspiro e completei:
_Rafael não quer simplesmente um namorado, ele quer um grande amor. Ele quer aquela coisa de sofrer, de morrer de amor, de viver de amor, de pegar na sua mão e dizer que juntos vamos enfrentar o mundo, etc. Eu não pude dar isso a ele, por isso ele terminou comigo. Para falar a verdade, eu não sei se posso dar isso a ele hoje ainda.
_Você fala como se vocês fossem voltar a ficar juntos.
_Pode ser. Torço para que sim.
_Você ainda gosta dele?
_Eu amo ele.
Tiago voltou a coçar a cabeça. Ele ficava claramente incomodado quando eu falava de amor com outro cara. Mas ele não me pediu para parar, ele queria realmente me ouvir e se acostumar com aquilo. A sua reação, se incomodar em saber que eu tenho uma vida sexual/amorosa com outro cara, seria uma constante para toda a minha família.
_Amor amor?
_Amor amor.
_Como nas novelas?_ perguntou zombeteiro tentando descontrair o clima.
_Não, um tipo real de amor. Aquele que tortura, que dói, que arde, que te tira do chão, que te faz fazer coisas que você jurava que nunca faria. O tipo de amor que te tira todas as certezas. Daquele tipo que quando acontece, você entende que nasceu para aquilo, que sua missão nesse mundo é amar aquele cara e só. O tipo de amor que faz você ter certeza que o outro é seu fim, não importa o caminho.
_Nossa..._ respondeu envergonhado.
É daquela maneira que eu me sentia com Rafael. Era difícil traduzir meu amor por ele em palavras, mas o que eu sentia era mais ou menos aquilo.
_Eu espero encontrar esse tipo de amor um dia..._ ele falou novamente em tom de brincadeira.
_Sinceramente, evite._ respondi.
_Por que?
_Amor não é fácil. Às vezes nem é bom. É um prazer quase sádico._ falei enquanto ele me encarava confuso _Amo Rafael, mas amo porque não tive escolhas. Se tivesse tido, não escolheria ele. Seria Ricardo, o cara que eu namorei em Paris. Com ele era tão mais fácil, tão mais prazeroso. Ou melhor ainda, seria uma menina. Isso evitaria tanta coisa...
Ele me olhou atento e abriu um sorriso discreto.
_Nem parece que você é o mais novo aqui. Você diz coisas tão complexas, como se já tivesse vivido muito mais do que eu.
_Talvez eu tenha. Uma vida não se mede em anos, mas em intensidade._ falei filosofando fazendo nós dois rirmos _Mas eu trocaria toda essa complexidade pela simplicidade. Creio que a felicidade esteja na simplicidade.
_Você não se considera feliz?
_Eu não sou feliz. Isso é uma coisa muito concreta pra mim, eu aceitei isso. Embora eu não aceite que esse seja meu estado natural. Eu já fui feliz e sei que é possível ser de novo. Eu tô tentando ser feliz, é por isso que eu preciso explodir, amar, falar das coisas que eu tenho guardado aqui dentro de mim.
Tiago voltou a sorrir e desviar o olhar. São coisas que eu penso constantemente, que vão e vêm na minha cabeça.
_Desculpe, eu tive que vir perguntar essas coisas._ falou meu irmão _Quando você falou aquelas coisas ontem à noite, de repente era como se não te conhecesse. Não como se você tivesse se transformado em outra pessoa de uma hora para outra, mas como se não soubesse das coisas que acontece com você, das coisas que você pensa, das coisas pelas quais você passa. E eu fico pensando se nós tivéssemos tido essa conversa antes, de algum jeito eu poderia ter evitado que você... Que você... Sei lá, você sabe...
Ele falava da minha tentativa de suicídio. Tal como aconteceu com Alice, Pedro e Rafael, aquela era uma marca que meu irmão carregaria para sempre: o arrependimento de não ter feito nada. Naquela época, minha cabeça estava tão bagunçada que eu duvido muito que algum deles pudesse realmente ajudar e fazer diferença. Sem contar que, por pior que tenha sido, talvez fosse preciso que eu chegasse àquele ponto para “acordar”. Talvez, talvez...
_Bom, eu me chamo Bernardo, tenho vinte anos de idade e sou gay. Sou tímido e quieto, mas explosivo se me levam ao limite. Amo um cara chamado Rafael, mas também amo um que se chama Ricardo. Perdi a virgindade aos dezoito anos com um cara chamado Eric, que eu não cheguei a namorar, mas que foi muito importante na minha vida e me ensinou lições cruciais ao morrer no final do ano retrasado. Sou o melhor amigo da Alice e do Pedro, duas das pessoas que conhecem meu pior lado. Eu tenho um objetivo na vida: ser feliz. E estou na luta por chegar lá. Prazer._ completei lhe estendo a mão.
Meu irmão riu e apertou minha mão.
_Me chamo Tiago, tenho vinte e seis anos, e sou advogado. Sou bastante comunicativo e pareço ter um milhão de amigos, mas a verdade é que talvez não tenha nenhum. Perdi a virgindade com minha primeira namorada aos quinze anos. Já tive muitas paixões e nenhum grande amor. Às vezes me sinto perdido, me perguntando o que estou fazendo da vida, mas passa. Sigo vivendo e procurando por algo a mais. Se esse algo a mais for amor, que venha com todos os efeitos colaterais, eu não ligo. Prazer.
Eu ri da sua descrição. Do aperto de mão ele me puxou para um abraço. Aquele abraço significou muito para mim, sem dúvidas, mas significou mais para ele. Meu irmão vivia num desespero silencioso, um desespero de não saber para onde está indo, se está fazendo as coisas certas. Eu não podia mostrar a ele nenhum caminho, mas eu podia estar lá para servir de porto seguro. Não se enganem, dali em diante, Tiago nunca mais foi o irmão mais velho. Essa função era minha agora.
_Posso conversar com seu irmão?_ falou meu pai à porta.
Ele não estava pedindo, ele estava mandando Tiago sair do quarto. Nós dois nos soltamos sem jeito por sermos pegos daquele jeito. Meu irmão saiu do quarto e fechou a porta atrás dele. Meu pai coçou a cabeça e se sentou na minha cama. Meu corpo tremia, embora eu tentasse disfarçar.
_Nós temos que conversar._ ele falou.
_Eu sei...
Me sentei na cadeira do computador e fiquei esperando pela sua conversa.
_Viver não é fácil, Bernardo, não é simples. Todos nós temos nossa parcela de medo, de defeitos, de mágoas. Todos nós temos demônios só nossos. E você tem os seus, eu entendo e respeito. Mas isso não lhe dá o direito de se revoltar contra essa família.
_Eu sei, eu só...
_Eu não terminei._ ele falou e eu me calei _Sua personalidade é uma combinação de fatores genéticos e de elementos da criação que te demos, sem dúvida. Lógico que temos participação na criação da pessoa que você é hoje, independente da sua sexualidade. Mas é a sua personalidade, só sua. É ela que faz de você uma pessoa tão diferente dos outros. Então, pare de jogar todos os seus problemas na sua personalidade. É quem você é e pronto. Aprenda a conviver com seus defeitos.
O tom que ele falava, como uma bronca, mexia muito comigo. Eu comecei a chorar silenciosamente.
_E daí que você é prestativo, que está sempre disposto a ajudar alguém? Isso não é defeito. Isso nunca te prejudicou. Você arranjou um jeito de correlacionar isso com sua sexualidade, e talvez sejam mesmo coisas correlacionadas. Mas não é por assumir sua sexualidade que você deva abrir mão de suas características. Não faça a idiotice de negar a sua própria personalidade, porque isso só te trará sofrimento no futuro.
Ele fez uma longa pausa antes de continuAr.
Você falou bobagens como “não deixar marcas”, o que não poderia ser mais errado. Você deixa marcas. Marcas não são grandes gestos, são justamente os pequenos. Você deixou uma marca profunda em mim, na sua mãe, nos seus irmãos e em cada um que te conhece. Você é uma pessoa extraordinária! Você acha que nunca percebi o estranho brilho que você tem nos olhos, o brilho de uma mente extremamente inquieta? Você acha que nunca percebi o jeito como você sorri, como se soubesse muito mais do que está falando? Você acha que nunca vi grandeza em você?
Nessa hora eu chorava ao ponto de quase soluçar, absorvendo cada palavra do que ele dizia.
_Você está destinado a ser grande. Não sei se um grande engenheiro, um grande pensador, um grande artista... Talvez nada disso. Sua grandeza está na diferença que você faz na vida das pessoas que te cercam. Eu vejo sua grandeza no abraço que você acaba de dar no seu irmão._ ele fez um gesto com as mãos me obrigando a olhar nos seus olhos _E você está tentando abrir mão dessa sua grandeza. Não faça isso. Sua sexualidade pode ter algum papel na formação da sua personalidade, mas esqueça essa ideia errada de abrir mão de todos os seus defeitos, pois são exatamente eles que fazem de você a pessoa que você é. Estar sempre disposto a ajudar os outros, mesmo que isso signifique deixar seus próprios problemas de lado por um instante, é a chave da sua grandeza.
Ele fez mais uma pausa antes de finalizar.
_Um dia eu não vou estar mais aqui. Mesmo que eu ainda esteja vivo, num futuro não tão distante eu posso estar despido de toda essa força que vocês veem em mim. Nesse momento, Bernardo, você vai assumir meu lugar. Você vai ser o pilar dessa família._ ele se levantou _Isso é tudo o que eu espero de você. Eu nunca esperei perfeição de você, nenhum pai espera.
Ele deu costas para sair, mas antes eu falei.
_A mamãe espera._ eu falei lutando para manter a voz firme.
Ele deu um suspiro cansado e voltou a se virar, ainda de pé.
Não, ela não espera perfeição de você, ela espera “normalidade”._ falou fazendo o sinal de aspas com os dedos _Eu sei que é uma coisa que não se deve esperar de ninguém, mas ela espera de você. Possivelmente, ela sempre viu em você o que ela viu no irmão dela. E não há nada que lhe tire mais o sono do que pensar que o mundo vá fazer com você o mesmo que fizeram com ele.
Ele deu mais um suspiro e já na porta completou:
_Tenha paciência com sua mãe. Ela não virá de dar um abraço hoje, ou amanhã, ou mesmo semana que vem. Eu sinto muito por isso, mas você ainda vai ter que engolir muito coisa dela. Tenha paciência. Ela ainda é sua mãe e ela ainda te ama. Mas ela precisa de tempo para perceber que você já é forte o suficiente para enfrentar o mundo e sair vitorioso.
Foram palavras que me marcaram fundo, todas elas. O jeito como ele contra-atacou a minha explosão no dia anterior me desarmou. Clarice Lispector escreveu uma vez:
“Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.”
Não há frase que me descrevesse mais precisamente naquele momento. Eu tinha defeitos? Claro, muitos. Mas eu não precisava eliminá-los um a um. O que eu precisava era contorná-los, dobrá-los a meu favor. Fazer deles a minha força. As palavras do meu pai ficariam para sempre na minha memória, sempre me servindo de força nas horas mais sombrias.
Quanto à minha mãe, a profecia dele se concretizaria: ela ainda demoraria muito tempo para me entender e me aceitar. Por mais que ela sempre soubesse, ela sempre viveu em negação quanto à minha sexualidade. Era preciso lhe dar tempo para que ela assimilasse tudo. Era preciso lhe dar espaço para sonhar novos sonhos e novos futuros para mim.
Mas esse dia ainda demoraria a chegar. Naquela noite, como ela sempre fazia, ela bateu no quarto de cada um dos filhos quando chegou do trabalho para ao menos lhes perguntar como passaram o dia. Pela primeira vez na vida, ela não bateu no meu quarto.