Nessa mesma semana passei na sorveteria. A mãe do Caio estava lá.
- Oi, Marlon. Sorvete?
- Não, obrigado! E o Caio?
- Caio está em casa.
- Está?
- Aham.
- Passei por lá e não respondiam do interfone.
- Vocês brigaram de novo?
- Não. Acho que não. A senhora pode chamá-lo para cá?
- Chamar o Caio para vir aqui?
- Sim?
- Tá certo. - disse ela, estranhando o pedido.
Ela pegou o celular, discou os números e começou a falar.
- Caio? Está em casa?... Por que não atende o interfone? ... Tocaram sim, o Marlon tocou. Ele está aqui, está pedindo para você vir para cá. Hã? - ela tirou o telefone um pouco da boca e disse - ele disse que está ocupado.
- Eu posso falar com ele?
- Caio, fale aqui com o Marlon - me passou o celular.
- Caio? - desligou.
- Que foi? Caiu?
- É, acho que sim. Bom, mas ao menos eu sei que ele está em casa. Vou passar lá. - disfarcei.
- Tem alguma coisa que vocês dois estão me escondendo! - disse ela.
- Não, não tem.
- Não é uma pergunta, é uma afirmação.
Se a mãe dele não desconfiava de nada, agora ela começaria a investigar. Estava claro para ela que eu e o Caio já não éramos aqueles grandessíssimos amigos de antes. Eu ainda tentei negar, dizer que nós apenas tínhamos nos desencontrado, mas ela insistiu na ideia de que estávamos diferentes.
Cedo ou tarde ela desconfiaria.
Depois da sorveteria fui para casa. Eu pensei em ligar para a Claudinha, mas eu não estava com saco de ouvir mais uma vez que eu precisava ter paciência. O que eu precisava era que o Caio se abrisse comigo. Eu não sabia mais manter aquela situação. Por outro lado, não sabia mais o que fazer. Eu não saía mais de casa. Era casa/faculdade, faculdade/casa. Vivia trancado no quarto. Passava as madrugadas na internet, mandando e-mails para ele.
Acho que essa loucura durou um mês.
Um dia qualquer o celular do Caio tocou. Ele atendeu e foi saindo da sala. Eu o segui. Ele foi para o banheiro e entrou em uma cabine. Percebi que eu não o conseguia ouvir com ele ali dentro, então já estava explicado o táxi daquele dia.
Ele saiu da cabine chorando e deu de cara comigo.
Quando ele me viu, tomou um susto. Arregalou os olhos. Quase falou “Ai, que susto!”, mas conseguiu conter as palavras dentro da boca.
Recompôs-se do susto e seguiu para a pia. Começou a lavar o rosto.
A minha ideia era apenas segui-lo e ver se descobria alguma coisa. Mas além de não ter descoberto nada, essa distância do Caio para comigo me consumia.
Só de vê-lo chorando, um arrepio se alastrava pela minha espinha. Então não consegui me segurar mais.
Quando ele foi saindo da pia para a porta, eu fiquei em seu caminho. Ele tentou se esquivar, mas eu o segurei pelos braços. Ele tentou forçar, mas eu era mais forte e já estava em um ponto em que usaria qualquer coisa para barrá-lo. Ele começou a forçar de verdade e eu comecei a apertar os braços dele com mais força.
- Me solta!
- Você vai falar o que está acontecendo? - disse de forma grosseira.
- ME DEIXA EM PAZ! - gritou ele.
Então fiquei ainda mais irado e o arrastei para a zona dos mictórios, que fica na parte dos fundos do banheiro masculino.
Ele continuava resistindo, mas eu fui mais rápido. O espremi contra a parede e o prendi com as minhas pernas.
Fiquei com o meu rosto a menos de cinco centímetros do dele.
Eu o olhava com fúria. Se o meu objetivo de tentar ajudá-lo não fosse tão claro em minha mente, talvez eu o tivesse esmurrado de tanto ódio.
Os olhos dele ficaram vermelhos e as lágrimas perderam o controle.
Eu sabia que eu tinha usado muito a força, mas também sabia que não o tinha machucado fisicamente. Ele dava murros contra o meu peito, gritava e eu espremia os meus lábios para conter a ira que eu sentia.
Ele não conseguia me olhar nos olhos, então, com uma das minhas mãos, segurei o pescoço dele, quase o enforcando.
- Olha para mim! - ele resistiu, então comecei a apertar o pescoço - olha, Caio!
- Está me machucando!
- Então olha! - ele olhou - O que está acontecendo com você? - comecei a falar de forma mais doce.
- Nada!
- Me fala, Caio. É comigo?
- Não.
- Então o que é? - não respondeu - Me fala, Caio!
- Me solta, por favor!
- Escuta: você não pode fugir. Não pode mais fazer isso. E não estou fazendo isso por curiosidade, estou fazendo isso porque estou preocupado. Você não pode ficar se isolando desse jeito. Você pensa que a sua vida acabou? Não, só está começando. Então é bom você ir se acostumando, porque eu não vou desistir de você. Eu estou muito puto, muito, muito mesmo. E hoje você não sai desse banheiro sem me contar o que está havendo.
- Me solta. Me solta. Você não pode me ajudar e eu não quero sua ajuda.
- Fala!
- Você não pode me ajudar, entenda isso.
- FALA! – gritei
Alguém apareceu.
- O que é isso aqui?
- NÃO SE METE, CARA. SE MANDA! - gritei
Ele veio para cima de mim e iria me bater, mas eu soltei o Caio para um lado e empurrei o cara para o outro. Ele caiu no chão do banheiro. O Caio tentou fugir, mas eu o segurei. O cara se levantou e disse:
- Eu vou chamar a segurança do campus.
- NÃO, NÃO CHAMA. - gritou o Caio desesperado.
- Como é? - perguntou o cara sem entender - então fique aí e morra - saiu.
Eu olhei o Caio nos olhos tentando entender:
- Agora me solta!
- Não vou te soltar. Você não sai daqui até falar.
- Ingrato! - forçando a fuga.
Eu o segurei de novo entre as minhas pernas e o pressionei contra a mesma parede. Eu o fitava e ele retribuía.
- Quem, Caio? Quem está fazendo isso com você?
- VAI-TE FODER! - ele não falava o meu nome.
- Ótimo! Então ficamos nós dois aqui.
O Caio começou a chorar de verdade. Ele soluçava forte e não conseguia mais usar a força para me afastar do corpo dele. Eu não resisti e o abracei, finalmente.
O bom foi que ele me abraçou também. Ficamos chorando juntos e abraçados. Eu fazia carinho nos cabelos dele e tentava acalmá-lo.
- Eu estou aqui, agora, vou te proteger! Não chora, Caio, não chora - dizia eu chorando também.
Ele me foi tirando os braços e enxugando as lágrimas.
- Você vai me contar agora?
- Não.
- Então me deixe ficar do seu lado.
- Não.
- Então a gente não sai.
- Eu não tenho mais nada o que fazer. Só eu posso superar isso sozinho.
- Superar o quê? E se você não aguentar sozinho?
- Sei lá, eu fujo...
- Fugir?
- FUGIR DE TUDO, DESSA VIDA, DOS MEUS PAIS E DE VOCÊ! - gritou com força.
Tive medo. Medo daquelas palavras e daqueles olhos.
- Do que você está falando?
- De fugir daqui. Não estou falando de suicídio.
- E por que você quer fugir daqui? Você não me ama mais?
Eu nunca tinha usado essa palavra com ele. Eu nunca tinha dito que o amava e nem ele.
- Eu nunca disse que te amava. - falou, me estranhando.
- Mesmo assim nunca amou?
- Você não é gay. Eu saberia se você fosse.
- Eu não sou gay, mas te amo mesmo assim. Eu achei que você sentisse o mesmo.
- Eu?
- Você vai embora e nem se importa comigo?
- Eu... - parou de falar - Eu não amo você. Pelo menos nunca achei que sentisse isso. Mas eu te considerei muito. Você foi o meu melhor amigo, sem dúvida e é em nome dessa amizade que eu peço que você me deixe em paz. Eu preciso de paz. Me deixa ir agora?
- Deixa eu só te dizer uma coisa: eu errei muito com você... - ele me interrompe.
- Você... - interrompo-o.
- Não me interrompa. Eu errei muito com você e eu não costumo errar com quem eu amo. Eu só quero que você não se esqueça nunca de mim. Você não precisa me amar, mas pelo menos não me esqueça. E, por favor, não fuja. Isso não vai te ajudar em nada. E se um dia você resolver esse problema, me chama. Eu quero ser o primeiro a... enfim. Não se esqueça de mim. E por favor, pare de não falar mais o meu nome.
- Pode deixar. E eu não vou fugir. Não se consegue fugir de si mesmo. Mas me deixe em paz.
Ele saiu e tudo voltou a ser como estava sendo nos últimos dias.
Ele mudo e ausente de um lado e eu carente e abandonado do outro.
A única novidade disso tudo era que eu o amava. Até então eu mesmo não sabia disso.
Não sei se eu estava feliz por ele ter finalmente falado comigo, ou mais triste de saber que, por convicção, ele não contaria comigo para nada. Mas eu o amava.
Era estranho aquilo. Eu sabia que amava o meu pai ou meu irmão, mas eu nunca diria para eles que os amava. Soaria estranho.
Mas depois de dizer que eu amava o Caio, senti vontade de dizer aquilo mais vezes para ele. “Será que eu sou bicha?”, pensei comigo. “Não, imagina. Nada demais gostar tanto de um cara”.
Em casa ainda continuava aquele clima de “corno coitadinho” nas minhas costas. A minha mãe tentava me animar, xingava a Laís o tempo todo, dizia que eu merecia coisa melhor.
Já estava ficando chato. Eu não me importava nem um pouco com a Laís. Mas como disse anteriormente, esse clima foi bom para camuflar o real motivo da minha tristeza.
.
Nas aulas seguintes, eu não tentava mais importunar o Caio. Eu sabia que ele não ia contar. E estava mais tranquilo quanto a isso também.
O que me fazia perder a cabeça era mais a curiosidade e a preocupação de que algo ruim estava acontecendo com ele.
Eu o fitava durante as aulas, mas já não era aquela preocupação constante. Ao menos ele tinha finalmente falado comigo e, podemos dizer, que fizemos as pazes. Aquele abraço não tinha sido só abraço.
Pelo menos eu esperava que não.
Mas essas aulas que se seguiram, o Caio passou a me olhar. Muito pouco, é verdade, mas ele dava umas olhadas. Aproveitava a minha concentração na aula e me olhava por cima do ombro. Eu ficava mais confuso ainda. Justo quando eu decido que não vou perturbá-lo mais, ele me inventa de ficar me olhando. Será que era um sinal para eu insistir?
No fundo eu ficava até feliz sabendo que ele, digamos, me espionava. Mas ainda ficávamos distantes. Um dia qualquer, a mãe do Caio ligou para mim.
- Marlon, você pode vir na sorveteria hoje?
- A que horas?
- À tarde. Pode?
- Posso. Depois da aula eu passo aí.
Nem preciso dizer que fiquei preocupado. Achei que ela queria saber se eu sabia o que acontecia com o Caio. Eu iria dizer o quê? Se eu dissesse que não, ela iria achar que era uma coisa muito grave e ia investigar de verdade. Por outro lado, se o Caio estivesse passando por uma coisa séria, talvez fosse bom a mãe dele ficar por dentro.
- Faz tempo que você não vai lá em casa. Você vivia lá. Por acaso o Caio contou alguma coisa que te afastou?
Estávamos sentados em uma das mesas da sorveteria. Aquela pergunta era muito estranha. Muito diferente do que eu imaginava.
- Como assim? - eu perguntei.
- Por que você está distante do Caio? Eu venho percebendo e não é de hoje que vocês estão se estranhando. Por acaso vocês não são mais amigos?
- Somos, mas é complicado.
- Você não gosta mais do Caio como antes?
- Gosto. Por que a senhora está me perguntando isso?
- O Caio tem andado muito triste e você não aparece mais em casa. O Caio já passou por isso antes com um amigo. Depois que ele contou um segredo que ele tem, esse amigo se afastou.
- Ele contou que era gay?
- Ah, então você já sabe.
- Sei.
- Mas então por que você não vai mais lá em casa?
- Porque... eu não sei como explicar! Mas eu quero que a senhora saiba que eu gosto muito do Caio, mas ele está passando por uns problemas e a gente se afastou por conta disso. Mas se dependesse de mim, nada teria mudado entre a gente. Não importa se ele é gay. Na verdade eu já desconfiava.
- Você janta lá em casa hoje? Eu estou preocupada com o Caio. Se pelo menos ele tiver amigos, essa fase dele pode passar. E depois, você pode descobrir o que é que ele tem e me contar depois.
- Beleza!
Nossa, fiquei tão feliz. Agora eu tinha um aliado dentro da casa do Caio. Talvez assim eu descobrisse o que ele tinha. Ou pelo menos eu ficaria mais pertinho dele.
Eu saí da sorveteria dando pulos de felicidade.
Então os pais do Caio, ou pelo menos só a mãe dele, sabiam que ele era gay. Menos mal. Ele sofreria menos com isso.
De noite eu estava lá na casa dele.
- O que você está fazendo aqui? - perguntou o Caio.
- Sua mãe me convidou.
Ele fez uma cara como se não tivesse gostado. Desanimou-me um pouco, mas estar ao lado dele era o que importava. E foi o que eu fiz.
Eu sentei ao lado dele e pedia para ele passar o sal, a salada, puxava papo e ele não poderia simplesmente ignorar porque ele não poderia dar a entender que estávamos tão diferentes um com o outro.
Há quanto tempo a gente não ficava tão juntinho?
Depois fomos para o quarto dele. Lá dentro ele mudou completamente. Se tornou o Caio ausente de antes. Ele se deitou na cama e ficou olhando para o nada. Senti-me muito rejeitado. Foi muito frio.
Mas resolvi aproveitar, sabe-se lá quando eu ficaria assim tão pertinho dele de novo. Então dei uma de atrevido e me deitei ao seu lado.
- Posso deitar com você? - não respondeu - sua mãe pensou que a gente estava brigado porque eu tinha me afastado de você. Ela pensou que eu não quisesse mais ser seu amigo porque você é gay.
Ficamos ali um tempão calados, mas foi tão legal. Ainda era cedo, não tinha pressa de ir para casa. Desci da cama e apaguei a luz. Ficamos iluminados só pela luz da rua. Voltei para a cama e fiquei ali. Puxei um dos travesseiros, me encolhi na cama e ficamos caladinhos. Ele de costas para mim. Eu percebi que mesmo que ele não falasse nada, estar em sua presença me bastava. Começou a ficar tarde e eu tinha que ir para casa.
- Está tarde, Caio, eu já vou indo.
Engraçado que eu dizia e fazia as coisas com/para ele já sabendo que ele não se manifestaria. Então eu só falava para avisá-lo. Disse que estava de saída, fui colocando a minha sandália e disse “tchau”. Despedi-me dos pais dele e fui para casa.
Aproveitei-me dessa situação favorável que a mãe do Caio me oferecia. Passei a ir à casa do Caio mais vezes. Eu entrava, falava com a mãe dele e seguia para o quarto. Era engraçado. Eu ia visitá-lo, era super bem vindo na casa dele, mas o próprio Caio não me queria ali. Mas não podia me impedir. Eu chegava ao seu quarto, ficava olhando os livros dele na estante, mexia no guarda-roupa dele, usava o computador, ligava o som, deitava na cama dele... e ele não se manifestava nem contra nem a favor.
A mãe dele trazia lanche, eu comia tudo, porque ele nem se mexia. Eu ainda oferecia, mas ele não falava nada. Nem me olhar.
Eu já estava até me acostumando. No fim de cada dia desse, eu deitava na cama dele e ficava ali por muito tempo ao seu lado. Às vezes me dava vontade de falar coisas, desabafar, mesmo sabendo que ele não me responderia. Eu sempre iniciava as frases com “Sabe, Caio...”, “Caio, você não acha que...”, “Eu sei que eu errei nisso, mas vai dizer que você também não se enganaria?”.
Era loucura, mas era uma loucura gostosaPróximo do meu aniversário, eu convenci aos meus pais a não fazerem festa. Eu não queria nada. Não me dava mais vontade de curtir nada ao lado da minha família e de antigos amigos naquela situação.
Os únicos amigos aturáveis naquele momento eram os da faculdade.
Enquanto o Caio estivesse naquele estado vegetativo, eu não me animaria.
Mas aí o pessoal da faculdade insistiu para que a gente ao menos saísse e eu concordei.
Dois dias antes da farra, eu fui à casa do Caio. Como de costume, deitei em sua cama, enquanto ele ficava no parapeito da janela, olhando a rua.
- Caio, daqui a dois dias é o meu aniversário. O pessoal da sala vai me levar para sair. Vou convencê-los de me trazerem para o bar aqui debaixo. Assim fica mais perto para você, caso te dê a louca e você decida ir, tá?
Ele nem me deu ouvidos.
- Eu nem estava afim, estou tão chatinho esses dias. Na verdade, estou chatinho desde que a gente se desentendeu pela primeira vez. Mas fiquei ainda mais depois que soube que você estava certo sobre a Laís.
Despedi-me dele e fui seguindo para a porta do quarto dele.
- Caio, é sério, a única presença que me importa é a sua. Se você puder ir, vá, por favor. Pode ter certeza que a primeira fatia do meu bolo é a suaDia do meu aniversário. Fomos Claudinha, Tom, Luiza e eu no meu carro. O resto do pessoal eu encontraria no barzinho. Começamos a conversar sobre a minha ideia de fazer a festa no bar perto da casa do Caio.
- Ele não vai. Não tenha esperanças. A gente quer que você se divirta e pare de pensar um pouco no Caio. Você anda muito tristonho - disse a Claudinha.
- Já que é para eu esquecer o Caio essa noite, pelo menos, então parem de falar dele, ok?
- Hahahaha, tem razão. Mas a gente sabe o porquê de você escolher aquele bar para fazer a festa. A gente só não quer que você se decepcione - continuou ela.
- Eu sei e eu agradeço. Mas eu mesmo não tenho esperanças de que o Caio vá, então vai dar para curtir legal.
Quando chegamos, só faltavam duas pessoas. Estávamos atrasados. No fundo do bar, uma faixa me parabenizando, um bolo cheio de velinhas (dezenove no total) e um monte de gente animada. Se a ideia era esquecer o Caio, esquece.
Tudo ali me lembrava ele: a faixa, o bolo, o lugar e as pessoas. A diferença é que com o Caio, tudo parecia mais animado. A faixa desse aniversário só dizia “Feliz dezenove, Marlon!”.
A do Caio insinuava que eu poderia ser preso porque já era de maior; o Caio conhecia os garçons e sabia quem exatamente chamar; e só ele conseguiria animar até o mais desanimado ser humano.
A festa foi prosseguindo, cantamos parabéns, começamos a beber e eu já estava um pouco alto. Era umas duas da madrugada e nada do Caio. Ele não viria mais, não haveria chance para isso. Então bebi ainda mais.
Esse bar parece aqueles casebres mexicanos, com paredes meio alaranjadas e muros bem baixinhos. O Caio surgiu com umas olheiras enormes, um moletom de zíper aberto e All Star (tênis que ele ama e ele mesmo customiza).
Em outras palavras: lindo e fofo como sempre, mesmo de olheiras. Ele segurava uma sacola. Eu estava de costas para a rua. Não lembro quem, mas alguém grita “Caio, aqui!”. Imaginem o meu coração só de ouvir o nome dele?
Quando olho para trás, ele estava na porta, com uma cara de sono, com a roupa toda amarrotada. Parecia um pré-adolescente indo para a sua primeira farrinha com os amigos. Eu não contive a emoção. Eu corri para a porta, mas parei instantaneamente na frente dele. De longe, eu só via o Caio, mas de perto eu vi o seu rosto: ele estava com uma cara de bravo. Fiquei com medo, mas falei:
- Oi.
- Estou tão puto com vocês! - sério - olha o meu estado. Está vendo isso aqui? - apontou para as olheiras - são olheiras. Eu não sou uma pessoa que costuma ter olheiras. O meu rosto tem que ser o mais angelical possível. Não dá para ser angelical de olheiras. Vocês estão fazendo muito barulho, não estão me deixando dormir. Do meu quarto dá para ouvir suas risadas - interrompo.
- Eu não dei risadas até agora!
- Calado! Eu ainda não terminei - tomou fôlego - enfim, não estou conseguindo dormir, então pensei em vir aqui porque sei que vocês não conseguem fazer uma festa boa sem mim. Mas quando abro meu guarda-roupas só tem roupa velha, trapo que eu uso em casa. Está tudo na lavanderia. Olha só a roupa que eu estou usando!
.
- Está lindo!
- Lindo uma ova! Espero que não tenha conhecidos nesse bar além de vocês, senão minha reputação de bom menino vai para o espaço. Ah, tem outra coisa também. Eu não sei como te dizer isso, mas eu não trouxe o seu presente. Quer dizer, eu não comprei nada, mas fiz isso aqui.
Ele tira um chapéu-cone de aniversário da Barbie e põe na minha cabeça. Depois ele pega um nariz de palhaço e coloca no meu rosto.
- Por favor, não me pergunte porque eu tenho um chapéu da Barbie!
Óbvio que eu comecei a chorar. Não aqueles choros exagerados. Só caíram algumas lágrimas. Mas eu estava muito feliz e com um sorriso largo nos lábios. Eu fiquei rindo das palhaçadas que ele estava contando e me divertindo com o chapéu e o nariz. Fiquei rindo como um tonto.
- Está lindo! Da uma voltinha para eu ver.
- Não vou fazer isso com um chapéu da Barbie na minha cabeça.
- Vai sim, senão eu vou voltar para a cama.
- Tá, tá bom.
Lá vai eu dar um voltinha. Ele ficou ali se divertindo, rindo da minha cara.
- Uhu! Ta gatinho, hein? Hahahahahaha, adoro promover a vergonha das pessoas! - irônico.
- Me abraça logo, por favor! - eu pedi aos parantos.
Nos abraçamos. Nem sei quanto tempo a gente ficou ali grudado. Por mim eu não largava mais. Depois a Claudinha e o Tom foram chegando e fizemos um abraço coletivo. Um bando de moleques chorões.
- Chega de choro, senão minhas olheiras ficam maiores!
Fomos para a mesa e o Caio foi abraçar todo mundo. Até o garçom ele abraçou. Pronto! A festa agora iria ficar animada. O Caio foi logo pedindo uma caipirinha e dando bronca.
- Quem fez essa faixa?
- Fui eu, porquê? - disse a Claudinha, já sabendo do gênio do Caio.
- Está muito feia. Só para constar.
- O que vale é a intenção!
- A intenção de ser feia ficou legal.
A Claudinha fingiu uma cara de tristeza e o Caio foi consolar.
- Não, meu amor! - abraçou-a - o que vale é a intenção. É a faixa menos feia que eu já vi na vida!
- Hahahahaha, safado! - riu a Claudinha.
Eu fiquei o resto da festa com o meu braço em volta do pescoço do Caio. Nada que nos comprometesse ou sugerisse algo mais.
Quem olhasse, acharia que éramos amigos, apenas.
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No meu coração, éramos mais que isso, eu só não sabia o quê. No finzinho da festa, lá para as cinco da madrugada:
- Desculpa, não deu para guardar o primeiro pedaço de bolo.
- Você não sabe que os últimos sempre serão os primeiros? A última fatia significa que eu seria a primeira pessoa para quem você daria o bolo.
- Você sempre arruma um jeito de sair por cima não é?
- Isso não são horas de falar de sexo, Marlon! Cinco da madrugada, olha o meu estado! Estou de olheiras... não penso em sexo quando estou de olheiras.
- Quem falou em sexo, seu pervertido?
- Olheiras, Marlon. Olhe as minhas olheiras! - falou o Caio, choramingando.
- Estão bonitas em seus olhos, deu um realce.
- Você dorme lá em casa hoje?
- Se você quiser...
- Quem manda é o aniversariante!
- Eu que mando? Nossa! Então eu ordeno que a gente nunca mais brigue.
- Eu vou tentar, mas não será fácil. Você sabe como é...
- Sei, eu te conheço bem.
Ele sorriu e ficou se lambuzando com o glacê do bolo. Eu fiquei rindo daquela cena. Não sei se vocês se lembram, mas na minha primeira festa de aniversário, eu descrevi uma cena em que eu fico observando a boquinha do Caio comendo o bolo. Não deu para eu ficar lá observando porque me chamavam a toda hora. Mas dessa vez era fim de festa, mais da metade do bar já tinha ido embora. Ficamos alguns poucos beberrões embriagados.
Eu fiquei sentado em uma cadeira de frente a ele. Os meus joelhos tocavam os deles. Ele ficou em silêncio, comendo o bolo e eu ficava observando o seu deguste. Ele sujava um pouco os dedos e chupava-os. Sujava os cantos da boca e passava a língua para tirar o excesso.
Até o nariz ficou branquinho com o chantilly. Eu assistia de camarote a boca do Caio. Que boquinha!
A festa acabou e eu fui dormir com ele, em sua cama.
Será que existem dias perfeitos? Esse poderia ser qualificado como um? Ainda havia um empecilho. Eu tinha trazido Tom, Claudinha e Luiza; precisava devolvê-los às suas respectivas casas. Mas se os levasse, poderia correr o risco de não dormir com o Caio. Então tive uma ideia:
- Caio, eu ainda tenho que levar os meninos para casa... façamos o seguinte: você vai com a gente e depois voltamos juntos para sua casa.
- Tá legal!
Pagamos a conta. Quer dizer, eles pagaram. Eu era o aniversariante não é mesmo?
- Vamos, Tom!
- Espera aí, Marlon, me deixa ir ao banheiro - saiu correndo.
- Bom, então vamos entrando no carro.
- Bem, como eu não tenho mais treze, eu vou na frente - disse o Caio.
- Eu também não. E você é o único menor de idade aqui. - resmungou a Luiza.
- Mas você tem vagina, deve ficar calada!
- Hahahahahaha, tá, vou assumir a minha condição de Amélia submissa. Vou deixar você ir na frente só porque estou boazinha hoje.
- Minha gente, o que deu na Luiza para ela estar boazinha? Quem te comeu deu uma chinelada legal hoje hein?
- Queria eu, hahahaha.
- Só porque somos universitários, não significa que devamos falar putaria o tempo todo, não é? - reclamou a Claudinha.
- Macacos me mordam! Qual a graça de ser universitário e não falar putaria? - eu perguntei.
- É verdade, a Claudinha está certa. Calem-se todos. Nada de falar putaria, agora só vamos fazer. Vem Claudinha, não se acanhe. Arroche-se em mim - disse o Caio tentando alcançar a Claudinha no banco traseiro.
- Sai para lá!
- Hahahahahaha. Vai dizer que você não gosta de uma putaria? E aquele dia?
- Que dia?
- Aquele! Ah já sei, você estava tão chapada que não lembrava não é? Deixa-me refrescar sua memória - foi tentar agarrá-la de novo.
- Hahahahaha, sai, Caio!
- Pronto, cheguei! - disse o Tom, entrando no carro.
- Chegou na hora certa, Tom. Você dá um créu na Luiza e eu na Claudinha - disse o Caio.
- Eu? Dar um créu em mulher? Que nojo! - disse o Tom.
- Hum! Vai negar as xoxotinhas que você já comeu? - perguntou a Luiza.
- Nego até a morte!
Eu fui deixando cada um em casa e voltamos Caio e eu para a casa dele. Fomos entrando devagarzinho, para não acordar os pais dele.
- Marlon, eu vou tomar banho. Você quer ir tomar o seu depois? Eu te empresto uma roupa.
- Você se importa se eu não tomar?
- Não, seu imundo, a creca é sua, faz dela o que você quizer.
- Hahahahahaha.
- Psiu! - Caio me pedindo silêncio.
- Foi mal.
Ele foi tomar banho e eu fiquei no quarto dele esperando. Comecei a tirar a roupa e fiquei só de cueca. Mas depois eu vesti a roupa de novo e fui na cozinha beber água. Na casa dele eu sempre tive essa liberdade, mas nunca abusava. Achava o máximo. Me sentia muito bem-vindo.
Depois voltei para o quarto e tirei a roupa de novo. O Caio chegou depois com o cabelo molhado e cuequinha, com a toalha pendurada nos ombros. Ele pendurou a toalha na cadeira do computador depois de enxugar o cabelo e foi deitar.
- Que travesseiro você quer?
- Tanto faz, Caio.
- Toma esse. - me oferecendo um - Ah, esqueci seu colchonete.
- Não me incomodo de dormir na sua cama. Quantas vezes fizemos isso?
- Ah é? Então tá.
Ele fez uma cara estranha, como se não tivesse gostado de eu ir dormir com ele. Então disse:
- Mas se você preferir, eu posso pegar o colchonete.
- Não, é que... eu achei que depois que eu assumi para você... bem...
- Relaxa aí, mano, é tudo treta, é tudo nois! - disse eu, brincando.
- Então tá, Mano Brown, mas chega com responsa na minha quebrada, valeu?
- Firmeza!
Deitei ao lado dele. Nossa! Como ele estava cheiroso. Ela usa um sabonete super gostoso, bem suave. Não tem aquele cheirinho de bebê, mas também não tem aquele cheiro forte. Ficamos um de frente para o outro. Um olhando o rosto do outro. Sorrimos. Ele começou a se encolher na cama e ficou de conchinha.
- Quando você descobriu que era gay?
- Não sei, acho que sempre soube.
- Desde quando sua mãe sabe?
- Nossa, faz tanto tempo! Eu contei com uns treze.
- Foi muita coragem
- Na verdade foi imaturidade. Eu não sabia a gravidade daquilo, então não achei que seria uma coisa absurda a ser contada para a minha mãe. Eu lembro que eu disse para ela que preferia dançar a quadrilha na escola com um amiguinho meu e não com a minha parceira. Aí ela estranhou e perguntou porquê; eu disse que era porque eu o achava bonito e adorava ficar abraçado com ele. Ela me disse que eu deveria namorar meninas, mas eu disse que não achava ruim namorar meninos também. Na verdade, eu preferia os meninos porque eles têm um abraço mais forte.
- Hahahahhaha, desculpa eu rir, mas é engraçado.
- É um pouco. Às vezes eu fico rindo também. Imagina, eu com treze anos dizendo “Joãozinho, me abraça fortinho e me chama de meu bem!”
- Hahahahahaha, ai, Caio, só você mesmo.
Que conversa deliciosa! Nós dois na cama, no maior conforto, dividindo a intimidade do sono, ele cheirosinho, só de cuequinha e com aquele rostinho de menino.
O Bom era que, por mais engraçado que o Caio fosse, aquela conversa não era um papo descontraído. A gente se olhava nos olhos, sorria um para o outro e se respeitava.
- Óbvio que minha mãe me levou no psicólogo. Tentou me convencer que era errado, mas não teve jeito. Depois ela desistiu. O bom é que ela e o meu pai tiveram uma boa educação, não são esses alienados homofóbicos. Eles só fizeram isso porque sabem como é difícil ser gay. Mas depois eles aceitaram legal. Mas na minha família só eles sabem.
- Eu pensei que só sua mãe soubesse.
- Meu pai foi mais esperto que minha mãe. Ele já imaginava que eu fosse, mas ficava na dele. Quando minha mãe contou para ele, ele disse “Paciência”.
- Que fofo! Queria um pai assim.
- Por quê? Você não é gay!
Estava tudo maravilhoso. Por mim eu dormiria sempre com ele. Sempre. E mesmo sendo hétero, não me sentia ameaçado por ele. Nem mesmo com perguntas desse tipo.
- Não sou mesmo, mas isso não significa que eu goste do machismo do meu pai. Às vezes ele é um grosso.
- Seu irmão tem a quem puxar. - disse o Caio, irônico.
- É, eu sei que o meu irmão é outro. - disse me lamentando.
- Ele é um idiota. Eu odeio o seu irmão e não é pelo o que ele fez no seu aniversário no ano passado. É porque ele é um ogro, um ignorante, uma pessoa repugnante. Odeio caras como o seu irmão.
Eu nunca morri de amores pelo meu irmão, até porque ele não era uma pessoa que daria valor a uma simples demonstração de sentimento. Mas não fazia ideia que o Caio era tão rancoroso em relação ao meu irmão. Não que eu tivesse ficado bravo, mas não sabia que o Caio poderia ser tão amargurado.
- Nossa!
- Desculpa, eu sei que ele é seu irmão, mas é um bosta!
- Tem problema não. Eu sei que ele é chato mesmo.
- Chato só não, ele é um ignorante. Ele e aqueles amigos dele. Como a pessoa com a instrução que ele tem, o nível de educação dele é tão... nem sei o que dizer... tão limitado, retrógrado, antiquado. Eu odeio pessoas assim. Uma vez estávamos no MSN e ele começou a se vangloriar das transas dele e de como ele é elogiado pelas putas. Aí ele começou a falar do corpo dele cheio de anabolizante e disse que um dia pousaria para a G Magazine. Eu disse para ele para de sonhar, pois a G nunca convidaria um idiota homofóbico.
- Nossa! Mas, vem cá, você tem o MSN do meu irmão?
- Tenho, claro!
- Por que “claro”?
- Porque eu não deveria ter? Eu só não costumo falar com ele. Nem “oi” eu dou.
- Tá, vamos mudar de assunto: por que você foi para a minha festa?
- Ah, você tem sido um grande amigo, Marlon. Você realmente não me abandonou, ficava sempre junto. Mesmo com todos os meus problemas pessoais, achei que te devia isso.
- Mas você tinha o direito de se guardar.
- Mas você não tem nada a ver com os meus problemas. Não era justo eu te excluir da minha vida, na condição em que você se posicionava diante de mim.
- Eu queria ter alguma coisa a ver com os seus problemas.
- Você queria ser um problema para mim?
- Não, queria que você confiasse em mim, para te ajudar.
- Já falamos sobre isso, Marlon.
- Eu sei. Só estou repetindo que, se você quiser, pode contar comigo.
- Eu sei.
Conversamos horas. Dormimos finalmente. Eu dormi tão bem...