de Rafael.
Eu nunca quis me vingar de Eric. Por mim eu viraria as costas para ele e pronto, acabou, bola pra frente, engole o choro. Mas Rafael não. Rafael era uma pessoa explosiva, com sentimentos a flor da pele e precisava extravasar esses sentimentos, no caso, a raiva. Ele tinha necessidade de infligir a Eric a mesma dor que estava sentindo. Isso não fazia dele uma pessoa má, fazia dele uma pessoa passional demais.
Não sei explicar a natureza da minha relação com ele até aquele momento, talvez fosse pena ou compaixão, mas de algum modo eu queria ajudá-lo, queria permitir que ele superasse aquilo e, como eu, seguisse com a vida. Só por isso aceitei participar de uma vingança contra Eric. Eu ia me vingar de Eric por Rafael.
_E o que você está pensando em fazer?_ perguntei ainda com a cabeça a mil.
_Ainda não sei. Tenho que pensar.
_Eu não tenho certeza se isso é uma boa idéia...
_Você vai me ajudar ou não?!
Suspirei fundo olhando eu seus olhos raivosos.
_Sim, eu vou te ajudar, apesar de não concordar com isso.
_Você vai ver como vai se sentir melhor depois disso.
_Se você está dizendo...
Sem me despedir dele desta vez, saí dali e retornei para a festa. O álcool começava a provocar sono em alguns convidados e a festa ia se acalmando. Alice, ao contrário, estava muito alerta ainda e veio ao meu encontro assim que me viu. Eu estava cansado de fugir dela, eu ia acabar tendo que contar tudo a ela.
_Eu vi você sumindo com Rafael no escuro, Bernardo. O que diabos está acontecendo aqui?
Suspirei cansado. Não queria discutir sobre aquilo naquele momento. Eu queria poder pensar sozinho sobre aquilo dia primeiro.
_Amanhã, Alice. Amanhã eu prometo que te conto tudo.
Ela não pareceu completamente satisfeita com minha resposta, mas aceitou que conversássemos no dia seguinte. Àquela altura dos acontecimentos, eu só queria que aquele dia acabasse. Eu estava destruído emocionalmente, o que me deixava destruído fisicamente. Eu mal me agüentava em pé. Ainda bem que a maioria dos convidados já estavam indo embora.
Pedro era um dos últimos, e veio se despedir de mim:
_De novo, cara, parabéns._ falou me dando tapinhas no ombro.
_Valeu, cara.
_E você vai me ajudar mesmo com aquela história?_ perguntou mais baixo.
Tanta coisa tinha acontecido desde então, que demorei alguns segundos para entender que falávamos sobre seu plano de conquistar Alice.
_Claro, vou te ajudar assim.
_Beleza! Vou ser eternamente grato.
_Que isso, você me ajudou hoje me livrando da Taís.
_Era o mínimo que podia fazer. Aliás, melhoras aí._ falou se referindo à minha inventada herpes genital.
_Obrigado._ falei corando de vergonha.
_Bom, então até segunda-feira.
_Até!
E com ele foram-se mais alguns colegas. Rafael foi o próximo a vir se despedir de mim. Suspirei fundo. Sua presença mexia comigo quase ao ponto de ser um incômodo.
_Desculpe por, até certo ponto, ter estragado sua festa de dezoito anos.
_Nós dois sabemos que não foi culpa sua.
_Mesmo assim...
Ficamos os dois em silêncio, nos encarando, ambos sem jeito depois de tudo que havia acontecido mais cedo. Mas o silêncio constrangedor não durou muito tempo, Rafael não conseguia ficar calado por muito tempo.
_Podemos nos encontrar para conversar? Amanhã talvez?_ perguntou.
_Amanhã não. Preciso de um tempo para absorver tudo isso. Segunda-feira, na faculdade, a gente conversa.
_Certo. Então até segunda, e feliz aniversário.
_Obrigado, até.
Trocamos um abraço desajeitado, que mal podia ser chamado de abraço de tão pouco que durou e tamanha sua frieza. Meu estômago formigava antecipando o nervosismo da conversa que teríamos na segunda-feira.
A próxima na lista de despedida foi Alice, que trazia a expressão desconfiada no rosto, provavelmente por ter me visto me despedindo de Rafael. Não insistiu mais em saber o que estava acontecendo, mas avisou que iria á minha casa depois do almoço para conversarmos. Concordei com a cabeça e a abracei, agradecendo pela sua ajuda na preparação da festa.
Sobraram mais alguns gatos pingados, na maioria amigos do meu pai, que logo foram embora também. Fui embora de carro com meus pais e meus irmãos caçulas. Ao chegar em casa, tomei um banho e me deitei. Era pouco mais de meia-noite, mas, apesar do cansaço, eu não conseguia dormir. Tudo ainda estava muito vivo na minha cabeça. Rafael e Eric iam e vinham nos meus pensamentos.
Sim, eu era o que era e me odiava por isso. Como eu conseguia me olhar no espelho todo dia? Simples: eu dizia para mim mesmo que eu controlava a pessoa que era, eu tinha poder para mudar minha vida. Eu era homofófico como disse Eric? Eu não odiava gays, eu só não queria ser um. Aquilo fazia de mim uma pessoa má? Eu estava projetando em Eric meus preconceitos inconscientemente?
Eu o odiava? Não, eu não conseguia odiar ninguém e Eric não escapava dessa regra. Mas eu estava magoado, ferido, traído. Eu não queria mais ver Eric, tocar Eric, e muito menos conversar com Eric. Ele me feriu e eu não consigo esquecer meus algozes, mesmo depois que as feridas cicatrizam.
Eu nunca amei Eric, nem nunca tentei. Eu tinha uma parcela de culpa naquilo tudo então? Eu poderia ter evitado todo aquele sofrimento? Não, não poderia. Com o tempo eu percebi que mesmo tentando, eu não conseguiria amar Eric. Não se passa a amar alguém com base em tentativas, ou se ama, ou não. Rafael se apaixonou por ele e olha como terminou. Então não, eu não me culpo por não ter amado Eric, eu lhe dei tudo que eu podia lhe dar naquele momento sem me prejudicar: sexo.
E ainda tinha aquela maldita vingança na minha cabeça. Eu realmente não entendi minha submissão a Rafael. Por que eu aceitei fazer parte de uma coisa que eu certamente me arrependeria só para satisfazê-lo? Que tipo de poder ele tinha sobre mim?
Eu não sei exatamente quando eu comecei a chorar, lembro apenas de dormir com meu travesseiro molhado de lágrimas.
[...]
Alguém me sacudia violentamente, acordei assustado. Alguém tinha aberto as cortinas deixando meu quarto inundado de luz solar e meus olhos arderam quando os abri. Demorei um tempo até me acostumar com a claridade e perceber que era Alice quem me sacudia.
_Aff, acho que combinamos de conversar depois do almoço!_ falei com a voz ainda rouca de sono.
_Já são quase duas da tarde.
_O que?
_Hibernou, hein?
_Putz, eu dormi quase doze horas direto.
_É, sua mente estava muito cansada. Agora me conte o porquê.
Ela me olhava sentada na minha cama de braços cruzados. A olhei e ela estava séria, realmente esperando pela resposta. Me deixei cair de novo na cama, ainda não tinha acordado totalmente.
_Não aqui. Vou tomar um banho, vamos almoçar no shopping e lá conversamos.
_Para de me enrolar, Bernardo!
_Não aqui._ falei me levantando e indo para o banheiro.
[...]
Alice estava me olhando boquiaberta depois de eu ter lhe contado tudo, desde os meus encontros secretos com Eric que escondi dela, até o plano de vingança de Rafael. Enquanto ela digeria aquela grande quantidade de informações, me concentrei no meu almoço. Demorou alguns instantes para ela acordar.
_Por que não me contou tudo isso antes?
_Porque eu não queria admitir que estava quebrando uma promessa que fiz para mim mesmo de nunca mais me relacionar com outro cara.
_Isso é uma idiotice, eu nunca te condenaria.
_Eu estava com vergonha de admitir que não deu certo, ok?_ falei impaciente.
_E ficou segurando essa bomba sozinho! Burro!
_Alice!
_Burro, burro, burro! Eu estou aqui para isso, pra te ajudar a enfrentar esse tipo de coisa.
_Tá, ok, me desculpe, eu devia ter te contado._ falei tentando encerrar a discussão.
_Então quer dizer que Eric namorava Rafael e tinha você como amante?
_Você faz eu me sentir muito melhor colocando as coisas sob essa ótica._ respondi com ironia.
_Desculpe.
_Mas sim, Rafael era o namorado e eu o amante.
Ela ficou um tempo olhando pro nada, pensativa. Decifrei com facilidade o que se passava em sua cabeça.
_Você também acha que eu tenho uma parcela de culpa por não ter tentado gostar dele de verdade?
_Mais ou menos._ só uma melhor amiga poderia admitir uma coisa daquela, que você tinha culpa na traição do seu parceiro.
_Alice!
_Você também sabe que é verdade. Talvez se você tivesse se levado, poderia ter evitado isso tudo.
_Não acho.
_Nunca saberemos. Mas uma coisa certamente é sua culpa: você sempre desconfiou que existia algo entre Eric e Rafael, poderia ter investigado. Ou mesmo simplesmente ter perguntado a Eric, ele não conseguiria mentir. Acho que inconscientemente você sempre soube que existiam três pessoas naquele relacionamento e se calou porque era conveniente.
Não tinha como negar aquilo, eu sempre desconfiei da relação de Eric e Rafael, desde a primeira troca de olhares entre eles que presenciei. Talvez eu realmente soubesse e estivesse me enganando. Eric, de um certo modo, me fazia sentir especial. Foi alguém que eu cativei sendo quem eu sou de verdade. Alguém que se apaixonou pelo Bernardo atrás da máscara. Eu não queria dividir isso com ninguém. Eu queria pensar que eu realmente era especial para ele. Eu queria me sentir amado.
_Pode ser..._ respondi abaixando a cabeça e me concentrando no meu prato.
_E pra que diabos você tinha que prometer que ajudaria Rafael a se vingar?!
_Eu sei, eu sei!
_Você quer se vingar dele? Porque, tipo, é meio que seu direito.
_Não, não. Só quero esquecer tudo e seguir em frente.
_Então diga isso pro Rafael!
_Eu não posso, ele precisa disso pra seguir em frente. Ele não é como eu.
_E o que importa os sentimentos de Rafael?
_Eu meio que me sinto um pouco culpado pela dor que ele está sentindo.
_Bernardo..._ falou balançando a cabeça.
_Eu sei, é complicado.
Ela parou, me olhou e sorriu com o canto da boca.
_Tem certeza que é só esse o motivo?
_Claro, o que mais poderia ser?
_Não sei...
Ela não falou mais nada, guardando o que pensou para si mesma. Alice estava dentro da minha cabeça e já tinha percebido coisas que eu nem imaginava ainda.
[...]
Fui para a faculdade psicologicamente despreparado para as conversas que teria com Rafael e Pedro, além de ter que encontrar com Eric. Nem tive tempo de ficar ansioso, mal cheguei e Rafael já saiu me puxando para um canto isolado do prédio. Era de manhã e eu ainda estava acordando, por isso a ficha foi caindo aos poucos.
_O que foi?_ perguntei assustado.
_Eu já sei como vamos nos vingar de Eric!
Seus olhos brilhavam. Eu suspirei fundo com medo do que viria a seguir. Não tinha mais como fugir, eu fazia parte daquilo.
_Como?
_Com a mesma moeda: traição.
_Hã?
_Eu e você vamos nos aproximar aos poucos aos olhos dele, então num belo dia, por acaso, Eric vai nos flagrar trocando um beijo. Vai doer ainda mais do que está doendo em nós!
Tudo o que passava pela minha cabeça era: “onde eu fui meter?”