Ele saiu do meu quarto e eu fiquei pensando em como ele estava certo. Mas avaliar a certeza dele não me deixava menos triste, pelo contrário, me enfraquecia ainda mais.
Saber que ele estava certo em lutar pela paixão dele, deveria me dar forças para que eu lutasse pela minha. Deveria.
Por outro lado isso me impedia de julgá-lo por estar correndo atrás do Vinícius, por mais que o Caio não merecesse esse tipo de relacionamento pela metade (ou menos que isso).
Dar razão ao Caio era estar de acordo com o seu sentimento.
Decidi, então, fingir para mim mesmo que não estava apaixonado. O que mais eu poderia fazer? Esquecer mesmo, eu sei que não o esqueceria. Por outro lado, eu não poderia lutar por ele. Seria inútil. Então resolvi me anular nessa história. Quanto antes eu me afastasse, mais cedo eu me curaria dessa paixão.
Desculpem-me se eu vou ser rápido nessa parte e não me estenderei. Não me sinto à vontade de descrever esse momento e nem tenho paciência para tal.
Caio e eu falávamos “Oi”, nos cumprimentávamos, íamos às mesmas festas, frequentávamos os mesmos lugares, dividíamos os mesmos amigos. Mas nós não éramos mais os mesmos um com o outro.
Evitávamos constrangimentos entre a gente.
Um dia, recebi uma ligação de um dos meus antigos amigos. Ele estava propondo uma partida de futebol com os caras. Pediu que eu convidasse todo mundo e assim o fiz. O primeiro a ser chamado foi o meu irmão.
- Cara, o Gustavo chamou a gente para jogar bola daqui há pouco no campo. Vamos?
- Tá.
- Vai se arrumando, que eu vou ligar para o pessoal convidando.
Eu saí do quarto do Ewerton e fui para o telefone fazer os convites. Não percebi que o Ewerton veio junto.
- Deixa eu ver para quem eu ligo... - pensei alto.
- Só não chama o Vinícius! - disse o meu irmão.
- Por quê?
- Porque sim! - ordenou ele.
- Tá, eu não vou chamar.
“Outro com segredos. Será que todo mundo é gay e eu não sei?”.
A partida rolou normalmente, mas quando acabou, fomos nos despedindo.
- Escuta, você chamou o Vinícius? - perguntou o Gustavo.
- Ligamos para ele, mas ele não atendeu - respondeu meu irmão rapidamente.
Na volta para casa - fomos a pé - eu comecei o papo:
- Por que você não queria chamar o Vinícius?
- Porque não!
- Por quê?
- Não enche!
Eu parei abruptamente e segurei o braço do Ewerton.
- O que está rolando?
Ele colocou a mão na testa, soltou uma gargalhada de leve, com ironia e disse:
- Cara, você sabia que o Vinicius é boiola?
- Que historia é essa?
- É isso mesmo: ele gosta de dar o cu.
- Hã?
- Você não entendeu, não?
- Entendi, mas como você descobriu isso?
- Cara, - ele fez uma expressão de nojo - me promete... você é meu irmão... me promete que você não vai contar para ninguém?
- Claro, conta aí!
- Não, porra! Eu estou falando sério. Se você abrir a boca, eu te arranco os dentes!
- O quê que é? Ele deu em cima de você?
- Deu!
- Sério?
- Ele estava para lá de bêbado. Veio com um papo de sermos bons amigos há muito tempo e me agarrou no banheiro da academia.
- Que merda!
- Porra, cara. Ele... ele é nojento!
Não falamos mais nisso.
Nascemos todos desprovidos de sentimentos elaborados. Alguém pode ser essencialmente bom ou mal, mas isso, só ao longo da vida, será decidido.
Considero-me uma pessoa essencialmente boa, mas meu coração estava bem vingativo. Quando o Ewerton me contou sobre o Vinícius, achei que ele teve o que merecia. Depois de tanto usar o Caio, ele merecia que alguém o fizesse sofrer por amor também.
Acredito que uma coisa é você saber que alguém te ama e não conseguir retribuir esse amor, mas sempre se comportando com zelo e mostrando que, apesar de tudo, não pode amar do mesmo jeito que é amado (assim era o Caio comigo); outra coisa é você se beneficiar do amor dos outros, mas só quando lhe é conveniente e dar falsas esperanças à pessoa que é usada (assim era o Vinicius).
Mas onde o Vinicius buscaria apoio e consolo? Caio? Era o que eu temia. Por mais distante que eu estivesse dele, eu queria estar agora o mais próximo possível e evitar que o Caio, mais uma vez, caísse na besteira de dar o ombro ao Vinícius, tudo em nome da sua luta pelo que deseja.
O Caio, obviamente, já deveria ter caído na real, mas isso não impedia que o meu coração se preocupasse. Mas como me reaproximar do Caio depois de tudo?
Não tive escolha. Aliás, se eu tivesse escolha, não me apaixonaria pelo Caio. Na verdade, eu nem escolheria ser gay. Mas a vida, a mesma que é feita de escolhas, também é feita de sacrifícios.
O plano era me reaproximar como quem não quer nada. Sondar o campo e ver se ele estava fértil para possíveis tropeços e recaídas.
- Tom, vamos marcar uma festinha?
- Festa? Ôpa, estou dentro.
- Pode ser na sua casa?
- Na minha casa?
- Sim, na sua casa. Pode ser?
- Meus pais não vão deixar. Mas a gente pode sair para qualquer lugar.
- Eu queria que fosse uma festinha nossa mesmo, mas se não dá, tudo bem. A gente sai.
- Chamo todo mundo?
- Todo mundo!
Agora era deixar que o Tom fizesse a sua parte.
Sábado seguinte estávamos todos no barzinho perto da casa do Caio, que aliás, fazia tempo que eu não frequentava. Estava um pouco diferente, mas o clima era o mesmo. O Caio ficou responsável por reservar a mesa, como sempre. E como tal, ele sempre era o primeiro a chegar. Fiz questão de chegar cedo, quem sabe até chegar quando só ele estivesse lá. E, na pressa e sorte, foi o que aconteceu.
- Já está bebendo?
O Caio bebia uma caipirosca de morango.
- Ah, você sabe, a gente tem que começar a festa se esquentando! - disse ele sorrindo. Lindo...
Ficamos nos olhando um pouco. Parecia que fazia muito tempo que não nos falávamos. E de fato, não fazia? O que são semanas quando se tem sentimentos frágeis em jogo?
Os sorrisos eram tímidos e ao mesmo tempo eram felizes. Felizes porque, tanto para mim quanto para ele, fazia tempo que não ficávamos juntos, unidos.
O Caio não tinha deixado de sentir carinho por mim só porque eu revelei o meu real sentimento.
- Pensei que não viesse! - disse ele meio tímido.
- Eu que dei a ideia da reunião.
- Sério?
- Sim.
- Ah tá.
Parecia que estávamos nos conhecendo naquele momento. Estávamos tímidos, aquela sensação de tentar impressionar as pessoas que acabamos de conhecer, frio na barriga. Bobagem nossa!
- Ah, vou pedir algo para beber também. O que você esta bebendo?
- Caipirosca.
- O que é isso rosa?
- Morango.
- Hum! Garçom - chamei.
Ficamos nos olhando por detrás de nossos copos. Fitávamo-nos enquanto sugávamos a bebida pelos canudos.
Depois de um tempo ficou engraçado.
- Somos tão idiotas!
- Hahahahahaha, somos uma vírgula, Marlon!
- Somos sim! Não invente de sair dessa.
- Aham - disse brincando.
Depois os outros foram chegando. Convidamos todos. A farra estava ficando boa. Pareciam as mesmas reuniões do início do ano. Eu nem me lembrava mais dos problemas que havia entre o Caio e eu.
Mas assim como todo fim de festa da turma, os últimos a ficarem sempre são as pessoas mais legais: Caio, Tom, Claudinha e eu. Claro, isso pode ser pretensão minha (risos), mas deveríamos ser mesmo os mais legais, afinal, não tinha festa sem a gente nunca!
- Por que não trouxe o Luciano, Tom?
- Porque amanhã ele acorda cedo para levar o primo no aeroporto.
- Primo? Hum, sei.
- Vai tomar no cu, Caio! Hahahahahaha.
- Querido, acorde. Quem vai tomar no cu é o primo do Luciano e quem vai botar é o próprio Luciano!
- Tome no cu duas vezes.
- Ai, ai. Quanto tempo faz que eu não tomo no cu! - suspirou a Claudinha.
- Claudinha? Você também? - perguntei fingindo espanto.
- Ah, filho, só você não toma no cu. Não sabe como é bom.
- Me surpreendo sempre com a sua promiscuidade, menina.
- Caio, diz para ele como é bom tomar no cu.
O Caio me olhou, ficou vermelho e desviou-se da pergunta da Claudinha.
- Eu não sei de nada, Cláudia, menina fuck-fuck!
- Hahahahahahahaha.
De manhã, ainda estávamos no bar.
- Vamos todos para a minha casa. Robério, traz umas duas garrafas de vodka para gente levar - falou o Caio - lá em casa a gente faz umas bebidinhas legais.
Fomos subindo pelas escadas do prédio do Caio tentando fazer o maior silêncio possível. Mas não era possível fazer silêncio, não para nós, quatro bêbados. A cada degrau, um dizia “Psiu, silêncio!” e outro gargalhava. Depois, a mesma pessoa que havia pedido silêncio antes, era a mesma que agora dava risadas. Mas finalmente chegávamos à sua casa, sem cair nas escadarias.
O Caio foi pegando o liquidificador, o gelo e alguma fruta e nós fomos pegando as almofadas da sala e levando para o quarto.
Ficamos esparramados pelo chão, outros na cama. O Caio chegou, começou a fazer as caipiroscas no liquidificador e nós íamos entornando. Uma garrafa de vodka já tinha ido embora e o que fazer com ela?
O que fazer com uma garrafa vazia, de madrugada, local seguro, quatro amigos bêbados?
Jogo da verdade! Alguns chamam de “Verdade ou consequência”.
- Hum, vamos ver. Claudinha, quando foi que você tomou no cu pela primeira vez? - perguntou o Tom.
- Que merda, Tom! Quem se importa quando foi? O importante é com quem foi!
- É mesmo, tem razão. Com quem foi, Cláudia?
- Uma porra que eu respondo! A primeira pergunta é a que vale. Foi no começo desse ano. Até então eu só tomava na frente.
- Eita, eu não merecia ouvir isso! - disse o Caio brincando.
- Vocês dois precisam de uma xana gostosa na cara, tá?
- Éca, nojenta!
Eu fiquei na cama, olhando de camarote e ouvindo aquelas atrocidades.
- Marlon, vem para cá. Você não pode só ouvir, tem que revelar os podres da sua vida de menino casto. Vem! - chamou a Claudinha.
- Ih, me deixa dormir aqui em paz.
Eu bebi o que sobrou no meu copo e dormi na cama do Caio. Quando acordei, todos já tinham ido embora. Eu me levantei, fui até a sala e o Caio estava lá.
- Olha quem decidiu acordar!
- Que horas são? - eu ainda me espreguiçava.
- Hora do almoço!
- Já?
- Minha mãe deixou comida para você na cozinha.
- Ah, esqueci que seus pais são desnaturados e te deixam sozinho em casa.
- E esqueceu mais ainda que hoje é domingo e que eles não trabalham.
- Hein?
De repente eu sinto uma coisa me cutucando nas costas. Quando eu olho para trás, vejo o pai do Caio.
- Oi, tudo bem? - perguntei todo sem graça.
- Tudo sim. Você estava falando de alguém desnaturado. Quem era?
- Isso, pai, dá nele. Bota ele para fora. Joga ele da janela! - instigava o Caio.
- Não, não é necessário! - disse todo envergonhado.
- Da próxima vez, olha para trás. É só uma dica - disse o pai do Caio.
- Pode deixar.
- Caio, quem é mesmo aquele seu amigo que bebe e fica dormindo na casa dos outros para filar a boia? Ah, desculpa, Marlon, nem vi que você estava aí! - brincou o pai do Caio.
- Toma aí. Eu se fosse você, pegava o almoço e ia embora! - disse o Caio rindo.
Eu fui na cozinha, fiz o meu prato e fui comer com o Caio na sala. Pus o prato nas coxas e disse.
- Oi, amigo!
- Oi, Marlon!
Estávamos voltando ao que éramos antes: amigos. Era uma delícia. Não tenho outra palavra para descrever.
Ficamos rindo enquanto eu comia. Eu percebi que o Caio estava um pouco diferente. Talvez pelo que ele sabia sobre mim. Talvez ele estivesse sendo cauteloso em relação ao seu comportamento, para não me afetar.
De fato, se ele voltasse a ser exatamente como era antes, eu iria ficar muito mexido, pois ele era muito brincalhão e estava sempre me tocando, me cutucando, me dando beliscões. Agora, sabendo o que eu sentia, ele ficava mais cuidadoso em relação aos seus atos para comigo.
- Cara, sua mãe cozinha muito bem.
- Está gostando? - perguntou ele, feliz.
- Aham.
- Que bom, porque fui eu quem cozinhou!
- Você?
- Ah, você já comeu da minha comida. Você sabe que eu cozinho bem.
- Mas você disse que a sua mãe tinha deixado para mim...
- Sim, ela foi a última a almoçar, aí eu disse “Mãe, deixa um pouco para o Marlon!” aí ela deixou.
- Hahahahahahaha, safado!
Na minha cabeça veio a velha frase “Amor se conquista pelo estômago”, mas decidi ficar calado.
Eu passei todo aquele almoço pensando se contava ou não para o Caio que o Vinícius tinha dado em cima do Ewerton e tinha se dado mal. Eu não sei se isso seria bom ou ruim. No fim, eu não disse, mas não por achar que isso pioraria tudo, mas porque eu não sabia o que fazer.
A gente se despede com um abraço breve.
Na aula, eu voltei a sentar perto do Caio. Voltei a sentir o seu perfume e a olhá-lo pela nuca durante a aula. Ele passava todo o tempo fofocando bobagens com a Cláudia e o Tom.
Eu achava lindo toda vez que ele olhava para os lados, agarrava um dos dois pela manga da camisa, puxava e ria. Parecia um moleque de escola.
Sim, lindo e não engraçado. Era engraçado também, mas eu disse lindo porque eu ficava olhando a nuca dele. De repente, ele olhava para os lados e dava para eu visualizar os seus olhos e a sua boca. Depois ele se esticava todo e começava a rir. Era, mais uma vez, delicioso ver e ouvir a risada dele, que sempre culminava com um sorriso de canto de boca.
Minha paixão por ele tinha voltado com força total. E eu tinha voltado a ser aquele apaixonado do início do nosso período na faculdade.
A diferença era que agora eu sabia exatamente o que eu sentia pelo Caio. Até a palavra “Caio” me era gostosa de pronunciar. Chamá-lo. Nossa!
No meio dessa semana, durante o intervalo, estávamos Caio, Claudinha, Tom, Luiza e eu. A Luiza há muito que já não era nossa amiga de verdade. Era mais uma colega que amiga. Estávamos na lanchonete marcando a próxima saída da turma.
- Nossa, faz tempo que a gente não sai com tanta frequência!
- Sabemos o porquê disso, não é. senhor Caio? Se você não andasse por aí arrumando confusão...
- Ah, mas agora as coisas estão se resolvendo. - o Caio disse me olhando.
- É. - eu respondi.
- Aproveitar que o namorado me abandonou esse fim de semana de novo. Bora? - disse a Claudinha.
- Te abandonou esse fim de semana? Por quê? - perguntei.
- Porque ele tem a formatura do irmão dele para ir.
- Então vamos aproveitar e te arrumar um macho.
- Nada disso, Caio, eu sou fiel, tá?
Caio e Tom começam a tossir, fingem que estão engasgados.
- Hahahahaha, vão arrumar uma trouxa de roupas para lavar, vão!
- E você, Caio, tem que arrumar um também - disse o Tom.
O Caio me olhou estranho.
- Estou bem, solteiro.
- Ninguém fica bem solteiro!
- Eu fico!
Aquele olhar do Caio foi estranho demais. Suspeito demais. O Vinícius começou a ocupar a minha cabeça.
- Será que uma certa pessoa que eu conheço e não aprovo já está ocupando o lugar de “Namorado do Caio”?
Estava claro para o Tom, para a Claudinha e para o Caio de quem eu estava falando. Só a Luiza não entenderia.
- Não, você se enganou! - o Caio disse rindo satisfeito.
- Será?
- Será não, já é!
Eu continuei fitando os olhos dele.
- Não confia em mim?
- Não sei. - respondi asperamente.
- Depois falamos sobre isso. Eu quero falar sobre isso depois.
- Por que não falamos agora? Podemos ir lá para o estacionamento.
- Então tá.
Nos levantamos e fomos. O estacionamento não ficava a menos de dez metros da lanchonete.
- E então?
- Eu não estou com o Vinícius.
- Então por que você me olhou daquele jeito, quando o Tom disse que você tinha que arrumar um namorado?
- Porque eu fiquei com medo de você se magoar com isso.
- Me magoar com o quê?
- Ora, Marlon, você não gosta de mim de um jeito especial?
Eu não tinha entendido até então.
- Ah tá. Ah sim. Sei. - fiquei sem graça.
- Acredita em mim?
- Acredito. - disse com um sorriso.
- E depois, não o procurei até agora porque não quis mesmo. Ele já me ligou várias vezes.
- Ligou?
- A gente não ficou mais depois da festa da Luiza. Eu liguei para ele como um idiota depois, mas ele disse que iria fazer a sua última tentativa. Ele não disse o quê, mas com certeza era do Ewerton que ele estava falando. Ele disse que eu não o incomodasse mais, porque ele já estava perturbado com tudo o que estava acontecendo na vida dele. Depois, dias depois disso, ele me liga aos prantos, pedindo para eu ir encontrar com ele, mas eu não fui. Ele me ligou outras vezes, mas eu não dei mais atenção.
- Estou orgulhoso de você. - disse eu para descontrair.
- Eu só fico preocupado porque, há essa hora, todo mundo deve estar sabendo que ele é gay.
- Acho que não. Meu irmão contou só para mim e me pediu segredo.
- Ah, então você já sabia?
- Já. Por isso fiquei preocupado. Achei que, como agora ele sabe que não tem mesmo chance com o meu irmão, ele fosse te procurar.
- E procurou, mas eu não dei atenção.
- Mas você quer dar atenção! - afirmei.
- Não sei se quero mais. - disse ele me desafiando.
- Tem outro cara na parada?
- Não. Espero que não tenha nenhum outro cara na parada por um bom tempo. Nem mesmo para diversão.