Dias depois, o Vinicius reaparece.
- Marlon, Vinícius me ligou hoje de novo.
- Puta merda, esse cara já está enchendo o saco. E você?
- Disse “não” mais uma vez.
- O que ele queria? Se encontrar com você?
- É. Disse a mesma coisa de sempre, que está com saudades.
- Tá. Eu estou indo aí. A gente conversa melhor.
- Tá, beijo.
Quando eu desliguei o telefone, minha mãe pergunta:
- Vai sair?
- Vou na casa do Caio.
- O que tanto você tem para fazer na casa do Caio?
- O que é que tem eu ir à casa do cara?
- Nada, só que você anda muito por lá.
- Ué, ele é meu amigo.
- Sim, mas você não tem outros amigos?
- Tenho, mas eu quero ir à casa dele e pronto.
- Vá sair, vá arrumar uma namorada.
- Tá, já-já eu saio e pego uma sífilis, tá?
- Menino, me respeite!
- Mãe, para de implicar com o Caio. Ele é meu amigo, não fuma, não se droga, não bebe. Eu tenho mil amigos que fazem isso e a senhora não diz nada. Deixa o Caio em paz.
- Mas o Caio é viado!
Eu não soube o que responder. Em nenhum momento pensei em brigar com ela, defender o Caio dessa acusação ou dizer logo tudo de uma vez. Mas uma revolta me bateu no peito, além da constatação de que seria difícil a minha vida familiar a partir do momento que eu contasse a verdade. Fiquei muito triste com aquele argumento.
- Quem te disse isso?
- Ninguém precisa me contar, basta olhar.
- E se for?
- E se for? E você agora anda com viados?
- Que coisa feia, mãe!
Dei as costas e saí.
Enquanto eu dirigia o carro, as palavras da minha mãe ainda soavam no meu ouvido. Pior que as palavras, para mim era a voz dela. Afinal de contas, aquela era a mesma voz que eu costumava ouvir, mas que me dizia coisas doces, como uma cantiga de ninar, por exemplo.
Ao chegar à casa do Caio, me enfiei logo em seu quarto. Ele estava no computador.
- Oi! - disse ele ainda sentado.
- Oi! - disse eu desanimado e sentando na cama dele.
- Não vai me dar um beijo? - estranhou ele.
- Quase discuto com a minha mãe agora. - respirei fundo.
- Por que? - perguntou ele interessado.
- Porque ela disse que você é viado.
Ele olhou para os lados, como se estivesse procurando alguma coisa, encostou-se na cadeira, olhando para baixo. Respirou fundo. Depois ele ergueu a cabeça e me olhou.
- E você?
- Antes me diz você: ficou com raiva?
- Um pouco. Não deixa de ser um insulto, mesmo vindo da mãe de quem eu namoro. Mas eu relevo porque, me desculpe mesmo, sua mãe é uma ignorante.
Eu senti aquelas palavras como uma agulha fina entrando no pescoço.
- É, eu sei que ela foi grossa, mas você não precisa ser também. - disse eu calmamente.
- Por isso pedi desculpas antes.
- Tá, tudo bem.
- E você, o que sentiu?
- Que tudo será difícil. Estou com medo de assumir, Caio. Por outro lado, assumir nunca me pareceu tão atraente como hoje.
- Muitos dos meus amigos, quando se aconselhavam comigo, também diziam isso.
- Diziam o quê?
- Que, quanto mais medo eles tinham, mais a vontade de assumir crescia. É porque o medo é respectivo à vontade ou necessidade de assumir.
- Isso quer dizer que eu quero assumir o quanto antes?
- Não necessariamente, mas significa que você sabe que chegará um momento em que tudo só fluirá quando você assumir. Muitos passam a vida inteira sem assumir, mas é porque a maioria desses não se envolvem muito com a necessidade sexual diária. E não digo “sexual” somente pelo sexo.
- Entendo.
- Quer conversar mais? Quer um colo, não é?
- Não, quero só que você me diga o que foi que o Vinícius te falou. - disse eu mudando o tom de voz.
- Ele ligou aqui para casa, eu atendi e logo reconheci a voz dele. Ele ficou implorando para eu ir encontrá-lo no shopping e eu disse que não ia; com firmeza. Disse de saco cheio. Mas aí ele ficou chorando, dizendo que estava muito solitário e eu disse que ele mesmo tinha procurado isso. Mas eu não vou mentir que fiquei com pena dele.
- PENA? TÁ LOUCO? - berrei.
- É, Marlon. Eu sei que ele brincou muito comigo e eu tenho muita raiva disso sim. E a minha pena não significa o que você está pensando. É só solidariedade homossexual, você sabe.
- Não sei.
- Sabe sim, não seja infantil.
- Tá, o que mais ele disse?
- Insistiu só e eu disse que não. Aí ele disse que viria me buscar aqui em casa daqui há pouco e eu disse que não ia atender.
- Ele vem?
- Acho que não. Relaxa!
A conversa acabou. Ficamos calados. Eu abaixei a cabeça e fiquei inerte. Depois de algum tempo, ele pergunta:
- Continuo sem beijo.
Eu permaneço calado e de cabeça baixa.
- Você está pensando na sua mãe não é?
- É.
Ele se levantou da cadeira do computador e sentou-se ao meu lado. Abraçou-me e encostou sua cabeça no meu ombro. Eu pus minha cabeça sobre a dele. Ficamos um tempo assim. Depois ele saiu.
- Volto logo.
Eu fui para o computador e fiquei fuçando o Orkut dele. Sempre fui ciumento com ele. Ele volta com uma fatia de bolo e um copo de suco.
- Está fazendo o que, hein? - fingiu uma bronca.
- Mexendo aqui. Quero ver o que você tanto faz.
- Bestão! - disse ele enquanto punha o prato e o copo em cima da mesa.
- Bestão uma ova.
Ele sentou na cama e ficou me olhando. Ele mexia a cabeça de um lado para o outro, como sinal de reprovação para o meu ato.
- E aí, descobriu quem é meu amante?
- Ainda não.
- Hahahahaha, come o bolo logo!
Eu tirei as mãos do teclado, pus o bolo no meu colo e fiquei comendo.
- Você quem fez?
- Claro. Quem mais cozinha nessa casa?
- Já dá para casar, hein?
- Vá sonhando que a minha vida vai ser cozinhando para você.
- A vida não, mas nas horas vagas sim.
- Sonhe um pouco mais.
- Você não gosta de cozinhar para o seu mozão? - fiz charme.
- Eu cozinho por necessidade e ponto.
- Nossa, que grosso!
- Ah, vai te lascar...
- Hahahahahahaha.
- Hahahahahahaha.
- Ei, eu quero a senha do seu Orkut e do seu MSN. Pode me passar! - ordenei.
- Tá, pega aí um papel na gavetinha da mesa. - segundos depois - Anota aí: XXXXXX.
- Pronto, agora eu vou vigiar você vinte e quatro horas.
- Como se por acaso se eu quisesse fazer alguma coisa, eu iria ser tão burro a ponto de deixar rastros.
- Ah é?
- Lógico!
- Pois vamos ver.
- Vamos!
- Vou deixar as minhas senhas aqui.
- Não quero suas senhas.
- Por quê?
- Por que não, oras.
- Não quer saber mesmo?
- Eu não. Pra quê?
- Nossa, você não tem ciúmes de mim não?
- Tenho, claro.
- E então?
- Mas isso vai resolver alguma coisa?
- Você quem sabe.
- Eu confio em você, ou estou errado em confiar?
- Não, está certíssimo.
- Pronto!
Eu fiquei um pouco bolado por ele não ter ficado com a minha senha. Eu sabia que ele gostava de mim, era fiel e tinha ciúmes. O problema é que ele era muito seguro de si e (não que isso fosse ruim) isso me perturbava um pouco, pois parecia que eu instituía uma disputa entre nós. Era como se eu o provocasse para saber quem daria o ataque de ciúmes do dia, primeiro. Obviamente que essa disputa era a coisa mais saudável do mundo. Todo o casal normal tem dessas coisas e, no fundo, eu amava ser um casal normal. Eu não percebia diferença entre o meu relacionamento com o Caio e os outros que tive. A única diferença era que eu realmente amava o meu companheiro.
Passamos um dia ótimo juntos. Ficamos o resto da tarde na cama, só de cuecas e beijinhos. Não transamos. E quem disse que não foi bom? Ficamos com nossas pernas enroscadas umas nas outras, com nossas virilhas se tocando e nossos pênis eretos. Ficamos brincando durante todo o dia.
Mentira! Transamos sim. Mas foi tão suave que nem pareceu que gastamos energia. Eu peguei o creme no criado-mudo e passei em mim. Depois, de conchinha, fizemos amor. Eu me introduzi nele, o abracei pela cintura e não desgrudamos. Por não haver movimentos rápidos, demoramos muito. E que bom que foi assim. Ele gemia baixinho e eu chupava seu pescoço e orelha. Não saímos dessa posição durante todo o ato e não dissemos nada, além de gemidos. Ficamos suados. Entre as nádegas do Caio e a minha virilha era suor puro. Ele gozou antes. Ele se masturbava enquanto fazíamos amor. Depois eu gozei.
Ainda ficamos um tempo grudados. Eu gemi um pouco mais alto no ouvido dele. Depois ele me beijou. Fomos tomar banho. Fizemos muita espuma e ficamos jogando um no outro. O banho foi rápido.
Ficou tarde, então fui para casa.
- Me dá um toque quando chegar em casa viu?
- Tá bom, coração.
Chegando em casa, encontro minha mãe, meu pai e meu irmão na sala.
- Oi, povo! - eu disse.
- Sente aqui, pois a gente vai conversar. - disse o meu pai sério.
Eu fiquei um pouco assustado, pois para mim tudo era motivo de alertas. Eu me sentei ao lado do meu irmão. Ele se levantou do meu lado e sentou em um dos pufs da sala. Eu estranhei. Eu olhei para o meu pai.
- O que foi?
- Sua mãe disse que você a xingou hoje.
Eu olhei para a minha mãe, que se encontrava de cabeça baixa. Eu achei aquilo tudo muito estranho.
- Quando eu fiz isso, mãe?
- Por que você xingou sua mãe? - meu pai insistiu.
- Eu não lembro de ter feito isso. Quando eu fiz isso mãe?
Todos ficaram em silêncio. Segundos depois, meu pai continua:
- Você anda muito apegado com o Caio ultimamente... - eu tremi por dentro - Está sempre na casa dele, vai cedo e volta tarde. Não adianta dizer que o Caio não é gay porque é visível que ele é sim.
Eu olhava meu pai com estranheza.
- Antes, eu quero saber quando foi que eu xinguei você, mãe?
- Não importa. - disse o meu pai - o que você tanto anda fazendo com o Caio?
- Somos amigos.
- Você tem outros amigos, mas você só quer saber dele.
- Somos grandes amigos, estudamos juntos e nos vemos todos os dias. Obvio que temos afinidade.
- Com um gay?
- Sim, com um gay! - desafiei.
- O que isso quer dizer?
- Quer dizer que não tenho preconceito.
- E os seus outros amigos? - perguntou meu irmão.
- Que amigos? Além do pessoal da faculdade, eu só tenho colegas.
- E os caras do futebol? - perguntou meu irmão.
- Faz tempo que nós não nos falamos com tanta frequência, por isso não sinto falta deles.
- Quer dizer que você abandonou os amigos antigos por causa dos amigos novos, inclusive um gay?
- Isso.
- Você acha isso certo?
- Não vejo coisa errada aí.
- Eu vejo. O que os seus novos amigos têm que os antigos não tem?
- Não tenho mais afinidade com nenhum deles. Minha vida se resume à faculdade, agora. Ou melhor, à universidade. Pois eu não só estudo, também faço atividades extras na universidade. Gosto do que faço e isso me ocupa todo o tempo. Nas minhas horas de folga, gosto de estar com as pessoas que me fazem bem e essas pessoas não são mais os caras do futebol, nem nenhum outro grupo de pessoas.
- É um gay que te faz feliz agora?
Fiquei um tempo calado.
- Isso tudo é por causa do Caio, ou vocês realmente estão preocupados com fato de eu ter abandonado os antigos amigos?
- Tem a ver com o fato de que você não namora faz muito tempo, por exemplo. - disse o meu pai.
- E isso significa, por acaso, que eu não fico por aí?
- Nunca mais você trouxe uma menina aqui em casa. Você trazia as meninas para o seu quarto.
- Não trago mais. O problema é esse? Ora, eu não vou trazer ninguém porque eu não estou namorando ninguém. Se fosse namorada, eu trazia.
- E o Caio tem namorado?
- Eu não sei.
- Ué, vocês não são amigos?
- Mas eu não pergunto essas coisas.
- ELE É GAY, PAI! - gritou meu irmão.
Assustei-me com o grito. Mais com o grito que com a própria acusação. Meu irmão se levantou do puf agressivamente e ia saindo. Meu pai se levantou e segurou meu irmão.
- NÃO DIGA ISSO. SEU IRMÃO NÃO É VIADO! - gritou meu pai.
- Ele é sim, você que não quer enxergar.
Eu me levantei e me tranquei no quarto. Antes que eu pudesse fechar a porta, ainda pude ouvir meu pai gritando o meu nome. Não consegui chorar, eu só tremia. Meu pai começou a bater na porta do meu quarto. Eu peguei o celular e liguei para o Caio.
- Oi mozão!
- Caio, vem correndo aqui para casa. Está na hora de você segurar a minha mão!
- O que houve, Marlon? - perguntou o Caio assustado.
- Vem para cá, me salva!
Ele desligou sem ao menos se despedir. Meu pai continuava a desferir golpes contra a porta do meu quarto e gritando o meu nome. Tive medo que ele arrombasse a porta antes que o Caio chegasse. Fiquei de cócoras em cima da cama, esperando o pior.
- Marlon, abra essa porta!
Eu tremia e tentava imaginar o que viria primeiro: se seriam as agressões físicas ou verbais.
- Marlon, abra já essa porta. Saia para a gente conversar direito. Você está me ouvindo? Saia daí agora!
Fiquei imóvel na cama. Não tinha nada para ser feito. Pelo menos por mim.
- VOCÊ NÃO VAI FICAR AÍ PARA SEMPRE. EU VOU ESPERAR VOCÊ SAIR - meu pai gritando incessantemente.
Minutos depois, o meu celular toca.
- Caio?
- Marlon, eu estou aqui na sua porta.
- Tá. Eu estou indo, espera um pouco.
Eu calcei as sandálias e fiquei encostado à minha porta, tentando escutar o que se passava lá fora. Meu quarto é perto da sala, que por sua vez, ficaria mais perto do portão que dá para a rua.
Eu respirei fundo, tomei fôlego e abri a porta. Eu saí às pressas para o portão. Meu pai estava sentado no sofá da sala, me esperando. Quando ele me viu, veio correndo atrás.
- Marlon, me explique já o que foi isso.
Mas eu não dei ouvidos e continuei correndo para o portão. Quando eu abri, pensei em abraçá-lo, mas quando eu o vi... ele estava com os seus pais. Recuei. Pensei que só ele viria. “Mas foi melhor eles terem vindo”, pensei.
- O que aconteceu, Marlon? - perguntou o Caio aflito.
- Entra, pois chegou a hora.
Meu pai veio atrás e se deparou com o Caio e sua família. Ele se assustou um pouco, mas continuou vindo em nossa direção.
- O que está acontecendo aqui, posso saber?
- Boa noite, eu sou o pai do Caio. - se apresentou estendendo a mão.
- O que você quer aqui? - perguntou meu pai grosseiramente.
- Eu acho que o senhor sabe. - o pai do Caio respondeu (“senhor”, pois os pais do Caio são mais jovens que os meus).
- Eu não sei de porra nenhuma. - respondeu meu pai.
Caio e eu ficávamos nos olhando. Um queria abraçar o outro naquele momento, mas não podíamos. Só nos olhávamos e ouvíamos tudo.
- Será que nós poderíamos entrar, para conversar melhor? - perguntou a mãe do Caio carinhosamente.
- Conversar para quê?
- É melhor a gente entrar do que os seus vizinhos ouvirem o que temos para dizer. - respondeu o pai do Caio
Meu pai estava furioso. Ele me olhou com a cara mais raivosa que já vi na vida.
- Você quer que eu morra, Marlon? O que você está me aprontando? - chantageou o meu pai.
- Sejamos práticos. Vamos entrar e conversar. - insistiu o pai do Caio.
- Você quer que eu morra? - perguntou meu pai.
- Não vamos resolver essa situação com ameaças.
- QUEM É VOCÊ, QUE VEM NA MINHA CASA E AINDA FALA COMIGO DESSE JEITO? - gritou meu pai.
- É melhor a gente entrar. - disse o pai do Caio no mesmo tom calmo de sempre.
Entramos enfim. Eu e o Caio ficávamos lado a lado, mas ainda não tínhamos segurado um a mão do outro. Meu pai entrou e ficou de pé. Minha mãe estava sentada.
A mãe do Caio se aproximou e cumprimentou a minha mãe com um “Oi”; mas minha mãe só a olhou.
Tive vergonha da falta de educação dos meus pais. Todos ficaram de pé. Meu pai não tirava os olhos de mim. Eu não conseguia parar de olhá-lo, mas não suportava mais ver os olhos dele.
Foi quando o Caio finalmente tocou a minha mão com os seus dedos, até o momento em que ele segurou firme. Quando ficamos de mãos dadas, senti a segurança do Caio, respirei fundo. Mas meu pai nos olhou com surpresa, como se ainda não acreditasse. Minha mãe começou a chorar. Eu era motivo de vergonha.
- Vamos direto ao assunto: seu filho e o meu filho se amam e namoram há algum tempo. Seu filho é gay - disse o pai do Caio.
Meu pai sentou no sofá ao lado da minha mãe. Ele apoiou o rosto nas palmas das mãos e começou a chorar. Minha mãe não aguentou e saiu da sala. Eu não senti pena dele. Curiosamente achei aquela cena um tédio. Eu queria me livrar logo daquilo. Meu pai demorou a levantar a cabeça, mas quando o fez...:
- Vocês acobertavam essa safadeza? - perguntou meu pai aos pais do Caio.
- Isso não é safadeza... - meu pai interrompeu.
- Isso é nojento. Eu não criei filho para um dia chegar alguém e corromper minha criação.
- Meu senhor... - meu pai interrompe outra vez.
- Não sou seu senhor. Você é um deparavado, que deixa o seu filho fazer orgia na rua. Seu filho é um nojento, um anormal...
Meu pai continuou ofendendo o Caio com as piores palavras possíveis. Tive mais vergonha ainda. Mas eu olhei para o Caio e para os seus pais. Eles olhavam o meu pai com uma paciência que chegava a ser desconcertante.
O imaginável seria que o pai do Caio partisse em defesa do filho, contra as palavras do meu pai; que a mãe do Caio berrasse alguma coisa como “Não mexa com o meu filho”; e o Caio, nesse momento, deveria estar chorando.
Não. Os três observavam o meu pai como se estivessem em um zoológico olhando para um orangotango. Meu pai berrou todas as asneiras possíveis:
- ...o meu filho agora é essa coisa aí, que gosta de macho. Esse não é o meu filho. A culpa é de vocês, que acobertam esse tipo de safadeza. Vocês deveriam ser denunciados para o juizado, por ter aceitado essa safadeza desse menino - ele olhava para o Caio, pois realmente ele tinha uma carinha de rapazinho de quinze - e ter ludibriado esse bosta aqui. Meu filho agora é um palhaço de circo.
O Caio apertou a minha mão. Apertou com força. Contudo, ele não me olhava nos olhos. Ele não tirava os olhos do meu pai. Parecia que o meu pai tinha esgotado todo o tipo de argumento grotesco contra mim, contra o Caio e contra os seus pais e se calou, exausto.
O pai do Caio começou:
- Seu filho nasceu assim... - meu pai interrompe de novo.
- NÃO NASCEU ASSIM NÃO. ISSO É CULPA DAS MÁS COMPANHIAS.
Meu pai parecia que iria começar tudo de novo. Então o pai do Caio se calou e, pacientemente, esperou meu pai acabar de berrar:
- O Marlon nasceu assim, quer o senhor queira, quer não. Homossexualidade não é doença, não é síndrome, não é transgressão, não é fase que dá e passa. - dizia o pai do Caio com a maior calma e sutileza do mundo.
Parecia que, quando meu pai falava, estávamos numa feira cheia de pessoas e quando o pai do Caio discursava, parecia que estávamos num SPA.
- Quando o Caio me disse que era gay, eu tive a mesma reação que o senhor (mentira), mas percebi que ser gay é como ser negro, ser francês, ser baixo, ser idoso, ou seja, a gente não escolhe, só aceita.
- Eu não vou aceitar nunca isso... - recomeçou meu pai.
- Veja bem... - interrompido mais uma vez.
- VEJA BEM UMA PORRA. SAIA DA MINHA CASA AGORA, SAIA!
- Tudo bem, nós já vamos.
Quando o pai do Caio disse isso, eu inevitavelmente perguntei:
- E eu?
O Caio ainda segurava a minha mão:
- Você fica e trate de soltar a mão desse viado agora. - disse o meu pai vindo em nossa direção.
Ele iria arrancar as minhas mãos das mãos do Caio. O pai do Caio posicionou-se, temendo uma agressão física. Mas meu pai parou diante de nós, apontou para as nossas mãos e ordenou:
- Tire as mãos do meu filho!
O Caio ficou encarando o meu pai. Ele não tinha medo. Eu mesmo já me preparava para soltar, mas o Caio apertou minha mão e olhou meu pai nos olhos.
- Caio, solte a mão dele! - ordenou o pai dele.
Ele soltou, mas não tirou os olhos do meu pai, que estava a menos de um metro de distância.
- Caio, vamos! - ordenou o pai dele.
- Não... - sussurrei baixinho.
- Você quer ir com a gente? - perguntou o Caio.
- ELE NÃO VAI. - gritou meu pai.
- Não perguntei para o senhor, perguntei para o Marlon. - desafiou o Caio.
- CAIO, CALE A BOCA! - gritou o pai dele
O Caio olhou para o seu pai e baixou a cabeça.
- Você deveria ter essa moral para ensinar o seu filho a ser homem de verdade. - disse o meu pai para o pai do Caio.
- Meu filho é homem.
- Seu filho é uma vergonha!
- Eu não vou discutir com o senhor.
- Você não tem o que discutir não, você está errado. Está na minha casa e não tem que falar merda nenhuma.
- Vamos, Caio! - ordenou o pai dele.
Eu não queria ficar ali. Sabe-se lá o que o meu pai faria comigo sozinho. Não tive medo que ele me batesse, afinal eu já era crescido e há muito que o meu pai não batia nos seus filhos. Temi o que aconteceria sem o Caio ao meu lado, para me dar força.
- Não. - eu sussurrei.
- Não? Você vai aprender a ser homem de verdade: trate de ir arrumar a sua mala, pois você vai morar com o seu tio. Você vai aprender a respeitar essa família.
- EU NÃO QUERO FICAR LONGE DO CAIO. - eu gritei.
Não sei como tive coragem, mas gritei. Meu pai se assustou com o meu grito, pois, até aquele momento, quem tinha dado o tom da “conversa” tinha sido ele.
Ele esquivou o tronco um pouco para trás no momento em que eu gritei, assustado. Depois ele retomou a face da raiva e gritou:
- SAIA DA MINHA CASA AGORA!
Eu nunca pensei que o fato de ele me expulsar fosse me trazer alívio e alegria.
Quando ele me expulsou, minha mãe veio correndo de dentro de casa, chorando.
- Não, não bote ele na rua. Ele vai se curar, é só a gente ser firme agora. É só a gente acreditar. Ele vai se curar... não vai, meu filho?
Quando ela me perguntou isso, senti um embrulho no estômago. Lembrei-me imediatamente de horas antes, quando o Caio havia chamado a minha mãe de ignorante. Tive pena dela.
- Isso não tem cura, mãe.
- Tem sim, é só você ficar longe das más influências. - chorava ela.
- Eu nasci assim, mãe. Eu sou desse jeito e não posso mudar.
Ela ficou chorando desesperadamente. Meu pai a segurava, pedia calma para ela.
- Está vendo o que você está fazendo com a sua mãe? - perguntava o meu pai.
- NÃO DÊ OUVIDOS A ELE, MARLON. VOCÊ SABE QUE A CULPA NÃO É SUA. - gritou o Caio.
- CAIO, CALE A BOCA AGORA! - gritou a mãe dele.
- Mas é verdade, mãe. A senhora sabe disso.
- Não interessa. Não se meta!
Meu pai sentou a minha mãe. Ela estava passando mal. Eu pensei em ir para a cozinha e buscar água. Quando eu comecei a ir, meu pai gritou:
- Ewerton, pegue água para a sua mãe!
Foi quando eu senti que não pertencia mais àquela família. Meu irmão apareceu com um copo d’água e o deu a minha mãe. Depois ele ficou me olhando com ódio. Dele eu não tinha preocupação alguma.
- Parabéns, Marlon. Está vendo o que você está fazendo com a mamãe?
- VÁ EMBORA, MARLON! - gritou meu pai.
- Marlon, pegue suas coisas e vamos. - falou o pai do Caio com a mesma calma.
- Ele não vai levar nada daqui. Vai só com a roupa do corpo.
- Ótimo, ótimo. Vamos, Marlon. - disse o pai do Caio com um tom de tédio, como se estivesse cansado daquela cena.
Eu ainda fiquei ali, estático, olhando para a minha mãe. Eu ainda não acreditava que não pertencia mais àquela família.
- ESTÁ ESPERANDO O QUE, VIADÃO? SE MANDA DAQUI! - gritou meu irmão.
O Caio começou a me arrastar pelo braço.
- Vamos, Marlon. Não tem mais nada aqui para você!
E eu fui.
Um par de sandálias, uma bermuda, uma cueca e uma camiseta. Foi tudo o que eu pude levar comigo. Claro, se estivermos falando de coisas materiais, pois levei mais que isso.
Cheguaria à casa do Caio com uma tristeza enorme no peito. Levando medo, vergonha, angústia, alívio, tensão, incertezas, certezas...
Os pais do Caio entraram no carro. O Caio entrou pela porta traseira e me deixou a porta aberta. Eu parei diante daquela porta e fiquei olhando-a. O Caio me olhou estático.
- Marlon?
Eu ainda não tinha derramado muitas lágrimas. Todos foram muito pacientes comigo. Fiquei um tempo de pé, olhando a porta do carro. Minutos depois, ouço a mãe do Caio.
- Caio, desça e pegue o Marlon. - disse ela carinhosamente.
O Caio desce, me pega pelos dois braços e me arrasta para dentro do carro. Eu sento e fecho a porta. Mas eu agora olho para outra porta: a da minha casa. Quer dizer, será que naquele momento ela ainda era a minha casa?
- Podemos ir, Marlon? - perguntou o pai do Caio.
- Sim. - eu respondi.
Quando o carro começou a se movimentar, eu respirei fundo. O Caio me abraçou e me fez cafuné na cabeça. Depois ele foi me deitando no seu colo. Passei a viagem deitado.
Eu nem sentia falta dos meus pais e do meu irmão nem se fala. Só senti um pesar de que eles foram tudo para mim um dia, mas agora não eram mais. Parecia frio, mas era o que eu sentia. No meio do caminho, o pai do Caio disse:
- Hoje não é dia de falar nada, não vamos discutir nada. Hoje só vamos comer, tomar banho e dormir. Amanhã a gente conversa.
- O senhor está dizendo que a gente vai voltar para minha casa, para a gente conversar com os meus pais de novo?
- Não. Eu disse que nós quatro vamos conversar.
- Sobre o que, pai? - perguntou o Caio curioso.
- Amanhã, Caio. Amanhã!
Chegamos ao prédio, estacionamos o carro e subimos as escadas. Tudo em silêncio. Acredito que já se passavam da meia-noite. O pai do Caio rodou a chave na porta e entramos. O pai do Caio jogou as chaves no sofá e soltou uma expiração de cansaço.
- Obrigado por tudo! - eu disse.
- Amanhã, Marlon. Amanhã. - repetiu o pai do Caio - Agora vamos dormir. Quem tiver fome, come, quem quiser tomar banho, toma, mas vamos todos dormir, ok?
Os pais do Caio se trancaram no quarto. Ficamos Caio e eu na sala. Ele estava olhando para o chão, meio perdido naquela situação.
- Caio?
- Oi, amor! - me disse ele.
Ficamos calados. Depois:
- Estou orgulhoso de você! - me disse sorrindo.
Fiquei calado. Não tinha muito que dizer. O Caio me estendeu a mão e disse:
- Vamos: quer comer, tomar banho e dormir, ou só dormir?
- Tomar banho e dormir.
- Tá
.
Ele foi para o quarto, me deixando na sala. Depois ele apareceu com uma toalha limpa e me deu. Eu fui para o banheiro. Parecia que nada tinha acontecido. Era só a sensação de mudança drástica, mas nada que me causasse reações adversas. Era estranho.
Eu fui tirando a roupa e me lembrando que aquele era o meu único pertence material. Dobrei a roupa com zelo, pus em cima do vaso sanitário e fechei a porta do box.
Tomei um banho frio de no máximo 5 minutos. Depois saí do banheiro em direção ao quarto do Caio. Me deparei com uma muda de roupa em cima da cama:
- Para você. - me disse o Caio.
Eu fechei a porta, tirei a toalha, me enxuguei e me vesti. Nem sei onde ele conseguiu roupas que serviram em mim, pois as dele eram bem menores que as minhas. Antes disso, o Caio me tomou as roupas sujas, saiu do quarto e, provavelmente, as colocou na área de serviço. Quando ele voltou, eu já estava vestido.
- Amanhã não vamos para a faculdade. Você concorda?
Agitei a cabeça como sinal positivo. Pronto! Tudo o que deveria ser decidido e feito naquela noite já tinha sido executado. Olhamo-nos.
Eu parecia um cão sem dono, me sentia abandonado, mesmo com um namorado maravilhoso do lado e um teto sobre a minha cabeça.