Conversamos mais um tempo, apenas amenidades agora e trocamos contato, despedindo-nos. Voltei para casa mais alegre, leve. Eu tinha agora tanta informação e de uma pessoa totalmente alheia ao que havia acontecido que, no final das contas, fiquei mais confuso ainda, embora bem mais leve. De uma coisa, pelo menos, ela havia sido mais que certeira: eu e a Lucinha não poderíamos continuar vivendo daquela forma.
(CONTINUANDO)
A Fernanda havia conseguido o que para mim parecia impossível já há algum tempo: trazer um pouco de leveza num assunto tão tenso e profundo como aquele que abateu o meu relacionamento com a Lucinha. Voltei para casa todo sorridente, mas ao entrar, encontrei uma Lucinha totalmente transtornada, com os olhos vermelhos, inchados e chorando muito:
- Calma! - Falei assim que nos encontramos: - Eu estava de cabeça quente, mais comigo até do que com você e saí para poder pensar e decidir o que fazer da nossa vida.
- “Nossa vida”! Ah, Gervásio… - Seu choro aumentou ainda mais: - Por favor, me dá uma chance! Eu sei que errei e já te pedi perdão. Pelo amor de Deus, não faz isso com a gente…
- Calma, Lú! - Insisti, sorrindo e ela me deu uma horrorosa chupada no nariz para me olhar perplexa, antes que eu continuasse: - É, então… Eu passei o dia num shopping e acabei encontrando uma ex-colega dos tempos de faculdade. Acabou que nós tivemos uma longa, longa, longa conversa, e no final ela me aconselhou a fazer terapia…
- Ué! Mas eu já tinha marcado! - Lucinha me interrompeu.
- Isso! Acho que esse pode ser o caminho para a gente resolver de vez a nossa vida.
- Ahhhh… - Enxugou o rosto e confessou: - Poxa! E eu que pensei que a gente tivesse se entendido depois de ontem.
- Não! Não nos entendemos. O que aconteceu ontem foi… - Eu procurava palavras para não ofender: - Foi muito bom! Mas acho que a gente precisa primeiro acertar nossa situação emocional antes de voltarmos ao sexual novamente.
- Mas não foi bom?
- Foi ótimo! Mas vamos com calma, ok?
- E que colega é essa? Você nunca me falou de colega alguma.
- Fernanda. Nós fizemos faculdade de administração juntos. Ah, como eu queria que você estivesse junto para ouvir tudo o que ela me falou. Ela me deu uma verdadeira lição de vida.
Decidi que contar tudo o que a Fernanda havia me contado não colocaria em risco minha amiga, afinal, a Lucinha não a conhecia. Sentei-me então no sofá, ao lado dela, e contei toda a conversa que havia tido com a Fernanda. Ela ficou boquiaberta com o tanto de novidade que eu trazia, ouvindo tudo com atenção e muita curiosidade:
- E vocês só conversaram mesmo?
- É claro, né, Lucinha! Eu até brinquei com ela no final para saber se rolaria alguma coisa caso eu decidisse me vingar mesmo de você e levei uma baita comida de toco dela.
- Hã… - Lucinha resmungou, meio desconfiada: - Olha lá, hein?
- Olha lá o quê, Lucinha!? - Encarei minha esposa, deixando bem claro que ela ainda não estava em condições de não me cobrar nada.
- Ah, é que eu… eu… Ah, deixa pra lá.
- Vamos deixar uma coisa bem clara: eu ainda não decidi nada sobre a nossa vida! Não sei se a gente vai continuar juntos, se eu vou dar o troco, nada! Nada mesmo. Então, não venha se achar no direito de me cobrar nada depois daquela maldita recepção, ok?
- Tá, eu sei. Desculpa…
Olhei para ela e fiquei com pena de seu estado. Ela estava extremamente abatida e certamente já havia pensando que nosso casamento havia chegado ao fim, mas pareceu se animar ao saber que eu ainda estava disposto em tentar alguma forma de solução amigável com ela.
O final de semana transcorreu sem nenhuma outra novidade relevante. Conseguimos manter um clima de coleguismo entre a gente, mas nenhum dos dois tentou nenhuma aproximação mais íntima. A única exceção ocorreu durante um filme que decidimos assistir na Netflix no domingo à noite. Como de costume ajeitamos a sala para a nossa sessão de cinema, com refrigerante, cerveja e uma baita travessa de pipoca estourada na gordura de bacon fritos bem miudinhos. Sentei-me no meu canto de costume do sofá e ela no outro.
Depois de iniciado o filme e de termos aproveitado nossos comes e bebes durante a primeira parte do filme, recostei-me no meu canto, bebericando minha cerveja. Ela ficou meio perdida no sofá, porque era costume dela se deitar sobre o meu peito nesse momento. Achei que não haveria mal algum recebê-la e a chamei para ficar comigo. Ela, naturalmente, adorou minha iniciativa e aproveitou para fazer o que sempre fazia: deitar sobre o meu peito, abraçando-me a barriga e dormir. Sim, a Lucinha não conseguia terminar um único filme quando se deitava daquele jeito e aquele não seria diferente.
Terminado o filme e tendo eu me certificado que ela já dormia pesado, inclusive, babando sobre o meu peito. Dei um jeito de me levantar e a levei no colo para a cama da nossa suíte. Quanto a coloquei lá, ela acordou e me segurou o braço:
- Dorme junto comigo. Só dormir, igual dois amigos. Por favor… - Ela me pediu.
- Lucinha…
- Eu me comporto! - Interrompeu-me, implorando: - Por favor!
Acabei aceitando e ela, surpreendendo-me, se comportou muito bem mesmo. Adormeceu sorridente, virada para o meu lado e não fosse uma tendência que ela tem de ocupar três quartos da cama e que eu já conhecia bem, teria sido uma boa noite de sono.
Na manhã do dia seguinte acordamos logo cedo. Ela estava radiante pelo fato de eu ter aceitado voltar, pelo menos naquela noite, a dormir em nossa cama. Eu, por minha vez, tinha leve olheiras decorrentes da intensa movimentação de minha esposa sobre os lençóis. Ela desceu para arrumar nosso café e eu já desci com a calça vestida e abotoando a camisa social, intencionado em ir trabalhar. Lucinha estranhou minhas vestimentas e me lembrou de nossa sessão na terapeuta. Realmente eu havia esquecido. Liguei na corretora e abusei do meu “status” de celebridade instantânea para conseguir uma folga pela manhã para cuidar de assuntos pessoais. Assim que nos alimentamos, ela subiu para se arrumar e eu coloquei os utensílios, pratos, talheres e etc. na lavadora de louças. Subi para terminar de me arrumar e saímos para o endereço da clínica da tal terapeuta.
A clínica, bastante discreta, ficava instalada num dos melhores endereços do centro de nossa cidade. Anunciamo-nos num interfone e fomos autorizados a entrar, sendo recepcionados por uma atendente que nos encaminhou até uma sala de espera. Havia mais dois casais aguardando atendimento e a tensão era quase palpável naquele instante. Ninguém olhava para ninguém, provavelmente envergonhados de terem que se submeter a uma situação de ter que se abrir para uma terceira pessoa tentar intermediar um entendimento que deveria ser natural entre o casal. Procurei despistar minha atenção para os meus compromissos, revisando minha agenda de tarefas, mas nem tive tempo, porque logo fomos chamados para acompanhar uma atendente.
Andamos por um corredor até chegar numa porta ao seu final à direita. A atendente bateu duas vezes e uma voz pediu que entrasse. Ela abriu a porta e nos indicou a direção. Entramos. Sentada numa mesa uma senhora com seus cinquenta e poucos, talvez sessenta anos, nos aguardava e se levantou para nos receber: à Lucinha, com dois beijos na face e um abraço carinhoso; à mim, com o mesmo procedimento, diferente apenas que ela não me soltou completamente depois, segurando-me pela cintura:
- Queridos, sou a doutora Leila, mas podem me chamar apenas de Leila se preferirem. Acho esse pronomes de tratamento tão sisudos, dispensáveis, não é?
Conduziu-nos até um sofá de dois lugares, colocando-nos sentados um ao lado do outro e se sentou numa poltrona à nossa frente:
- Mas e então, por que acham que precisam da ajuda de uma terapeuta? - Perguntou, sorridente.
Nenhum dos dois abriu a boca. Naturalmente isso já era previsível e não abalou em nada o sorriso da terapeuta. Ela perguntou se gostaríamos de beber alguma coisa, um suco, água, café e a Lucinha aceitou uma água, enquanto eu recusei no momento. Ela passou a conversar assuntos amenos, aleatórios, nada que pudesse parecer com uma consulta, mas é certo que havia uma finalidade: destrancar nossas bocas. Comigo não deu certo, mas afetou a Lucinha que começou a falar, ainda que timidamente:
- Eu… É… Então… A gente está meio desconectado, doutora, Leila, doutora Leila.
- Só Leila, querida.
- Ok, ok, Leila então. É que aconteceu um negócio muito chato entre a gente e… - Ela se calou, claramente constrangida.
Eu a encarei, esperando que ela tivesse coragem de falar, mas ela se calou. A doutora Leila tentou retomar a iniciativa, mas direcionando-a para mim:
- Você não gostaria de participar, Gervásio, talvez completando a explicação que a sua esposa iniciou?
- Não! Acredito que, se alguém tem algo para falar aqui hoje, esse alguém seja ela. Prefiro que ela diga, em suas palavras, o que aconteceu. - Falei, recusando a abordagem.
- Não é fácil falar… - Lucinha resmungou e tomou um bom gole de sua água, sem encarar ninguém naquele momento: - Será que a gente pode ir embora?
- Embora!? Mas… Mas foi você quem quis vir aqui! - Falei numa entonação que demonstrava não ter gostado da proposta.
- Calma gente! Vamos ficar calmos, ok? Vamos fazer assim, eu vou falando o que acho que pode ter acontecido e vocês vão me confirmando ou corrigindo, ok?
Eu não respondi. Fiquei apenas olhando em direção à Lucinha, esperando que ela dissesse alguma coisa, mas ela também se calou. A doutora Leila começou:
- Eu suponho que o desentendimento de vocês tenha partido de algum cisma em sua intimidade. Estou correta?
Lucinha balançou a cabeça, confirmando:
- Um ex-namorado de Lucinha que tenha surgido do nada e balançado algum sentimento mal resolvido, talvez?
Lucinha negou com a cabeça. Leila continuou:
- Hummm… Se houve um problema na intimidade do casal e não envolveu um ex, então foi com alguém que você conheceu recentemente. Correto?
Lucinha confirmou com a cabeça e complementou:
- Foi num jantar de negócios…
- Ahhh… Um jantar de trabalho de sua empresa? - Perguntou Leila.
- Não. Foi numa recepção, um leilão. O Gê foi convidado, porque trabalha numa corretora e seria uma ótima oportunidade de aumentar sua rede de relacionamentos, e eu o acompanhei.
- Ok… - Disse Leila, anotando alguma coisa em um bloquinho e depois me encarando, talvez para ver se eu continuava tranquilo, dando sequência: - Alguém te paquerou nessa recepção e seu marido não gostou. Foi isso?
Lucinha colocou seu copo numa mesinha lateral e escondeu o rosto nas mãos, respirando profundamente uma, duas, três vezes. Depois, encarou a Leila e, com os olhos marejados, falou:
- Eu fiquei com um homem nessa recepção e acabamos transando, lá mesmo. - Ela falava como se tivesse uma brasa em sua língua: - E depois ainda pedi para o meu marido me deixar transar com ele novamente, o restante da noite, no quarto de hotel em nós estávamos hospedados. Foi isso!
Leila, mesmo profissional, precisou respirar fundo para não demonstrar uma imensa surpresa com aquela revelação bombástica. Ainda assim, não foi o suficiente para esconder uma leve mudança em seu semblante. Talvez ela não estivesse esperando uma confissão naquele momento, não na primeira sessão; eu próprio não acreditava nisso. Ela tomou a palavra:
- E como você se sente sabendo disso, Gervásio?
- Preciso responder? - Respondi com uma pergunta, claramente chateado.
- Não se trata de precisar, mas eu preciso entender como isso mexeu com os seus sentimentos, entende? Mesmo porque, se eu entendi direito, ela disse que depois pediu para você permitir que ela transasse com esse terceiro no quarto de vocês. Foi isso mesmo?
- Foi. - Respondi, secamente.
- E você concordou?
- Sim. A merda já tinha sido feita mesmo.
- Que maturidade impressionante, Gervásio. Meus parabéns! Eu acho que…
- Não, por favor! - Interrompi a terapeuta porque eu queria me explicar: - Não quero parabéns por isso! Eu tenho vergonha de mim mesmo por ter concordado com esse absurdo! Eu já havia sido traído, fiquei atordoado com tudo e não consegui raciocinar direito. Daí, eu… eu… é… Sei lá, eu acho que a decepção foi tão grande em saber a mulher que eu amava, em quem eu confiava a minha vida, havia me traído que nada mais me importava. Eu acho que… acho que não senti mais a Lucinha como a minha esposa, então, se ela queria dar para ele novamente que desse. Sei lá, eu só… acho que deixei de me importar.
Olhei para a Lucinha que não parava de olhar para suas mãos, esfregando-as ferozmente uma na outra entre as pernas e respirei fundo tomado por uma vontade imensa de xingá-la. Depois de alguns segundos em silêncio em que fiquei de olhos fechados para não perder a razão e partir para uma agressão, voltei a encarar a terapeuta e fui sincero:
- Quanto a resposta da sua primeira pergunta, senti ódio, muito, muito ódio, uma decepção enorme também que parece não querer passar e uma sensação de impotência... - Mas não consegui evitar uma finalização com um toque de sarcasmo: - Acho que não esqueci de nada… Ah, não, não! Também acho que nunca mais vou conseguir confiar nela. Aí eu te pergunto: continuar juntos para quê?
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