Olhei para a Lucinha que não parava de olhar para suas mãos, esfregando-as ferozmente uma na outra entre as pernas e respirei fundo tomado por uma vontade imensa de xingá-la. Depois de alguns segundos em silêncio em que fiquei de olhos fechados para não perder a razão e partir para uma agressão, voltei a encarar a terapeuta e fui sincero:
- Quanto a resposta da sua primeira pergunta, senti ódio, muito, muito ódio, uma decepção enorme também que parece não querer passar e uma sensação de impotência... - Mas não consegui evitar uma finalização com um toque de sarcasmo: - Acho que não esqueci de nada… Ah, não, não! Também acho que nunca mais vou conseguir confiar nela. Aí eu te pergunto: continuar juntos para quê?
(CONTINUANDO)
Lucinha começou a chorar imediatamente após essa minha resposta ácida, seca, mas era sincera e eu não consegui evitar o desabafo. Leila colocou um dedo sobre a própria boca e deve ter entendido naquele momento que o seu trabalho seria muito mais complicado do que havia imaginado inicialmente. Ela se levantou e pegou uma caixa de lenços de papel e a entregou para a Lucinha:
- Ok… Vamos ficar calmos. Eu já tenho agora um panorama inicial em minhas mãos e acho que, pelo que eu entendi, tenho condições de ajudar vocês a se reconectarem, mas…
- Não! Ele… Ele me deixou! Ele não me impediu em nenhum momento. - Falou a Lucinha, interrompendo-a: - Se ele não queria, porque simplesmente não veio até onde eu estava e me tirou de perto do Roger?
- Tirar você!? Você me devia fidelidade, Lucinha! Eu nunca te autorizei a ficar com ninguém. Você não tinha esse direi…
- Mas você podia ter me impedido. Podia sim! - Ela me interrompeu: - Por que você não disse que não concordava que eu ficasse com o Roger no restante da noite?
- Você já tinha me traído, Lucinha, que diferença uma trepada a mais iria fazer? O chifre eu já tinha levado.
- Caramba, amor, eu já te expliquei… Pensei que você estivesse de acordo por conta daquelas nossas fantasias.
- Que fantasias!? Aquelas de colocarmos um terceiro em nossas transas? Lembra o que aconteceu quando eu brinquei de colocar uma mulher? Você surtou, brigou, ficou quase uma semana sem conversar comigo. Depois disso, nunca mais brincamos…
- Mas é que… é que… eu… eu sabia que você gostava quando imaginávamos um terceiro. Daí… Daí surgiu o Roger, me cantando, galanteando, seduzindo e você só olhava sem reagir… Eu… Eu pensei que estivesse tudo certo, de acordo, até que você estivesse gostando da situação.
- Não! Pode parar! A gente nunca combinou nada sobre isso e depois daquele estresse que tivemos em nossa cama, nunca sequer voltamos a fantasiar. Como é que você pode imaginar que, de uma hora para a outra, eu iria permitir que você transasse com outro? Nem vem! Foi sim uma “filhadaputice” o que vocês, aliás, você fez comigo.
Os tons começaram a se elevar e a Leila entrou em campo:
- Gente, gente, por favor, parem agora! Não será com ataques que vocês irão resolver essa questão. Eu queria propor de a gente…
- Obrigado, doutora, mas acho que já ouvi e falei o suficiente. - A interrompi, me levantando do sofá: - Aliás, essa sessão foi muito esclarecedora para mim. Está na cara que a Lucinha ainda acha que está certa em ter feito o que fez e se ela se acha na razão, certamente não se arrependeu, porque o arrependimento tem que vir precedido de um erro.
- Gervásio, por favor, se acalme. Vamos conversar um pouco mais e… - Tentou interceder a Leila.
- Estou calmo! Estou estranhamente muito calmo. - A interrompi novamente: - Já sei o que preciso fazer e vou fazê-lo neste exato instante.
Lucinha me encarava com olhos arregalados e marejados. Dei meia volta e saí da sala, da clínica e fui diretamente para o meu carro. Saí dirigindo sem rumo e parei no primeiro shopping que encontrei. Assim que estacionei não aguentei tanta emoção acumulada e chorei. Enquanto isso, Lucinha me ligava e mandava mensagens insistentemente, mas a ignorei. Quando consegui me controlar, liguei para a primeira pessoa que me veio à mente:
- Alô!? - Um voz feminina e sedosa me atendeu.
- Fernanda?
- Uai! Claro que sou eu, Gervásio. Você ligou no meu celular, homem! - Disse e riu de uma forma acolhedora.
- Deixa eu confirmar uma coisa com você… O Mark, seu marido, ele é advogado, não é?
- Sim… Por que?
- Será que ele não cuidaria do meu divórcio?
- Gervásio…
- Por favor! - Eu a interrompi, sem querer ser grosseiro: - Eu pensei muito e acho que será a melhor solução.
Ela se calou por um instante, tempo em que eu só ouvia sua respiração. Pouco depois, voltou à chamada:
- Gervásio!
- Oi, Fernanda.
- O Mark vem amanhã para cá e ficará até sexta-feira. Parece que ele tem uma audiência e alguns outros compromissos. Eu posso tentar marcar para você um horário.
- Ah, eu agradeceria muito se você fizesse isso por mim… Obrigado.
Conversamos mais alguns detalhes do que havia acontecido e ela me orientou a dormir naquela noite em um hotel para evitar discussões ou eventuais agressões entre eu e a Lucinha. Achei prudente e assim fiz, depois de ligar na corretora e explicar para o meu patrão o que havia acontecido, aliás, ele foi bastante cordial e me deu o restante da semana para que eu resolvesse meus problemas pessoais.
Lucinha insistia em ligações e mensagens. Além disso, comecei a receber também mensagens de um número desconhecido que, ao ler, entendi serem da doutora Leila. Não respondi nenhuma das duas. Já início da noite, recebi uma ligação da Fernanda, confirmando que seu marido me atenderia, mas que precisaria de um lugar:
- Ué. Podemos utilizar o escritório do hotel em que estou hospedado.
- Ótimo, então! Podemos deixar marcado para às dezesseis horas de amanhã?
- Podemos sim, Fernanda.
- Maravilha! Então, me passa o endereço e amanhã chegamos aí por volta desse horário.
Passei o endereço e nos despedimos. Uma sensação de calmaria me abateu e, pela primeira vez em tempos, jantei e dormi cedo, sem preocupações me atrapalharem o sono.
No dia seguinte, segui descansando e colocando as ideias em ordem. Próximo ao horário combinado, Fernanda me ligou, avisando que já havia chegado e me aguardavam no saguão do hotel. Eu já havia me preparado e desci em minutos. Lá a encontrei, elegantemente trajada, tal qual uma executiva deve ser, bem como a um homem alto, careca e barbado, com cara de poucos amigos e vestido com um fino terno de alfaiataria. Aproximei-me meio sem jeito e cumprimentei Fernanda com um aperto de mão, mas ela me deu um cordial abraço e um beijo no rosto, apresentando-me a ele:
- Gervásio, este é o Mark, meu marido…
Ele a olhou com um semblante que deixava claro não concordar exatamente com o que ela havia dito, mas se virou para mim e estendeu sua mão, a qual peguei e recebi um aperto firme:
- É um prazer, Gervásio. Fernanda me falou que você está…
- Nanda! - Fernanda o interrompeu e ele a encarou, que confirmou: - Para você é Nanda! É um direito meu, conquistado a anos de companheirismo e cumplicidade.
Ele a olhou novamente e seu olhar agora parecia mais frio que um iceberg. Ele se virou novamente em minha direção:
- Fernanda… - Disse e a olhou que agora não disse nada, mas ficou levemente emburrada: - Fernanda me disse que você está querendo se divorciar…
- Sim! Acredito que seja o melhor. - O interrompi, sem querer, dada a ansiedade: - Me desculpe é que… Ah, desculpa.
- Está tudo bem. - Ele me acalmou e perguntou: - Há algum lugar onde possamos conversar a sós?
- Ah! Sim, sim… Já reservei um escritório para a gente. Por favor, me acompanhem.
Eles me seguiram em silêncio até o balcão de atendimento do hotel e de lá fomos encaminhados até um corredor que dava para vários escritórios básicos, mas bastante funcionais. Quando estávamos para entrar, o Mark se adiantou:
- Fernanda, quero conversar com ele a sós.
- Mas o que que tem eu ficar aqui? Eu sou amiga dele e conheço toda a história…
- Não. - Ele insistiu.
- Mark, por mim, não há problemas. A Fernanda já está mesmo ciente de tudo ou quase tudo, creio eu.
- Ainda assim minha resposta é não, Gervásio. É uma questão de procedimento ético-profissional.
- Poxa, mor! - Fernanda resmungou, insistindo novamente.
- Fernanda, eu fico dando palpites no seu trabalho, ou forma de trabalhar, ou se deve ou não participar de alguma reunião?
- Não, uai! Nem poderia…
- Isso! - Ela a interrompeu: - Você tem o seu procedimento profissional e eu tenho o meu. Quero conversar com ele a sós.
Fernanda olhou para mim e eu para ela, mas se era a forma dele trabalhar, não havia nada a fazer a não ser concordar. Ela saiu do escritório e arrematou:
- Tá bom! Vou esperar no saguão, seu chato.
Ela virou-se então e saiu caminhando, na verdade pisando alto, brava por ter sido enfrentada. Acabamos nos perdendo na visão dela caminhando. Ok, eu encarava aquela bela e redondinha bunda bailando para lá e para cá. Só me dei conta do excesso quando o Mark voltou a falar:
- Ela vai sobreviver. Agora, será que podemos entrar?
- Ah, sim, claro! - Disse e abri a porta do escritório, dando passagem para ele.
Assim que nos sentamos, ele abriu uma pasta executiva e retirou um bloco de notas, passando a me inquirir:
- Fernanda me adiantou que seria um divórcio…
- Isso! Divórcio. Você poderia cuidar do processo para mim?
- É possível, Santos, mas primeiro eu preciso saber tudo o que está acontecendo para você ter tomado uma decisão dessas. Entenda, o conhecimento de tudo é o que me deixa preparado para enfrentar qualquer alegação futura, está entendendo?
- Não, sim, claro… - Resmunguei, tomando coragem e decidi ser o mais objetivo possível: - Eu… Eu fui traído, simples assim, e antes que me pergunte, não tem volta. Eu quero me separar ou divorciar, sei lá. Só não quero mais ficar com ela.
- Tá! Ok… O que foi que aconteceu exatamente? Explica direito essa história para mim, afinal, traição é motivo para isentá-lo de eventual direito de pensionamento a favor dela. Aliás, qual o nome dela mesmo?
- É Lú, Lucinha, digo, Lúcia Helena Santos.
Respirei fundo e resumi a história, omitindo os nomes de Roger e Alícia, também não explicando que tinha sido na recepção que me rendeu altos contatos e contratos. Ele ouviu tudo de uma forma imparcial e profissional, apenas fazendo pequenas intervenções para colher algum detalhe que entendesse ser importante. Apesar disso, ele próprio não parecia acreditar no que havia acontecido e, sinceramente, se eu também não tivesse presenciado, teria a mesma dificuldade. Ao final de meu relato, ele só conseguiu soltar um:
- Nu!
- Pois é. Pode cuidar do processo?
- Vamos com calma… Com quem ela ficou?
- Preciso mesmo dizer o nome?
- Sim, porque se eu eventualmente estiver advogando para ele, não poderei assumir a sua causa, mas, nesse caso, fique tranquilo, tudo o que está sendo dito aqui ficará no mais completo e seguro sigilo.
Respirei fundo e falei sem pensar para não me arrepender:
- Roger! Roger Ferraz é o nome do filho da puta!
- Entendi…
- É esse filho da puta aqui, ó. - Falei e mostrei a capa de uma revista de fofocas sociais que, coincidentemente, estava sobre a mesa.
- Hã! - Resmungou Mark, sem perder o profissionalismo, mas entendendo que poderia estar mexendo num vespeiro: - Eu preciso te perguntar uma coisa e quero que você me responda com toda a sinceridade, ok? Você tem mesmo certeza que quer isso?
- Claro que eu tenho! Hoje, fomos em uma psicóloga, terapeuta de casais, e a Lucinha, pela forma que falou, ainda acha que não fez nada de errado. Só que na conversa que tive com a Fernanda, ela me explicou que o errado foi ela, não eu. Então, quando duas pessoas acham que estão certas e suas razões são diametralmente conflitantes, o melhor a fazer é cada um viver a sua verdade sozinho.
- É… A Fernanda me comentou, bem por cima, sem entrar nos detalhes, sobre a conversa que tiveram. Olha, meu caro, eu lamento que a sua primeira experiência com o mundo liberal tenha sido dessa maneira. Realmente não foi nada justo o que fizeram com você.
- E não é!?
- Sim! Você está coberto de razão de querer resolver a situação, mas… - Ele disse e fez uma pausa dramática, sem tirar o olho de mim: - Mas, assim como o casamento é uma decisão que tomamos pensando ser para a vida toda, o divórcio também é. Por isso, eu queria que você refletisse bastante antes de decidir.
- Tô te falando, Mark, digo, doutor Mark, eu quero o divórcio!
- Não precisa me chamar de doutor, pode ficar à vontade. - Ele disse e começou a bater a caneta sobre seu bloco, desviando o olhar de mim por alguns segundos: - Você ama a sua esposa, não é? Eu vejo em seus olhos…
- Amo, muito mesmo, mas não foi o suficiente.
- Nem sempre é, Gervásio, nem sempre é… Veja o meu caso com a Fernanda, chega a fazer um paralelo com o seu.
- É… Ela me contou assim… por cima também… que vocês não estão bem.
- Nada bem, mas também não estamos de todo ruim. Por isso, estou te falando sobre a necessidade de refletir bastante, afinal, é um processo, é desgastante, é custoso e, no final, criará uma solução artificial para algo que vocês dois, como casal, deveriam ter resolvido juntos.
- Você acha que eu deveria perdoá-la?
- Perdoá-la!? Sim, sem dúvida alguma! Perdoar é algo que te fará mais bem que a ela própria, porque irá aliviar o seu coração do fardo que a mágoa acarreta. Entretanto, o perdão não necessariamente impõe que você continue convivendo com ela se você não conseguir enxergar objetivos em comum, ou se não tiverem mais cumplicidade, ou pior ainda inexistir honestidade entre vocês.
- Esse é o problema! Eu não sei se consigo…
- Aham… - Ele resmungou, olhando para mim: - Já tentaram terapia?
- Acredita que fomos ontem? Só que eu, sei lá, não gostei da forma como a terapeuta abordou a nossa situação. Achei ela simplista demais para um assunto tão delicado…
Ele ficou me olhando, pensativo por um instante e depois sorriu de uma forma bastante amigável:
- Eu vou te propor uma coisa, veja se te interessa. Eu e a Nanda já tivemos vários altos e baixos. Agora estamos num de baixo terrível, quase subsolar… Mas já tivemos ajuda de um terapeuta muito bom e que talvez possa também te ajudar a pensar. Você gostaria que eu ligasse para ele e pedisse para ele te atender, mesmo à distância?
Fiquei surpreso e até assustado com sua proposta, aliás, ver um advogado praticamente recusar dinheiro para ajudar duas pessoas era coisa nova em minha forma de ver as coisas:
- Olha, Mark, eu não sei…
- O que te custa tentar? O doutor Galeano é uma pessoa espetacular e se ele não puder ajudar vocês a se entenderem, ninguém mais poderá.
OS NOMES UTILIZADOS NESTE CONTO E OS FATOS MENCIONADOS SÃO FICTÍCIOS E EVENTUAIS SEMELHANÇAS COM A VIDA REAL É MERA COINCIDÊNCIA.
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