Apesar dele ser muito hábil com as palavras, a verdade é que a traição da Lucinha havia começado muito antes da recepção e minha confiança nela que já andava muitíssimo abalada, agora praticamente inexistia. Não sei quanto tempo ficamos ali, mas ele respeitou meu silêncio e ficou ao meu lado em todo o instante. Depois de um tempo e boas doses de uísque, falei em alto e bom som:
- Vamos resolver isso de vez. Eu quero o divórcio. Resolva para mim, doutor.
(CONTINUANDO)
O Mark me olhou por um instante, tentando analisar minhas reações, mas fez uma expressão que pude compreender como de concordância com minha decisão. Ainda assim ele me alertou:
- Acha mesmo que eu vou aceitar uma decisão sua tomada agora, assim, após uma boa bebedeira!?
- Ué, anota aí! Amanhã vou te ligar e fazer o mesmo pedido. Pode acreditar.
- Tá… - Mark calou-se por um instante novamente, encarando-me e depois ponderou: - Tudo bem. Posso cuidar do processo. Mas, apesar de não ser o melhor momento, eu queria te fazer uma consideração que talvez te deixe desconcertado. Isso depois de uma pergunta…
Não entendi o que ele pretendia e fui sincero:
- Não estou entendendo.
- É o seguinte… Lucinha… Como é a Lucinha, Gervásio?
- Porra! A Lucinha é… Ela é do jeito que é, ué! Não estou entendendo o porquê da pergunta.
- Esse é o problema... - Ele resmungou antes de tomar mais um generoso gole de seu uísque: - Notei que ela parece ser bastante sugestionável e um pouco impulsiva, fazendo coisas sem talvez pensar nas consequências.
- É. Impulsiva eu até concordo, ela sempre foi meio atiradinha mesmo. - Resmunguei e também tomei mais um gole do meu próprio uísque, concordando com ele na sequência: - Sugestionável, eu até não sabia, mas depois dela ter se deixado enrolar por aqueles dois, também não posso negar, se bem que acho que ela pode ter feito por querer também, né? Mas o que isso tem a ver?
- Eu sei que você não quer o mal dela e tenho medo que ela possa fazer algo contra ela própria.
- Será?
- Não sei, por isso te perguntei como ela é. - Ele contemporizou, balançando seu copo de uísque: - Você se incomodaria de ainda insistir na ideia da terapia? Não para vocês se reconciliarem, não é essa a minha intenção, mas para que o doutor Galeano possa prepará-la para o que está por vir.
- Porra, Mark!... - Resmunguei, claramente contrariado.
- Entenda, não vou te abandonar, mas acho que seria bom o doutor Galeano participar desse momento. Talvez até não seria uma terapia de casal, vamos dizer assim, mas uma terapia para colocá-la a par de tudo o que aconteceu e do que acontecerá.
Aquilo me pegou de surpresa, mas o ponto de vista dele não era errado novamente. Ele apenas queria evitar surpresas desagradáveis, inclusive para mim mesmo. Acabei concordando:
- Tudo bem. Eu até aceito desde que eu não precise participar das sessões com ela, pelo menos não de todas e eu queria deixar isso bem claro para o terapeuta logo no início.
- Façamos o seguinte, então: amanhã eu ligarei para o doutor Galeano e darei um resumo de tudo o que descobrimos hoje. Daí coloco você na linha e você explica a sua decisão e a forma como pretende participar.
- Concordo.
- Então, meu caro, brindemos aos recomeços e que vocês possam ser felizes. Essa é a única coisa que posso desejar a vocês.
Brindamos, mesmo eu não entendendo se devia comemorar alguma coisa e tomamos mais umas duas ou três doses, pelo menos que eu consegui contar. Acho que errei nas contas. Resultado: apaguei e acordei somente no dia seguinte, dormindo num sofá de hotel do quarto do Mark. Ele já estava acordado, sentado à uma mesa, lendo um livro e quando notou que eu também despertara, não perdeu a oportunidade:
- Bom dia, luz do dia! Está melhor?
- Cara, o que aconteceu?
- O que aconteceu!? - Ele falou e deu uma gostosa e debochada risada: - Você quer saber a versão sem cortes ou posso resumir?
- Ah… Estou até com medo do que aconteceu… Aliás, como é que eu vim parar aqui.
- Cê queria que eu fizesse o quê, te deixasse dormir na rua? Eu que te trouxe, caraio! Aliás, cê tá me devendo “milão”, porque eu tive que subornar um funcionário do hotel para ele fazer de conta que não te viu subindo de gatinho para o meu quarto.
- De gatinho!?
- De quatro, se você preferir.
- Porra, Mark, o que foi que aconteceu.
Ele me encarou, mas não resistiu a alguma lembrança, dando uma nova gargalhada ainda mais sarcástica que a primeira. Quando se recuperou, convidou-me para tomar um café da manhã, o que acabei aceitando. Lavei o rosto, ajeitei a roupa e fomos para o restaurante do hotel. Lá, ele estava cheio de risadinhas enquanto nos servíamos no “buffet” e eu já temia ter dado um baita vexame. Quando nos sentamos à mesa, ele foi direto:
- Ó… Acho que ninguém filmou.
- Caralho, cara, o que foi que eu fiz?
Ele riu alto novamente, chamando a atenção de várias pessoas e depois de se desculpar começou a me contar uma sucessão de eventos que eu esperava piamente não tivesse sido filmada.
Depois de beber uma boa quantidade de uísque, ele disse que eu comecei a chorar na mesa, lamentando a minha vida e xingando a Lucinha. Ele disse ter tentado me controlar, mas não conseguia. Pediu uma água para um garçom, mas assim que chegou, peguei a garrafinha e praticamente joguei em todos ao meu redor, batendo-a na minha testa, tentando quebrar um chifre que eu jurava que estava crescendo ali:
- Eu não fiz isso! - Falei, inconformado.
Ele deu um sorriso e tirou o celular do bolso, mostrando uma foto que ilustrava bem o que havia acabado de comentar. Nervoso, peguei seu celular em minhas mãos e comecei a olhar as fotos que ele tinha da sequência e me assustei, pois era uma pior que a outra. Quando vi a última, em que eu estava abraçados aos pés do garçom, chorando feito uma criança, voltei a encará-lo:
- Posso continuar? - Ele me perguntou.
- Nem precisa. Me queimei feio, né?
- Até que não. Quando o seu show começou, havia uns cinco ou seis caras lá e depois que ouviram sua explicação. - Fez o sinal de chifre com os dedos para mim: - Entenderam e relevaram. Até mesmo o gerente do local disse que deixaria essa passar por conta do motivo.
- Puta que pariu… - Gemi, lamentando com a cabeça meu papelão.
- Relaxa, Gervásio, isso não foi nada. - Falou e sorriu novamente: - Pior foi no Uber quando você vomitou. Ah, você me deve mais “quinhentão” pela lavagem do carro do rapaz lá também, ok?
Eu havia visto realmente uma foto deprimente de mim em meio a uma sujeirada e não questionei. Terminamos de tomar nosso café e já transferi o dinheiro para ele sem sequer pedir qualquer comprovante com um “plus” inclusive, afinal, ele havia sido um baita parceiro, resolvendo minhas lambanças. Quando já nos levantávamos ele perguntou:
- Lembra de alguma coisa de ontem?
- Lembro sim e quero mesmo o divórcio.
- Então, vou ligar para o doutor Galeano e explicar o que descobrimos, daí você se acerta com ele.
Subimos novamente ao seu quarto e ele ligou imediatamente, mas não foi atendido, apenas recebendo uma mensagem que indicava que o terapeuta estaria em consulta, mas retornaria em minutos. Ficamos conversando e dito e feito, coisa de não mais que trinta minutos depois, seu celular tocou: era o terapeuta. Mark o atendeu e explicou toda a situação, em especial os detalhes da confissão da Lucinha, terminando por esclarecer que eu havia decidido pelo divórcio, mas que estávamos temerosos pelo que ela poderia fazer. Eu estava absorto em pensamentos, quando ele me passou o celular:
- Bom dia, Gervásio.
- Bom dia, doutor. É… qual o seu nome mesmo?
- Galeano, meu caro. O Mark me explicou a situação vivida por vocês ontem.
- Ah sim! Eu estava aqui ao lado e ouvi tudo.
- Então, você se decidiu mesmo pelo divórcio?
- E tem como ser diferente, doutor? O que aparentava ser algo de momento, surgido e terminado naquela maldita recepção, era algo que já vinha de tempos. Ela premeditou tudo pelas minhas costas e contra mim. Não dá para aceitar isso.
Ele se calou por um instante e respirou profundamente, retornando à chamada:
- É… Olha… Poder, pode ser diferente, basta os dois quererem e se quiserem, eu posso ajudá-los…
Decidi interrompê-lo, porque se antes eu ainda tinha alguma dúvida, agora já não tinha mais:
- Não, doutor, eu agradeço, mas não quero mais insistir nesse relacionamento. Não mesmo…
- Ok, ok… - Ele resmungou, consternado, mas aparentemente consciente: - Vejam bem, como a sua decisão muda o rumo do que eu pretendia para vocês, um atendimento presencial seria o mais prudente e talvez tenha que ser contínuo por um período, pelo menos para ela.
- Entendo…
- Seria possível vocês virem até minha clínica para eu conversar com os dois, naturalmente muito mais com a Lucia Helena?
- Doutor, não a chame assim, ela não gosta. Chame-a apenas de Lucinha.
- Ok, ok… Mais uma que não gosta de nome composto. - Ele resmungou, rindo baixinho: - E conseguiriam vir?
- Bem, doutor, não moramos perto de sua cidade. Acho até que conseguimos ir na primeira ou talvez primeiras sessões, mas depois tudo ficaria muito complicado.
- Então, façamos o seguinte: venham e eu os atenderei, tentando conduzir a situação de modo que ela compreenda e aceite esse “fim”. Se eu notar algum risco relacionado à ela, indicarei um colega da capital para prosseguir com a terapia, pode ser?
- Para mim, seria o ideal, doutor.
- Maravilha, então. Mark lhe passará o endereço da minha clínica e… - Calou-se por um instante: - Ah, tive outra ideia! Será que você poderia me passar para ele, Gervásio, ou colocar a chamada em Viva Voz?
- Claro! - Concordei e ativei a chamada em Viva Voz, chamando a atenção do Mark: - O senhor agora está falando com ambos, doutor.
- Mark, quando você retorna para nossa região?
- Uai, doutor, eu já deveria ter retornado, fiquei apenas para atender o seu pedido. Então, se tudo estiver bem por aqui, volto amanhã. - Ele respondeu.
- Para evitarmos uma situação de crise, você não poderia voltar de manhã e trazer o casal com você?
- Posso, uai. O desvio seria mínimo no meu percurso.
- Faça isso então, meu amigo, e os traga amanhã. Reservarei o meu dia para atendê-los e tentar resolver tudo num único dia.
- Amanhã… De manhã, o senhor quer dizer? De manhãzinha mesmo?
- Nove horas está bom para você?
Mark se calou fazendo um rápido cálculo mental e respondeu:
- Uai, por mim, está tudo bem. Precisamos só confirmar com a Lucinha se ela estará disposta em ir.
- Converse com a Fernanda, ela poderá ajudá-los a convencê-la, caso ela se mostre reticente.
Conversamos mais alguns assuntos relacionados à forma como ele pretendia agir e depois que ele nos explicou, despedimo-nos e desligamos. A pedido dele, engoli meu orgulho uma vez mais e fomos até a minha antiga casa. Quem nos atendeu foi a Fernanda com cara de poucos amigos. Mark sacou que algo havia acontecido, mas ela apenas disse que falaria depois, mas não desviou o olhar, claramente tenso, dele. Decidi deixá-los a sós e tentar conversar com a Lucinha, explicando sobre a ida ao terapeuta. Quando perguntei à Fernanda onde ela estava, a resposta veio fria:
- No quarto. Já está lá há algum tempo.
Fui até lá e tentei abrir a porta, trancada. Chamei a Lucinha que pareceu se despedir de alguém e veio correndo me atender. Abriu a porta e me abraçou apertado. Não a recusei para não piorar o que já estava horrível, mas também não retribuí com afeto, apenas deixei rolar. Depois, fomos ambos para dentro do quarto e expliquei a sugestão do terapeuta para nos ver pessoalmente e que, se ela estivesse disposta, o Mark nos levaria:
- Ué, mas não dá para fazer essa terapia à distância.
- Ele prefere nos conhecer pessoalmente e decidir a melhor forma de conduzir os trabalhos.
- Mas amanhã de manhã?
- É a única coisa ruim! Ele pediu que o Mark nos levasse.
Ela fez uma expressão que deixava estampada a dúvida em sua face, certamente duvidando de que seria uma terapia a seu favor, mas sem saída, aceitou. Voltamos à sala, onde o casal parecia já ter conversado sobre o que incomodava Fernanda e as novidades pareciam ser nada boas, porque o semblante do Mark havia mudado consideravelmente. Expliquei que Lucinha havia concordado e decidi dormir ali com ela para evitar uma desistência de última hora. Tentei conversar com ele, mas ele disse que falávamos depois e marcamos de nos encontrar ali em casa por volta das cinco horas do dia seguinte. Despedimo-nos e eles se foram.
Eu não tinha muito assunto com a Lucinha e apesar dela tentar conversar, esquivei-me como um esgrimista medalhista olímpico. Após jantarmos, arrumei a desculpa ideal de termos que madrugar e fomos nos deitar mais cedo, cada um em um quarto diferente. Dormi muito pouco, quase nada, talvez uma ou duas horas. Não sei se era a tensão, mas surpresas, das piores possíveis, me aguardavam.
OS NOMES UTILIZADOS NESTE CONTO E OS FATOS MENCIONADOS SÃO FICTÍCIOS E EVENTUAIS SEMELHANÇAS COM A VIDA REAL É MERA COINCIDÊNCIA.
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