Assim que meu chefe repousou seu celular sobre sua mesa, me encarou, consternado e resumiu sua conversa com o Roger. Na verdade, apenas os piores momentos, culminando num pedido:
- Por favor, eu preciso que você converse e se acerte com sua esposa. Ele insiste que foi só um mal entendido e que não acha justo você a abandonar.
- Eu fui traído, corno, chifrado covardemente. Não tem mal entendido algum, a própria Lucinha me confessou isso.
- Eu sei. Eu acredito em você, mas… É o seguinte: ou você se acerta com ela e ele continua conosco, gerando renda para nós e para você principalmente, ou ele vai tirar seus recursos daqui e o pior, vai convencer vários amigos a fazerem o mesmo, ou… - Ele se calou e suspirou fundo, tentando ocultar a vergonha de si próprio: - Vou ser obrigado a te demitir, Gervásio, para manter esses recursos na corretora.
(CONTINUANDO)
Ao mesmo tempo em que fiquei estupefato, eu entendia sua situação, era uma decisão administrativa controversa, mas lógica. Ele não estava pensando em facilitar ou prejudicar um elemento, tentava apenas garantir o ganha pão de todos, em especial o dele próprio, é claro:
- Foi o Roger quem pediu isso?
Ele não me respondeu, mas a forma como mordeu os lábios respondia por si só. Eu decidi me adiantar:
- Fica tranquilo, chefe. Não precisará se preocupar com nada. Eu me demito.
Levantei-me no ato e a surpresa ficou estampada em seu rosto:
- Se demitir? Se demitir é o caralho! Senta aí, porra! Pensa um pouco, homem, foi só um cifre. - Disse e tirou um calhamaço de dinheiro de uma de suas gavetas, jogando-o na minha direção: - Tó! Pega essa merda aí e vai comer uma biscate. Eu tô pagando. Não, faz melhor: come duas, três, sei lá. Compra um Viagra, toma dois com uma dose de uísque e senta a vara nas vadias. Rala o pau nelas. Enfeita a testa, a orelha, a cabeça, o cu da sua mulher, mas não faz uma merda dessa com a sua vida.
Por mais que eu gostasse de dinheiro e me visse tentado a devolver o chifre para a Lucinha, as palavras da Fernanda, naquele nosso encontro no shopping, ainda estavam frescas na minha memória: “Uai! Se essa for mesma a sua decisão, traia a sua esposa! Esfregue uma amante na cara dela, mande fotos do seu pau babando numa bucetona alheia, talvez um vídeo da safada se esgoelando para humilhar um pouco mais a sua esposa… Quem sabe isso não resolve todos os seus problemas, não é? Acho até que vai melhorar muito o seu relacionamento.” Eu não sairia de um relacionamento como o errado:
- Agradeço, mas não. Amanhã mesmo entrego a minha carta de demissão, chefe. Agradeço pelo período e pelo aprendizado, mas parto para a próxima.
Ele ainda tentou outros argumentos, mas eu o ignorei, saindo pela porta de sua sala. Fui direto para o hotel em que estava hospedado, chateado, não! Arrasado… Sim, essa é a melhor definição. Minha frustração era tanta que comecei a chorar e cheguei a cogitar me jogar da janela do meu quarto no sétimo andar, das quedas que sofri na vida, seria a última. Naturalmente me faltava a coragem e decidi adquiri-la através de algumas garrafinhas de uísque do frigobar. Não me suicidei, mas dormi como um anjo ardendo nas profundezas do inferno.
Acordei de madrugada com uma dor de cabeça infernal e bebi duas garrafas de água de uma vez, só para devolver tudo minutos depois no vaso sanitário do meu quarto. Não dormi mais, apenas “zumbizei” durante a madrugada toda. De manhã, ainda perdido, decidi ligar para a Fernanda, talvez ela pudesse me dar alguma ideia de como agir. Ela me atendeu com a voz meio sonolenta, mas fez questão de ouvir tudo o que eu dizia, segundo ela, enquanto tomava seu café:
- Acho que fez o correto, Gervásio. Pelo menos, agora, ele não poderá fazer mais nada contra você.
- Espero que não. Eu só não entendo o porquê disso tudo, essa, sei lá, fixação com a Lucinha? Porra, o cara parece que não vai sossegar até me destruir.
- É… - Ela resmungou de uma forma estranha.
- Está tudo bem, Fernanda? Achei esse seu “é” meio estranho…
Ela respirou profundamente do outro lado da chamada e falou:
- Olha, Gervásio, eu torcia para que vocês se acertassem. Juro mesmo. Aliás, torcia até aquele maldito jantar na sua casa, porque depois eu já comecei a mudar de opinião…
- Ah é! Aquela sujeirada que ela confessou te abalou também, né? - A interrompi.
- É, mas ainda tem mais uma coisa.
- Coisa? Que coisa?
Ela voltou a respirar profundamente, mas seguir sua explicação:
- Depois que você e o Mark saíram eu fiquei lá com ela. Acalmei, conversei, expliquei o meu ponto de vista, mas em momento algum eu a desanimei. Isso eu não fiz. Fomos dormir já passava da meia noite e até aí eu imaginava que ela teria entendido o que eu havia explicado e talvez estivesse disposta a te procurar e mostrar que estivesse realmente arrependida, sei lá…
- Sei… Mas ainda não estou entendendo…
- É, pois é… - Ela resmungou, pigarreou e voltou a explicar: - No dia seguinte, após acordarmos e tomarmos nosso café, devia ser umas oito e pouco, ela recebeu uma visita, de uma tal de Alícia…
- A Alícia, do Roger? - A interrompi novamente.
- É um nome incomum, então eu me liguei imediatamente que seria ela. Fui apresentada, começamos a conversar sobre a situação de vocês e notei que a tal Alícia sempre tentava convencê-la de que ela não estava totalmente errada. Sabe aquele papo que você mesmo chegou a me falar de que você também tinha culpa? Então, meio isso… - Ela tomou um ar e pelo som, acho que um gole de café, antes de continuar: - Como eu comecei a me bater contra, afinal, eu também sou do meio, e passei a defender a honestidade, transparência e cumplicidade do casal acima de tudo, a tal Alícia começou a demonstrar desconforto e foi aí que a Lucinha me pediu licença e foi conversar com ela a sós no quarto.
- Filha da puta! É por isso que você estava com aquela cara quando a gente chegou?
- Sim. Só continuando… Depois de, sei lá, meia hora, elas voltaram, conversaram mais um pouco comigo e logo a Alícia se despediu e foi embora.
- Fernanda, você, assim, não teria, por um acaso, escutado o que elas conversaram, teria?
- Claro que não, né, Gervásio, e eu sou lá mulher de ficar ouvindo atrás de porta!? - Resmungou: - A Lucinha foi acompanhar a Alícia até a porta e nesse momento o celular dela tocou. Como estava na mesinha de centro, eu vi quem ligava, era um tal de Roger.
- Ah tá… O filho da puta mor…
- É. Logo, a Lucinha voltou e notou que eu tinha visto. Ela olhou para o aparelho e para mim, pegou o aparelho, me pediu desculpas e foi atendê-lo fechada no seu quarto, e lá ficou um tempão, acho que até mais do que ficou com a tal Alícia. Só saiu de lá depois que vocês chegaram.
Suspirei fundo e conclui:
- É, Fernanda… É por isso que não dá para continuar. A Lucinha só faz merda pelas minhas costas.
Um silêncio surgiu entre nós, afinal, parecia que até mesmo ela já não acreditava na possibilidade de reconciliação, algo pelo que, aparentemente, ela torcia. Antes que eu pudesse me despedir, ela me avisou que assim que o Mark chegasse, ela o atualizaria e pediria para me ligar:
- Agora eu tenho certeza de que você precisará de um bom advogado. - Falou.
- Vou mesmo!
Desligamos e eu me joguei na cama, ainda aturdido e como estava muito cansado, apaguei pouco depois. Acordei com o meu celular tocando, já passava pouco de uma da tarde e um calafrio me percorreu a espinha, porém, no visor, identifiquei o número da Fernanda. Atendi, mas quem estava do outro lado era o Mark. Conversamos brevemente e ele me orientou a como proceder no meu pedido de demissão, inclusive, enviando-me um modelo de Carta de Demissão via WhatsApp na sequência.
Desci e fui até uma padaria próxima, onde comi um lanche, pois ainda estava sem almoço. Enquanto comia uma mágoa tão grande da Lucinha me abateu que não consegui me segurar e liguei para ela. Ela me atendeu no segundo toque e pelo tom de sua voz, estava surpresa com minha ligação:
- Gê!? Amor, que surpresa maravilhosa!
- Para mim também… - Resmunguei, tentando não explodir, mas não consegui evitar o tom ácido: - Ontem fui surpreendido com uma maldita reunião na corretora. O seu Roger, aquele filho da puta, ameaçou tirar seus recursos de lá se eu não continuasse com você, ou então eu teria que ser demitido para ele continuar lá. Já dá para você imaginar o que aconteceu, né?
Ela se calou e eu, querendo uma discussão, insisti:
- Ouviu o que eu falei, Lúcia Helena!? A porra do teu amante me fodeu direitinho! Acabou com o meu casamento e agora com o meu trabalho também.
De repente, comecei a ouvir lamúrias dela de que nunca quis causar nenhum mal para mim e tive a impressão dela ter falado com alguém, irada, cobrando algo. De repente, e não poderia ser diferente, uma voz conhecida falou comigo:
- Gervásio, querido, sou eu.
- Alícia!?
- Sim, querido. Estou aqui dando um amparo para a Lucinha nesse momento e, eu te juro, não estou sabendo de nada a esse respeito. Inclusive, vou ligar agorinha mesmo para o Roger e exigir que ele cancele essa ameaça covarde junto ao seu patrão. Te peço desculpas por isso e pelo que causamos ao seu casamento, querido.
Eu não sabia o que falar, mas sabia que dificilmente continuaria na corretora, afinal, meu patrão deixou bem claro nas entrelinhas que o material humano era descartável quando o interesse financeiro estivesse em jogo. Antes que eu dissesse algo, ela falou:
- Querido, Gervásio… Não há mesmo nenhuma forma de eu te ajudar a se reconciliar com a Lucinha? Eu, ouça bem, não quero sequer envolver o Roger… Eu que estou pedindo e oferecendo ajuda para vocês. Me sinto responsável pelo que aconteceu e me dói vê-los terminarem por algo que nós começamos.
- Eu… Eu preciso pensar, Alícia, mas, a princípio, minha decisão já está tomada. Não consigo mais confiar na Lucinha depois de tudo o que aconteceu. Não foi somente o sexo, lógico, que ele foi o cúmulo, mas tudo começou muito antes.
- Gervásio, venha conversar conosco, por favor. Somente você, eu e Lucinha. É um pedido meu, por favor.
Tentado a aceitar, afinal, minha vida está indo ralo abaixo, todos os sonhos, conquistas, metas, tudo, estava se desfazendo, decidi fazer o impensável e recusei:
- Eu agradeço, mas não dá mais. Eu vou… Eu… Sei lá… - Disse e encerrei a chamada.
Eu estava quase chorando de raiva de tudo e todos, inclusive de mim mesmo por não ter sido homem naquela maldita recepção e feito um escândalo. Entretanto, mesmo que eu fizesse, de nada adiantaria, porque a traição já estava instalada em minha casa. Talvez amenizasse os efeitos, mas, mais cedo ou mais tarde, ela iria concretizar aquilo que já havia começado, com ele ou com outro, na minha presença ou não. Decidi tocar o foda-se e começar tudo de novo, do zero se preciso, mas sozinho.
Voltei ao meu quarto e preenchi a Carta de Demissão que o Mark havia me enviado. Liguei para o meu patrão e marquei uma reunião para às dez horas da manhã do dia seguinte. Infelizmente, Mark não poderia me acompanhar, mas disse que pediria para uma colega de profissão de sua confiança me acompanhar. Realmente, uma hora depois, uma advogada me ligou, confirmando que me acompanharia no dia seguinte e combinamos de nos encontrar na entrada da corretora, quinze minutos antes da reunião.
Foi um final de dia horrível e a noite, mais ainda. Dormi muito pouco, com o sono entrecortado por pesadelos dos mais variados. Comecei a pensar que talvez eu precisaria dos préstimos do doutor Galeano com mais frequência, porque parecia que eu estava literalmente com o meu psicológico abalado.
No dia seguinte, me arrumei da melhor forma possível e no horário combinado fui para a corretora. Uma loira lindíssima me aguardava na entrada e assim que me aproximei e me apresentei, ela fez o mesmo: Denise, doutora Denise. Fiquei até feliz que o Mark não pudesse ter vindo, afinal, a companhia daquela mulher estonteante até me animou deveras.
Entramos no prédio e subimos até a corretora. Meu patrão já me aguardava, mas a secretária não aguardava que eu estivesse acompanhado e inclusive tentou barrá-la, mas ela foi bastante polida e muito convincente:
- Meu cliente não entra sem a minha presença. - Ela disse no alto daqueles “scarpin” pretos e brilhantes.
A secretária interfonou e explicou a situação. Depois de breves segundos, fomos autorizados a entrar. A surpresa ficou estampada na minha cara assim que entramos porque, sentados à frente da mesa do meu patrão, estavam o Roger e o Ricardo. Estranhamente, a doutora Denise também ficou surpresa ao vê-los, mas soube se recuperar rapidamente, indagando-me:
- Eles fazem parte da corretora?
- Não. São apenas clientes. Inclusive, o Roger foi o estopim de todo o meu problema.
- Tá. Deixa comigo.
Ela se dirigiu então à mesa e eles se levantaram, cumprimentando-a, primeiro meu chefe, depois o Roger e por fim o Ricardo. Nesse instante, notei que eles se olharam de uma forma diferente. Havia uma certa tensão entre eles e não era por nada bom, pois ela o encarou de uma forma bastante, eu diria, ousada, inquisitiva, quase ameaçadora, tanto que ele desviou o olhar antes dela própria. Feitas as apresentações, ela abriu uma pasta que trazia e exibiu a minha Carta de Demissão, em duas vias, solicitando que meu chefe a recebesse e assinasse, datando e devolvendo uma delas:
- Gervásio, meu querido, vamos conversar! - Meu chefe pediu.
- Agradeço, chefe, mas tudo o que havia para ser dito, já foi. Meus advogados, doutor Mark e doutora Denise, tem plenos poderes para me representar e sei que farão o que for correto.
Notei que o Ricardo cochichou alguma coisa com o Roger e ele se demonstrou surpreso, num primeiro momento, rindo e cochichando algo de volta, mas no que não foi correspondido pelo Ricardo que continuava sob o olhar insistentemente ameaçador da minha advogada. Meu chefe assinou uma das vias, carimbou, datou e devolveu para a doutora Denise:
- Doutora, fique tranquila. Faremos tudo de acordo com a lei e o Gervásio não será prejudicado em nenhum centavo. Tem a minha palavra. - Disse o meu chefe e depois se dirigiu a mim: - Inclusive, Gervásio, se quiser te passo também uma carta de recomendação e posso até mesmo te indicar para alguns amigos.
- Se meus advogados entenderem prudente e justo, eles lhe informarão, chefe.
Sem mais nada a tratar naquele dia, nos despedimos, eu à distância e ela sem sequer lhes dar a mão novamente. Saímos da corretora e notei que ela estava tensa, o que me obrigou a perguntar se eu havia feito alguma coisa errada, afinal, estava numa maré tão lamacenta que já me sentia culpado por todas as dores do mundo:
- Não, Gervásio, você foi perfeito. É que… - Ela se calou e respirou profundamente: - Eu preciso conversar com o Mark antes, mas acho que você se envolveu com uma, como eu poderia dizer, “turminha bem barra pesada”...
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