CAPÍTULO 6: ELO DE LIGAÇÃO
NARRADOR: HECTOR
"Conheceis a verdade e a verdade vos libertará", essa frase está escrita no livro de João 8:32 da Bíblia Sagrada. Eu confesso que nunca fui religioso, esse era o trabalho do meu pai, um famoso Bispo do Rio de Janeiro. A religião era a base da minha família. Foi assim que os meus pais conseguiram transitar entre as famílias mais importantes da alta sociedade carioca.
Nem preciso dizer que a pregação sobre a verdade era a preferida do Bispo Cláudio Fernandes Assunção, o líder supremo da Igreja Sagrado Jesus. Toda a congregação sofreu um baque enorme, quando em uma chuvosa noite de quinta-feira, o carro dele foi encontrado dentro de um lago. Aparentemente, o meu pai adormeceu no volante, capotou o veículo e caiu no fundo de um lago.
Na verdade, três vidas foram perdidas naquele fatídico acidente. A minha mãe, a cantora Aline Assunção, estava grávida de três meses e, infelizmente, não sobreviveu. Os socorristas dizem que ela e o meu pai morreram de mãos dadas.
Com apenas 15 anos, eu fui enviado para a casa da família Telles. Eles me tratavam bem, mas alguns parentes temiam que a minha presença afetasse o andamento do conglomerado Telles Ltda., que foi criado há mais de 200 anos e segue como a principal fonte de renda deles.
Apesar de ter um teto e pessoas confiáveis para me guiar no universo empresarial, eu confesso que não tive um bom acolhimento familiar. Em datas comemorativas, por exemplo, eu precisava fazer o papel do órfão agradecido e participar de diversos eventos, inclusive, na antiga igreja do meu pai, que agora era comandada por uma Bispa.
O Sr. Fernando Telles sempre esteve ocupado em uma reunião ou em alguma viagem internacional. O Jayme e a Patrícia vivendo o pesadelo de um filho roubado não tinha tempo para mim, mas também nunca me destrataram. E, claro, o causador de todos os meus traumas: Jorge Telles. Eu o considero um lobo na pele de cordeiro. Quando eu cheguei na família, o Jorge já beirava os seus 25 anos. Mesmo sendo mais velho, o idiota adorava me atazanar, principalmente, quando soube que o filho do bispo era bissexual. "Você gosta mais de um do que do outro, não é?" ou "Que nada, ele se diz bissexual para esconder o fato de que é gay!", essas foram algumas frases que o querido Jorge falou para mim.
Agora sabe quem era detestável? A matriarca da família, a Sra. Viviane Telles Assunção. A velha era biruta das ideias, até tentou matar o Sr. Fernando afogado. Inclusive, uma das principais polêmicas aconteceu no casamento de Jayme e Patrícia. A mulher ficou tão possessa pelo filho casar com uma moça simples, que vestiu preto no casamento. Eles a internaram em uma clínica, mas ela fugiu e nunca mais foi vista por ninguém. "Adotadinho de merda" e "Peso extra" eram os meus apelidos para a horrível senhora, eu não sinto zero saudade.
Mas cá estou eu. Na casa do João, que estava vivendo a maior crise familiar do universo. Os seus pais são duas pessoas simples e começaram a contar a história de como os gêmeos foram encontrados. Devido ao meu espírito protetor, segurei na mão do meu amigo e apertei para demonstrar força e incentivo.
— Eu, eu não te roubei. — garantiu dona Esther, a mãe de João, que chorava copiosamente.
— É verdade, filho. — disse seu Josué, pegando na mão de João. — Era um dia nublado de janeiro. A gente ainda não tinha se acostumado com o Rio de Janeiro e decidimos dar uma volta pela cidade. — João prestava atenção nas palavras do pai. — Lembro desse dia como se fosse hoje. Pegamos um táxi para conhecer o Mirante do Leblon. Estava chuviscando, mas não desistimos do passeio. Por causa do clima, não havia ninguém lá. Então, encontramos uma mulher deixando uma caixa no chão. De início, pensei que fosse o abandono de animais. — dona Esther chorou mais alto e recebeu um carinho do esposo. — Calma, querida. Ele precisa saber a verdade.
— O que tinha nessa caixa? — quis saber João. Sua mão estava trêmula e suada, mas não soltei em nenhum momento.
— Filho, — seu Josué fez uma pausa longa, pensando cuidadosamente nas próximas palavras. — eu fiquei assustado, pois tinha certeza que a mulher ia empurrar a caixa no mar. Então, a sua mãe falou...
— Que lindo o mar, querido. — disse Esther, cortando o marido e relembrando a sua frase. — A mulher olhou para trás e ficou assustada. Então, saiu correndo do lugar. Olhei para o Josué e seguimos na direção da caixa. Eu também achava que se tratava de cachorros, mas quando abrimos a caixa de papelão. — a mulher voltou a chorar.
— O quê? — a respiração de João estava ofegante e sua voz embargada.
— Vocês. — arrematou seu Josué, também chorando emocionado. — Vocês eram tão pequenos, indefesos e aquela mulher ia jogar vocês no mar. No fim, a gente levou os dois para casa. Eu queria ir para a polícia, porém, a Esther ficou com medo da mulher voltar e tentar algo pior.
— Meu Deus, pai. — João não conseguia mais parar de chorar.
— Calma, amigo. — pedi, levantando do sofá e indo até a cozinha. Peguei um copo de água e levei para o João. — Você precisa se acalmar, por favor.
— Eles podem achar qualquer coisa, João. Mas vocês são os meus filhos. Eu escolhi vocês. Eu sou a mãe de vocês. — dona Esther falou depois de um tempo calada.
— Dona Esther, Seu Josué. — chamei a atenção deles. — Eu sei que é muita coisa para todo mundo absorver. Tá todo mundo nervoso e com os nervos à flor da pele. Podemos fazer um chá e...
Do nada, o João saiu correndo para fora da casa. Os seus pais se assustaram. Não tive outra opção a não ser correr atrás do meu amigo. Pessoas chateadas podem fazer besteiras no calor do momento. Eu não sou o tipo mais atlético, só que usei todo o ar dentro de mim para alcançar o desesperado João.
A noite quente do Rio de Janeiro parecia seguir as emoções turbulentas que consumiam João. O choque da revelação sobre a sua origem o impulsionou a correr pela movimentada avenida. Às vezes, a fuga da realidade é a melhor saída.
O segui pelas ruas, que mais pareciam labirintos urbanos. Entre carros que zuniam, ruas movimentadas e rostos diferentes, João era uma figura desesperada, correndo em direção a um destino incerto. Minha preocupação crescia a cada passo, temendo que ele pudesse se acidentar de alguma forma.
Finalmente, João parou e olhou para uma escadaria. Ele subiu com pressa, parecia decidido a fugir de toda confusão que o envolvia. Eu o seguia de perto, a cabeça fervilhava, pois queria ajudar o meu amigo a encontrar alguma solução.
Chegamos em uma espécie de praça, onde algumas pessoas começavam a se exercitar sob a serena luz da luz. Tentei não esbarrar em ninguém enquanto continuava na cola dele. Após quase tropeçar, o meu amigo parou e ficou ajoelhado no chão. Entre soluços, ele lamentava como se buscasse um alívio dentro de si mesmo.
— João. — o chamei suavemente, querendo não assustá-lo. Ele virou na minha direção, os olhos marejados e o peito acelerado. — Estou aqui, cara. Você não está sozinho. — me abaixei e o abracei.
João, com a vulnerabilidade estampada em seu rosto, começou a desabafar sobre sua descoberta chocante. A revelação de ter sido encontrado na rua e adotado, abalou as fundações de sua identidade. As palavras saíam em soluços, e eu, atentamente, ouvia cada lamento.
— Vamos sentar naquele banco. — sugeri, apontando para frente e o ajudando a levantar.
No meio da praça, cercados pelo silêncio quebrado apenas pelos passos das poucas pessoas que transitavam por ali, compartilhamos algumas informações. De uma maneira avassaladora, a amizade entre João e eu virou algo precioso. Eu, que já havia enfrentado os meus próprios pesadelos, entendia a importância de estar ao lado de alguém nos momentos mais sombrios.
— Eu não sei o que fazer, Hector. A minha cabeça está uma bagunça enorme. Eu não sei o que fazer. — lamentou João, limpando as lágrimas que insistiam em cair.
— Vamos fazer assim, — demorei um pouco para arquitetar um plano bom, mas não poderia deixá-lo na mão. — eu vou até a sua casa e explico para os seus pais que vai ficar no meu apartamento hoje. Vocês precisam de espaço, João. Se o José quiser ir para lá também...
— Não quero te atrapalhar. — ele me cortou, mas mantive o convite.
— Escuta, hoje é sobre você, mas eu já enfrentei muitas merdas também. Eu sei que um ombro amigo faz toda a diferença. Você confia em mim? — questionei, limpando uma lágrima que escorreu pela sua face.
— Confio. — ele garantiu.
Nada melhor que o tempo para curar feridas e deixar o coração mais leve. A terapia me ajudou muito com a morte dos meus pais, principalmente, quando passei a ser atacado pelo Jorge. As sessões conseguiam tranquilizar o turbilhão de sentimentos que chacoalhava dentro do meu peito. Vou caminhando ao lado do João, que, finalmente, aceitou a oferta de dormir no meu apartamento.
Eu o respeito por segurar a barra. Algumas pessoas não teriam força para tanto, mas será que devo contar quem são os seus pais verdadeiros? Eu já estou mais que dentro desta confusão familiar. Graças a foto que tiramos juntos, os Telles perceberam uma semelhança enorme entre os gêmeos e Jayme. Aparentemente, um exame de DNA revelará toda a verdade.
Depois de andar algumas quadras chegamos em frente a casa do João. Preocupado, ele pediu que eu pegasse alguns objetos pessoais no seu quarto. Respirei fundo e entrei na residência. O seu Josué e a dona Esther continuavam conversando sobre a situação dos filhos.
— João! — exclamou dona Esther, porém, os brilhos dos seus olhos desapareceram quando percebeu que se tratava de mim.
— Seu Josué, dona Esther. — eu me agachei na frente deles. — Eu não imagino como o coração de vocês está agora, mas eu acredito que a melhor coisa para todos é o tempo. Os gêmeos estão de cabeça quente e processando toda a história. Eu ofereci a minha casa para eles passarem a noite. Não se preocupem, eu juro que vou tomar conta dos dois. — garanti, pegando na mão de dona Esther. — A senhora está sofrendo, eu sei. Eles amam a senhora, disso eu não tenho dúvidas. Dê tempo ao tempo e tudo vai se resolver. — a abracei.
— Obrigada, Hector. Por favor, cuide dos meus meninos. — ela pediu, o seu semblante cansado a impediu de chorar.
— Eles são geniosos, mas bons meninos. — garantiu o seu Josué, pegando no meu ombro. — Eu não te conheço bem, rapaz, mas sei que para o João confiar em alguém demanda tempo. Os ajude a entender, eu imploro.
— Eu vou fazer o possível. Eu prometo. — soltei, mas logo me arrependi, pois eu era o elo de ligação entre as duas famílias. Onde você se meteu, Hector? O que vou fazer?