CAPÍTULO 9: Dúvidas
NARRADOR: JOÃO
Sou o cara dos fatos. Eu não sou filho biológico dos meus pais? Ok. Eu venho de uma das famílias mais influentes do Rio de Janeiro? Ok. O beijo do Hector é a coisa mais gostosa do mundo? Ok. Essas últimas horas foram interessantes. Decidi espairecer na praça próximo de casa. Era um costume que eu tinha e adorava, pois, conseguia achar respostas para todos os meus problemas, ainda mais agora que o meu mundo, antes firme e familiar, estava cambaleando diante das revelações que pareciam tirar o chão sob os meus pés.
Não demorou muito e o José apareceu. Ele usava uma camiseta do exército e parecia tão abatido quanto eu. Ele sentou ao meu lado e percebi que seus olhos refletiam as mesmas incertezas e medos.
— João, — ele disse, seu tom era sério, mas carregado de compressão. — você já decidiu? — ele questionou sobre a decisão de encontrar os Telles.
Balancei a cabeça em sinal de positivo, mas as palavras estavam presas na minha garganta. Como eu poderia explicar a confusão que se desenrolava dentro de mim? O título da nossa vida estava sendo reescrito, e eu me sentia perdido entre a história que conhecia e a que estava prestes a conhecer.
— O Hector, — soltei, ainda tentando formular uma frase na minha cabeça. — ele conhece os Telles. Os nossos pais biológicos são amigos da família dele.
— Então, o que ele acha disso tudo?
— Ele disse que o Jayme e a Patrícia são pessoas boas...
— Mas a mãe e o pai também são. — protestou o meu irmão, virando para a minha direção. — Eles são pessoas boas, que podem se complicar por causa de uma boa ação. Devemos aceitar esse encontro com os Telles. Precisamos pedir que nenhuma queixa seja prestada.
— Eu tentei fazer isso. — disse, olhando para o meu irmão. — Eu ia encontrar os Telles ontem, mas o Hector achou melhor esperar. Eu ia implorar para que eles nos deixassem em paz. — comecei a chorar e o José pegou no meu ombro. — Eu estou com medo, João.
— Ei, sempre fomos nós dois, lembra? Desde sempre, desde antes dessa confusão acontecer. Dividimos um útero, dividimos um quarto e dividimos uma vida juntos. Vamos encontrar o Jayme e a Patrícia. Só preciso de você ao meu lado. — ele garantiu, apertando o meu ombro e sorrindo. — Fora que eles são ricos! — exclamou.
— Idiota! — eu bati com força no ombro dele.
Atravessamos parte do bairro para chegar em casa. Encontramos o Seu Josué e a Dona Esther na cozinha. Desde o dia em que a polícia chamou a mamãe para depor, ela parecia mais introspectiva e quase não falava conosco. Eu só queria aquela sua alegria de volta. A mamãe fazia um bolo para encomenda, enquanto o papai organizava os documentos pedidos pela Nataly.
Eu amo os dois. Eles me deram amor, apoio e uma vida confortável dentro das possibilidades. Mas agora, meu sangue biológico buscava por reconhecimento, uma conexão que eu nem sabia que estava perdida. Diferente de mim, o José conseguia disfarçar os seus sentimentos. Ele chegou todo faceiro e deu um abraço na mamãe, que reclamou e pediu para o meu irmão tomar um banho.
— Vocês já decidiram? — a voz do meu pai ecoou pela cozinha. Ele queria saber se iríamos encontrar os Telles.
— Já. — afirmou José, roubando um pouco de doce de morango e colocando na boca sem cerimônia. — Vamos sim. Quanto mais rápido encontrarmos o Jayme e a Patrícia, mais rápido vamos sair dessa situação.
— Isso. — concordei, olhando para a mamãe e percebendo um desconforto. — Mas isso não significa nada. Vocês dois continuam sendo os nossos pais.
— Filho, — a mamãe olhou para mim, enquanto colocava o guardanapo de pano sob o ombro. — vai de coração aberto. Isso é para os dois. Eu sei que vocês amam a gente e esse sentimento nunca vai mudar, mas pensa nessa família? Quantas noites a mãe de vocês não chorou com medo e saudade? — ela tocou no rosto de José, que estava em sua frente e sorriu. — É uma situação complicada. Se eu soubesse que vocês eram fruto de um sequestro, eu teria ido à polícia.
— Eles são os pais de vocês. — soltou o meu pai. — Assim como a Esther e eu. — ele afastou os papéis e sorriu. — Eu ia querer uma chance de vocês. São as coisas mais preciosas do mundo.
— Pai. — resmunguei, o abraçando. — Eu te amo. Você também é precioso para mim.
A noite chegou e comecei a me acalmar. A incerteza ainda pairava dentro de mim, mas eu gosto de fatos, e o fato principal é: eu amo os meus pais e nada pode nos separar. Outro fato importante? Eu precisava encontrar o Hector, que havia se tornado um ponto de apoio em meio ao caos. Em sua companhia, eu poderia enxergar as coisas com mais clareza, além dos beijos gratuitos, claro.
Decidimos passear na praia, então escolhi roupas leves e uma sandália confortável. O José que vivia entre o quartel e a nossa casa havia pegado uns dias de folga para resolver os problemas familiares. Sempre dividimos o quarto. Antes dormiam em beliches, mas o papai decidiu comprar duas camas que ocupam quase todo o ambiente. A minha parte é organizada, enquanto a do José parece um cenário de filme apocalíptico.
Após vestir as roupas, peguei o perfume e passei com cuidado no pescoço. Eu contei de um até três e escutei uma piadinha do José. Ele era tão previsível. Curioso, o meu irmão sondou e não consegui mais esconder. Contei da conversa com o Hector, do primeiro beijo que demos e do sentimento que crescia entre nós.
— Quem diria, um chifre formaria um casal. Você sabe que o Hector já me beijou, né? — provocou José, jogando um travesseiro na minha direção.
— Ele pensava que era eu. — defendi o meu crush e devolvi a almofada na cara do José.
— O teu namoradinho beija muito mal. — comentou.
— Claro, José, agora você é especialista em beijos. Quantas namoradas você teve? — perguntei.
— Eu não me apego. Essa é a diferença entre nós. Enquanto cê busca o príncipe encantado, eu quero a rainha do funk. — ele levantou da cama e começou a dançar de maneira desengonçada.
— Credo. A situação só piora. — brinquei e me assustei com uma ligação do Hector.
— O nosso boy já chegou? Vamos fazer o seguinte: — José colocou as mãos na cintura e fez uma péssima imitação de mim. — eu fico com o boy de segunda a quarta. Você fica de quinta a sábado. Aos domingos, ele descansa. Que tal?
— Você é doente. — soltei, antes de sair do quarto. Peguei o celular e mandei uma mensagem para o Hector. — Oi, Hector. Estou indo. Um minuto.
A brisa do Rio de Janeiro acariciava meu rosto enquanto caminhava ao lado de Hector pelo calçadão da praia do Leblon. As ondas se moviam de maneira espontânea ao som da melodia suave que saia das caixas de som dos bares.
Ainda não consegui acreditar no beijo que dei no Hector, porém, o Mauro não saia dos meus pensamentos, principalmente, após as últimas descobertas da minha vida. Por outro lado, a minha amizade com o Hector trouxe consigo uma nova luz.
O passeio era uma boa distração. O sol começava a se despedir, lançando seus últimos raios sobre as águas. O show de MPB à frente prometia uma noite cheia de música e Hector, com sua presença calorosa, tentava dissipar as sombras que teimavam em me envolver.
Caminhávamos lado a lado, as conversas fluíam com uma naturalidade que eu não experimentava há tempos. A risada de Hector era como um remédio para a alma. Mas, mesmo em meio à descontração, meu coração carregava o peso da incerteza.
A cada passo, a música começava a preencher o ar, uma sinfonia que combinava com as ondas do mar. Hector, percebendo meu olhar perdido no horizonte, segurou minha mão com carinho, como se quisesse passar força.
— Você está bem? Tipo, eu não estou sendo inconveniente, né? — quis saber Hector, enquanto segurava a minha mão.
— Eu, eu, eu tô adorando o encontro. É só que, — parei para pensar nas palavras certas. — o meu último relacionamento é recente.
— Eu sei, João. Desculpa, não quero te forçar a nada...
— Ei, relaxa. Ok. Eu estou adorando o encontro. — confessei, apertando a sua mão e sorrindo.
Quase no fim do encontro, quando a noite começava a cair, o meu celular vibrou. Eu não reconheci o número, então atendi e uma voz familiar ecoou do outro lado da linha. Era o Mauro. O meu coração bateu forte, porém, não consegui dizer nada.
— Por favor, João. — ele pediu. — Eu só preciso de uma chance. Eu vi uma foto sua com aquele cara, o Hector. Ele é o ex-namorado do Alex. O que vocês estão fazendo juntos?
— Mauro, eu não tenho nenhuma explicação para te dar. Me deixa em paz, por favor. — implorei e as lágrimas foram inevitáveis.
— Sério? — Hector fez uma careta e pegou o celular da minha mão. — Escuta aqui babaca. O João já está com problemas demais. Só o deixe em paz! — desligando. — Nossa, João. — ele pensou um pouco. — Você deveria bloquear o contato dele.
— Desculpa, Hector.
— Não, você não tem culpa de nada, João. — afirmou Hector. Ele me surpreendeu com um abraço e um beijo no rosto.
— Obrigado. Você está sendo um ótimo amigo. — o beijei. — Um amigo que beija muito bem.
— Posso lidar com isso. — ele garantiu.
Eu sou uma pessoa dos fatos, Hector. Você pode ligar com isso e eu? Eu não sei o que fazer. Espero que a vida pare de me surpreender. Pelo menos, uma vez, eu quero ter o controle. Eu preciso ter o controle.