CAPÍTULO: ELO INVISÍVEL
NARRAÇÃO: HECTOR
O meu primeiro contato com o João aconteceu da pior forma possível. Em uma bela manhã de setembro, descobrimos que éramos cornos. Uma traição dos nossos ex-namorados converteu aquela situação em uma improvável amizade entre nós.
De amigos que compartilhavam um doloroso segredo, passamos a cúmplices de um drama caótico que a vida estava se tornando. João, com seus olhos expressivos e uma complexidade que transcendia qualquer explicação fácil, se tornou um mistério que eu estava adorando decifrar.
Nos últimos dias, tivemos altos e baixos. Risos compartilhados em momentos de descontração, mas também silêncios pesados quando o assunto adoção voltava para nos assombrar. Fora isso, ainda tinha o ex-namorado dele, o tal de Mauro, que continuava uma presença incômoda, sempre por meio de uma mensagem ou ligação.
Toda noite, eu pegava o João na faculdade. Eu queria mantê-lo seguro, apesar do meu amigo não precisar de nenhum tipo de proteção. Na verdade, ele se mostrou mais forte do que eu imaginava. Naquela terça-feira, o apanhei mais cedo, então decidimos ir ao cinema.
Escolhemos um filme sobre robôs que lutavam contra fantasmas de princesas. Acho que Hollywood já foi mais criativa em seus roteiros e propostas de longa-metragens. Apesar da produção duvidosa, era bom ver o João imerso em outra atividade. Sua família vem sofrendo bastante com a questão da adoção e o futuro encontro com a família Telles.
Aproveitamos o escurinho do cinema para uns amassos. Eu estava ficando viciado na boca dele. Infelizmente, o beijo acabou sendo atrapalhado por uma ligação de número desconhecido, mais conhecido como Mauro.
— Eu acho que você deveria mudar de número. — soltei, com certeza deixando o ciúme transbordar de mim.
— Não, uma hora ele para. Eu criei uma conta para seguir o Mauro. — confessou João, deixando a pipoca de lado.
— Você acha isso saudável? — questionei, cruzando os braços.
— Sei lá. Eu sinto falta dele. Na escola, o Mauro era o único garoto que falava comigo. — João me revelou.
— Desculpa por isso, João.
— Existem pessoas ricas legais. Você é legal comigo. Desde o primeiro dia. — ele soltou. Tenho quase certeza que o meu rosto ficou vermelho.
— Eu não sou bem rico, apenas tenho o suficiente. Isso graças ao seu av...
Puta merda. Puta merda. Falei besteira. E agora? Calma. Respira, Hector. Tenho certeza que o João não ouviu a frase toda. Como eu posso reverter esse comentário? Por favor, que um incêndio comece agora, que um apocalipse zumbi nos faça pensar em sobreviver, mas que o João esqueça esse comentário infeliz.
— Calma, Hector. — ele pediu, tocando no meu braço. — O meu avô te ajudou? — eu assenti positivamente. — Tudo bem. Realmente, a família Telles não parece de todo mal.
— Me perdoa, João. Eu não queria trazer esse assunto à tona e...
— Hector, para. — João pegou na minha mão e fez carinho. — Eu estou bem. Estar com você me faz bem. Eu não quero que você fique preocupado comigo. Podemos nos divertir, falar besteira e tá tudo bem.
Conversar com o João é tão fácil, quando não existe o tema 'adoção' ou 'encontrado na rua'. Ele é o tipo de cara inteligente, mas não gosta de se gabar, sempre tem uma curiosidade ou fato importante sobre qualquer coisa.
CINCO FATOS CURIOSOS QUE APRENDI COM JOÃO:
1. O Rio é de Janeiro, mas o rio é uma baía;
2. A maioria das escolas de samba do Rio ficam nas favelas;
3. O Carnaval do Rio também é o maior do mundo;
4. O Rio tem a oitava maior biblioteca do mundo;
5. O Rio tem a maior floresta urbana do mundo;
— Você sabia que a palavra carioca significa 'casa do homem branco'? — ele perguntou, enquanto caminhávamos no calçadão de Copacabana.
— Não. — respondi.
— A palavra carioca vem do tupi-guarani, o povo indígena que morava aqui, que significa 'casa do homem branco'. — ele abriu um sorriso e não resisti. Tive que o beijar. — Hector. — João ficou sem graça e coçou a cabeça.
— Sua versão nerd é muito gostosa, desculpa. — admiti.
Por enquanto, estamos apenas nos beijos e carícias. Não tenho pressa com o João. O meu último relacionamento foi um tropeço de acontecimentos e culminou em um rompimento traumático, mesmo me trazendo o João. Fora que eu não quero passar a impressão de que ele é um substituto do Alex, pois os dois não poderiam ser mais diferentes.
Passamos mais um tempo conversando sobre amenidades e tive que o deixar em casa. Confesso que essa era a parte mais difícil. Por mim, a gente conversava a madrugada toda, mas não quero assustar o garoto com a minha carência. Esse é um dos tópicos que sempre levo a terapia: carência.
Não sei se é a falta dos meus pais, mas sempre depositei muita esperança nas pessoas. Primeiro foi com a família Telles, após eles cuidarem de mim por quase 10 anos. Depois com os meus namorados. Eu sou muito emocionado quando se trata de relacionamentos.
Graças a Deus, estou estagiando e colocando toda essa energia na agência. Se dependesse do Sr. Fernando, eu trabalharia em sua empresa, mas tenho certeza que o Jorge ia se opor a ideia. O meu trabalho não é tão difícil, eu preciso criar e desenvolver logomarca para os clientes. Sempre que começo uma peça, esqueço do mundo e dos problemas.
Infelizmente, os problemas não esquecem de mim.
***
JAYME TELLES:
Hector, tem um tempinho?
HECTOR:
Claro. Precisa de alguma coisa.
JAYME TELLES:
Tem como ir lá em casa, por favor. Eu preciso conversar com você.
HECTOR:
Sim. Pode ser às 18h? Tenho um job pra entregar hoje ainda.
JAYME TELLES:
Sim. Esse horário é perfeito.
***
E agora? O Jayme nunca me enviou mensagem antes. Apesar dele me tratar bem, as nossas conversas sempre foram pessoalmente. Eu nem sabia que tinha o contato dele salvo no meu celular. Ótimo, a ansiedade está adorando ser o centro das atenções. Volto a atenção para o aplicativo de edição.
Como prometido, cheguei à mansão Telles às 18h. Quando eu era criança, adorava essa casa. Lembro das festas que os meus pais me traziam. Esses corredores já foram uma espécie de playground para mim. Com o passar dos anos, diversas coisas mudaram e obras foram feitas, mas os corredores continuam os mesmos.
Vi um cabisbaixo Jayme sentado no sofá. Ele estava mais magro e abatido que o normal. Acompanhei de perto o drama da família Guimarães e vi o que toda essa confusão está fazendo com a saúde do Seu Josué e da Dona Esther.
Eu nem consigo mensurar os sentimentos dele e da Patrícia. Descobrir que seus dois filhos foram jogados na rua como animais deve ter afetado o psicológico de ambos. Uma verdade cruel que Jayme lidava da melhor maneira possível, mas que não deixava de ser dolorida.
— Hector, preciso da sua ajuda. — ele pediu, se aproximando e pegando em minha mão. — Você é o único que conhece os meus filhos de verdade, que conviveu com eles. Eu não sei como abordá-los, como me aproximar. Você pode me ajudar?
Aquelas palavras pareciam ecoar dentro de mim enquanto eu tentava processar o que estava em jogo. Jayme não sabia nada sobre os filhos que tanto procurava, e eu, que me apaixonei por João, poderia fazer essa conexão entre eles.
O dilema dentro de mim era quase palpável, uma batalha entre o dever de ajudar quem um dia estendeu a mim para mim ou me manter neutro na história e deixá-la acontecer naturalmente.
— Eles são dois garotos incríveis, Jayme. — peguei no ombro dele e apertei. — O João está no primeiro período de Ciência da Computação. Enquanto o José decidiu servir o Exército. Eles são garotos do bem.
— Eles são, — de repente, os olhos dele ficaram marejados. — eles são. — Jayme voltou e sentou. — A Patrícia está desesperada. Ela ficou sabendo da confusão que os gêmeos fizeram na delegacia.
— Jayme, eles têm medo que vocês prendam seus pais adotivos. — revelei, decidindo dar uma força para a família Telles e, dessa forma, ajudar a família Guimarães. — Para os gêmeos, o Seu Josué e a Dona Esther são sua família, o que não deixa de ser. — sentei ao lado dele. — Eles vão encontrar com vocês, mas lembre que as coisas precisam ser feitas com calma.
— A família Guimarães não agiu da forma adequada, Hector. — Patrícia entrou e seu semblante era similar ao do esposo. — Eles deveriam ter ido à polícia. Foram 18 anos de sofrimento, sempre imaginando o pior.
— Eu sei, Patrícia. Só que os dois ficaram receosos da pessoa voltar e terminar o serviço. — falei, citando a tal mulher misteriosa. — Nem vocês sabiam que eram duas crianças. Imagino que descobrir a origem dos gêmeos deve ter sido um choque.
— Eu tenho certeza que foi a Viviane. — pude sentir a indignação na voz de Patrícia, que andou em direção a janela e ficou observando o jardim. — Ela acompanhou todos os meus exames de pré-natal. Nenhum exame ficava comigo. Como eu fui tola. Chorei anos por uma criança, mas eram duas. — lamentou.
— Céus. E você nunca desconfiou de nada? O tamanho da barriga? A equipe do hospital? — fiz mais perguntas do que gostaria.
— Ela desapareceu na mesma época que os meus filhos. Até achei estranho o comportamento dela durante os meus exames. Sempre disponível e pegando o resultado de todos os meus exames. Como eu pude ser tão idiota? — chorando.
— Gente, o importante é que eles estão bem. Foram criados por uma família amorosa, são pessoas do bem e querem conhecer vocês. Eu sei que não apaga os últimos 18 anos, mas é a segunda chance que a vida está dando. — falei para animá-los. — Amanhã, eles vão vir até aqui e vocês vão ter a chance de conversar.
— Os bastardinhos vêm amanhã? — questionou Jorge, o irmão de Jayme, entrando na sala e nos pegando de surpresa.
Tudo aconteceu muito rápido. O Jayme deu um grito e assustou todos. Em seguida, correu e pulou em cima do irmão. Eles não eram gêmeos idênticos. Enquanto Jayme possui um porte atlético e invejável para alguém que chegou aos 40 anos, o Jorge é baixo e dono de uma voz aguda, por vezes, irritante. Ele fazia as pessoas subestimarem a sua presença. No entanto, lá no fundo, Jorge Telles era um homem astuto e maléfico.
Socos. Puxões de cabelos. A Patrícia e eu tivemos dificuldade para apartar o embate dos irmãos. Com corte, puxei Jorge pelo braço e os dois se afastaram. Com raiva nos olhos, Jorge olhou para mim e cuspiu no chão.
— Nunca mais toque em mim, viadinho! — exclamou, antes de sair.
— Jayme, — disse Patrícia, ofegante e sentando no chão ao lado do marido. — se você não tivesse feito isso, com certeza, eu faria. — ela riu e nos contagiou.
— Acertei uns bons socos na cara do desgraçado. Amo esses nossos encontros familiares. — afirmou Jayme, pegando os óculos de grau no chão e colocando no rosto.
É isso. O Jayme é o pai do João. Eles possuem o mesmo sorriso. Um sorriso que irradiava luz não apenas em seu rosto, mas em todo o ambiente. Agora, era fascinante notar as semelhanças entre o pai e os filhos. Os traços idênticos, um brilho no olhar, era uma espécie de elo genético invisível.
— Eu vou ajudar vocês. Vou fazer à noite de amanhã ser inesquecível. — prometi, jurando a mim mesmo que faria o possível para conectar essas duas famílias.