Meu Desejo - Capítulo Sete

Da série Meu Desejo
Um conto erótico de M.K. Mander
Categoria: Gay
Contém 5211 palavras
Data: 10/03/2024 03:54:46

CAPÍTULO SETE

*** PEDRO FERNANDES ***

Arrogante. O homem é um arrogante e Deus sabe que eu estou farto de tipos como ele! Me sinto estúpido por não ter entendido quem ele era no momento em que nos conhecemos. Olhando agora para a situação, a realidade não pareceria mais óbvia nem se tentasse. O homem basicamente me repreendeu por invadir sua casa e eu fui incapaz de ligar os pontos. Meu Deus! Pedro! Meu Deus!

Entretanto, enquanto nossos olhares duelam, a última coisa que me sinto é culpado. Pela segunda vez em pouco mais de uma semana, barba grisalha, cabelos escuros e uma expressão severa me encaram exalando uma aura de poder que arrasta uma onda de leves estremecimentos pelo meu corpo. Hoje, o homem mau humorado e incapaz de aceitar um pedido de desculpas não está usando bermuda e camiseta polo.

Hugo está vestido por um terno feito sob medida de três peças, que transforma a já difícil tarefa de não olhar para ele em algo que beira o impossível, e seus olhos escuros cimentam essa impossibilidade ao se cravarem em mim com uma diversão incontida e extremamente irritante.

Todo nervosismo que eu sentia desde que acordei foi substituído por outra coisa no instante em que nossos olhares se encontraram e eu realmente gostaria de saber por que, de repente, todos os lugares onde vou estão terrivelmente quentes. Mas não importa. Porque mesmo essa outra coisa está se transformando em irritação a cada segundo em que o homem insiste na atitude prepotente e cheia de si.

— Bem, senhor Maldonado — começo usando o pronome que ele claramente não gosta e quase me permito um sorriso pequeno quando Hugo estreita os olhos para mim. — Beatrice tem excelentes notas — digo, abrindo a pasta, retirando de dentro dela uma cópia impressa do boletim bimestral da menina e oferecendo-a ao pai que sequer olha para o papel, apenas o coloca ao seu lado, sobre a mesa. — Seu comportamento de maneira geral é muito bom. Ela é atenciosa, prestativa e muito dedicada em tudo o que faz — continuo e ofereço uma segunda folha. Essa com os registros feitos pelas professoras sobre as habilidades sociais de Beatrice ao longo dos últimos dois meses.

Mais uma vez, Hugo pega o que eu entrego e deixa sobre a mesa sem desviar o olhar do meu rosto. Engulo e umedeço os lábios com a ponta da língua. Seu olhar se foca no meu gesto, esquentando minhas bochechas e eu alcanço o lápis ao meu lado apenas para ter o que fazer com as mãos.

Tudo bem, talvez eu tenha cantado vitória cedo demais. O homem realmente sabe brincar de encarar e a cada segundo sob seu escrutínio, uma parte diferente do meu corpo parece mais disposto a reagir, e como ficou provado hoje mais cedo, há alguma coisa em seu olhar capaz de me tornar cativa. Que mistura mais inconveniente!

— O que mais? — pergunta com seu sorriso de canto se tornando cada vez mais indiscreto apenas para me mostrar que eu fiquei tempo demais em silêncio. Isso renova minhas forças.

Presunçoso!

— O desempenho dela nas aulas de música está além do esperado e a professora deixou algumas recomendações sobre possíveis interesses da sua filha em determinados instrumentos. — Entrego mais uma folha, que foi rapidamente colocada de lado.

— O senhor não está olhando os relatórios — aponto, forçando-me a sorrir quando minha vontade é rosnar. Rolo o lápis entre os dedos das minhas mãos.

— Isso é porque você não está me dizendo nada que eu não saiba. — Dá de ombros. — Cada uma dessas informações está registrada no sistema. Eu já as vi.

— O propósito da reunião é que o senhor possa discutir as informações.

— E você espera que eu discuta o fato de que minha filha é uma excelente aluna? — Balança a perna cruzada sobre a outra e me encara com uma expressão que diz “É, eu achei que não.”

— Então o senhor está pedindo que eu pule todas as informações que já foram divulgadas e o apresente somente as não registradas no sistema?

— Se você tiver alguma... Se não, podemos ir ao que finalmente interessa. — repete a convocação, certo de que não há mais nada que eu possa dizer e de que eu quero ter algum tipo de discussão com ele. Sério?

Ele nem é meu chefe ainda e já quer mandar em mim! O que passa na cabeça dele? Trabalhar para esse homem está com cara de acidente de trem em andamento. Na melhor das hipóteses, sou demitido no primeiro dia, na pior, nos matamos. E em uma muito boa mesmo, nós transamos!

Pisco, atordoado com meus próprios pensamentos. De onde foi que isso veio? Quando foi que minha reunião dos sonhos se tornou um desastre em potencial? O homem diante de mim deveria ser um símbolo da minha realização profissional, no entanto, nunca quis tanto alguma coisa quanto quero voar em seu pescoço e dizer o quanto ele é insuportável. Ou beijá-lo! Cala a boca, subconsciente!

— Na verdade, há sim uma informação não revelada. — Seu rosto imediatamente assume uma seriedade que me faz enxergar nele o motivo pelo qual eu jamais imaginaria, no dia em que o conheci, que era ele o pai de Beatrice.

As descrições da menina sempre foram de um pai amoroso, dedicado e preocupado. Eu nunca concluiria sozinho que o homem mal educado, grosseiro e que estava se ausentando da festa de aniversário de Beatrice, no meio dela, era seu pai. Até este momento, eu sequer conseguia unir esses dois homens em um só.

— Aconteceu alguma coisa com a minha filha? — questiona, colando o tronco à borda da mesa, reduzindo ao mínimo a pouca distância que ainda havia restado entre nós. — Por que eu não fui informado sobre isso antes? — Até mesmo o tom de voz muda quando ele diz essas palavras e um pouco da minha aversão é substituída por respeito nesse momento.

— Não exatamente — me apresso em responder, notando a óbvia agonia que não saber a que estou me referindo causa no homem. — Na verdade, tem a ver com um comportamento específico e recorrente que foi observado. — Apoio os braços sobre a mesa e cruzo os dedos, deixando o lápis de lado.

— Comportamento recorrente? — Franze as sobrancelhas e aperta os lábios em um bico que não deveria me fazer suspirar, mas faz.

— Sim. A princípio, não é algo realmente grave — apaziguo. — Mas se não for analisado, discutido e talvez, corrigido, pode se tornar.

— Que seria?

— Em palavras simples, observamos que Beatrice está apresentando algumas dificuldades em ser contrariada. Em administrar não’s. — Ofereço mais um papel impresso, mas dessa vez, Hugo não o alcança. — Nos preocupa que isso prejudique a construção da autoestima da Beatrice. — O pai recua como se eu o tivesse atingido com mais do que palavras e pisca os olhos algumas vezes antes de inclinar levemente o pescoço para a direita.

— E em palavras um pouco mais complicadas, você está me dizendo que minha filha é mimada. É isso? — questiona na defensiva, e um som de desdém arranha sua garganta.

— Senhor Mal…

— Eu não acho que eu pague uma pequena fortuna a essa escola para que ela me diga como educar minha filha, Pedro. — Dessa vez, a forma como pronuncia meu nome é muito diferente de todas as outras e eu sou pego completamente desprevenido por sua postura.

Paro, deixando que ele use o silêncio como bem entender enquanto penso sobre como agir. Pais nem sempre são compreensivos sobre defeitos ou dificuldades dos seus filhos. Relembro todas as abordagens que já estudei para casos como esse e escolho uma. Expiro devagar, dando tempo para o meu lado profissional assumir por completo o controle da situação, e quando me sinto pronta, falo.

— Hugo. — Também mudo meu tom, emprego um bem mais amistoso do que vinha fazendo antes. Os olhos escuros e ferinos do homem me estudam, desconfiados. — Beatrice é uma criança extremamente bem educada, mas questionar limites é uma característica inata do ser humano, por isso precisamos recebê-los desde cedo — pontuo tão tecnicamente quanto é possível sem soar incompreensível. — Frustrações são desagradáveis, mas são necessárias. Sem elas, é impossível que o ser humano aprenda seu próprio valor e se torne capaz de gerenciar as próprias expectativas com relação a si mesmo e aos outros. — Uma risada fria deixa seus lábios quando ouve minhas palavras e eu sei que não estou nem perto de alcançar meu objetivo.

— Agora você está dizendo que eu não dou limites à minha filha? — Abro a boca, mas não respondo imediatamente.

Meu cenho se franze quando me sinto profundamente dividido entre a irritação com a inflexibilidade do pai de Beatrice e a compreensão de que se ele não entender o que estou tentando dizer, a situação não só pode, como vai se agravar.

— Não, Hugo. Eu estou concordando com você. — Pauso. — Você nos paga uma pequena fortuna para cuidar da educação da sua filha e isso significa muito mais do que ensiná-la a ler, pintar ou fazer contas. — Ele ergue uma sobrancelha, insinuando, silenciosamente, que sabe o que estou fazendo: acariciando seu ego para logo em seguida abatê-lo. Tento lhe dizer com os olhos que não, essa não é minha intenção. Quando não vejo qualquer mudança em sua postura, tento com palavras. — A escola tem um papel fundamental na formação do caráter de qualquer indivíduo, o ambiente escolar é onde a criança se sente mais confortável depois da própria casa, muitas vezes, até mais do que em casa e por…

— Você está sugerindo — começa em um tom cortante que transforma a tensão ao nosso redor em algo sólido como rocha. — Que a minha filha não se sente confortável na própria casa? — Limpas. São como suas palavras soam.

Hugo não se preocupa em ser nada além de direto com sua pergunta e eu afundo os dentes no lábio inferior, escolhendo bem o que direi a seguir. Remexo-me na cadeira e cruzo as pernas.

— Não. Qualquer um que conheça sua filha sabe o quanto ela ama a casa em que vive e as pessoas que a frequentam. Beatrice é adorada — asseguro, recuperando o lápis que havia deixado sobre a mesa e batucando uma de suas pontas na pasta aberta à minha frente.

— Então por que nós estamos tendo essa conversa?

— Porque talvez ela esteja sendo adorada demais. — Desisto da abordagem cheia de dedos. Rápido demais, eu sei, mas depois das respostas que recebi, é óbvio que eu sequer deveria tê-la considerado. — Mais de uma vez, Beatrice demonstrou a tendência de se isolar quando algo sai diferente do planejado por ela. Ela se afasta das pessoas por simplesmente não fazerem o que ela quer.

— Então, o grande problema de Beatrice, o que a torna uma criança mimada, na sua perspectiva, é o fato de ela se afastar de pessoas que de alguma forma a prejudicam? — Ordena as frases com uma lentidão que tem o claro propósito de me intimidar, de ridicularizar meu argumento.

— Não. Eu nunca disse que sua filha é mimada.

— Não, você apenas quis dizer.

— Não coloque palavras na minha boca, Hugo. — Me irrito. — Eu não quis dizer nada disso. — Luto contra a vontade de ranger os dentes. Que homem teimoso, inferno! — O que estou dizendo é que existe um ponto sobre a introspecção que ocorre após algo não ter saído como ela queria que fosse. Beatrice pode estar apresentando esse comportamento como sintoma de algo maior. — Espalmo as mãos na mesa com os olhos focados no par de pedras escuras que me encara com intensidade. Meu coração bate em um ritmo completamente inapropriado para uma reunião escolar, mas não consigo evitar.

— Você está sugerindo que a minha filha está sofrendo de algum tipo de transtorno psicológico?

— Não, Hugo — suspiro, frustrado, porque o homem claramente não quer entender o que digo. — Eu estou te contando sobre um comportamento recorrente da sua filha e dizendo que ele precisa ser observado e analisado para que cheguemos a uma conclusão — explico mais uma vez. — Isso pode não ser nada, mas também pode ser uma forma de ela demonstrar algum tipo de insegurança. Essa não é uma opinião minha. — Faço questão de ressaltar. — É uma análise de comportamento que considera muitos aspectos teóricos e práticos do desenvolvimento infantil. Caso deseje, posso enviar artigos e publicações que a respaldam. É só dizer. — Inclino a cabeça, lhe dando a chance de concordar ou discordar da oferta, mas sua única resposta é um soprar de ar por entre os dentes. Ignoro a atitude infantil e continuo. — Essa análise foi apenas corroborada por mim, ela foi inicialmente apontada pelas professoras regentes da turma. — O desdém e incredulidade do pai de Beatrice ficam evidentes em seu desviar de olhos. Não desisto, porque o foco aqui não sou eu, ou quanto esse homem é capaz de me irritar, mas sua filha. — Além disso, a palavra não nunca foi sinônimo de prejuízo. Se afastar de alguém por nenhum motivo além de ter sido contrariado, pode ser.

— Eu não vou obrigar minha filha a se manter próxima de pessoas que não valorizam as suas vontades.

— E eu entendo que você acredite estar fazendo um favor a ela ao sustentar esse pensamento, mas estudos relatam que a falta de não's e da administração de frustrações durante o desenvolvimento infantil afeta as habilidades sociais, o desenvolvimento emocional e acarreta dificuldades escolares ao longo dos anos, mesmo que hoje ela seja uma aluna brilhante. Ignorar os sinais que estão sendo apresentados hoje pode significar um desafio imenso para Beatrice no futuro. O mundo não vai valorizar as vontades da Beatrice para sempre — concluo, e Hugo ri. O maldito do homem ri.

— Você claramente não me conhece — diz, como se essa declaração fosse o suficiente para refutar todos os argumentos que apresentei e eu olho para cima, me perguntando como, em meia hora, essa criatura foi capaz de fazer o que uma sala de doze crianças não faz em um dia inteiro: esgotar minha paciência.

— E você, claramente, está se recusando a ser racional — acuso primeiro, penso depois. Merda.

As sobrancelhas franzidas se esticam e os lábios se abrem, permitindo que eu veja quando ele apoia a ponta da língua sob os lábios superiores. A expressão fica em seu rosto por apenas um segundo. Hugo recosta-se no espaldar da cadeira e antes mesmo que as palavras saiam de sua boca, eu sei que não vou gostar do que estou prestes a ouvir.

— Você pelo menos tem idade pra estar conduzindo essa reunião? — Olho para baixo, escondendo a vontade de mandá-lo para puta que o pariu que provavelmente está por todo o meu rosto nesse momento. É claro que ele atacaria meu profissionalismo. Parece que Beatrice não é a única pessoa mimada naquela casa, afinal.

— Imagino que esta reunião esteja encerrada? — pergunto quando levanto os olhos e Hugo imediatamente se põe de pé, abotoando o paletó.

— Pode apostar que está — responde já caminhando na direção da porta e deixando para trás os papéis que lhe entreguei.

— Tão arrogante! — exclamo, precisando expulsar a indignação que ainda habita meu corpo mesmo horas depois do meu encontro desastroso com Hugo Maldonado ter chegado ao fim porque minha mente se recusa a deixar os pensamentos sobre ele de lado.

O pior cego é aquele que não quer ver, já dizia o ditado. O problema é que nesse caso, a cegueira seletiva de Hugo pode prejudicar e muito a sua filha.

— Uhum.

— E mimado! Meu Deus! Um homem daquela idade devia se envergonhar de agir daquele jeito!

— Uhum.

— E eu ainda não acredito que ele teve a audácia de questionar minha formação, meu profissionalismo! — reclamo e solto um grunhido. A droga de um grunhido! Foi nisso que Hugo Maldonado me transformou, numa pessoa que grunhe. Pelo amor de Deus!

— Uhum.

— E você tinha que ver o jeito que ele me olhou quando saiu da sala, Melissa! Eu só...

— Queria beijar a boca dele.

— Tanto! — admito com um gemido quando jogo meu corpo sobre o de Mel, no sofá da nossa sala e ela me abraça, apoiando minha cabeça sobre suas pernas. — Como é possível que um homem possa me irritar e me atrair na mesma medida colossal? — reclamo com o universo, porque não é justo.

Há anos me pergunto se esse tipo de atração era baseada em nada além de vozes da minha cabeça e, quando finalmente recebo uma prova de que não, não é, ela vem na pior embalagem possível. O tipo de homem no qual eu não quero proximidade nem que me paguem.

— Então você não vai trabalhar pra ele, né?

— Não, mesmo que ele ainda quisesse, o que eu tenho certeza que não quer, depois do jeito que saiu da minha sala, nós provavelmente nos mataríamos.

— Ou transariam feito coelhos.

— O que seria igualmente trágico.

— Em que mundo transar com um homem gostoso como aqueles — Melissa diz, apontando para a tela acesa do notebook aberto sobre a mesinha de centro, em que uma foto de Hugo está aberta.

— Pode ser considerado trágico?

Ela o pesquisou no google depois dos primeiros trinta minutos que passou ouvindo sobre o homem e esse foi só mais um dos momentos em que me senti estúpida. Eu poderia simplesmente ter digitado o nome do pai de Beatrice na maldita barra de pesquisas e muitas surpresas teriam sido evitadas.

— Num em que ele é um babaca arrogante e pai da minha aluna.

— Bem, eles vão se mudar em pouco mais de vinte dias. Ela não vai mais ser sua aluna.

— Mas ele vai continuar sendo um babaca arrogante. Felizmente pra mim, a quilômetros de distância.

— Sua definição de felicidade é tão diferente da minha...

— Isso é porque você nasceu com o medidor de bom senso quebrado, Mel. Só por isso.

*** HUGO MALDONADO ***

O ar frio das primeiras horas da manhã golpeando meus pulmões é bem-vindo a cada movimento que força meu corpo ao limite durante a corrida, exigindo que eu me esforce para controlar minha respiração. E esse é o exercício que me dá prazer de verdade, o do controle.

Na maior parte dos dias me conformo com a esteira, na academia de casa, mas às vezes tudo o que o aparelho faz é com que eu me sinta um rato na porra da roda, correndo, correndo, sem jamais chegar a lugar algum. Em qualquer dia da semana, odeio aeróbicos.

Fazê-los, ainda assim, é uma demonstração de autodomínio que aprecio, mas quando meu desprezo pela atividade física se mostra maior do que minha vontade de exercer controle sobre mim mesmo, isso significa que eu preciso exercê-lo de maneira ainda mais intensa, por isso saio para correr. Se eu não terminar o circuito, não volto para casa.

Olho para o relógio em meu pulso. Quase dez quilômetros percorridos e a energia nervosa continua tão acumulada em meu corpo quanto estava mais cedo, no momento em que comecei o exercício. O suor escorre em meu pescoço, braços, lombar e rosto e o impacto dos meus passos contra o chão envia choques pelos meus músculos.

Continuo em frente, já avistando os portões de entrada da minha casa e contrariando a vontade latente de fazer o retorno. Sei que não posso continuar correndo indefinidamente até dissipar a sensação inconveniente. Mesmo que pudesse, de nada adiantaria, minha ansiedade tem nome e sobrenome: Pedro Fernandes.

As reações incitadas por sua presença anunciavam uma tragédia iminente desde a primeira vez em que coloquei meus olhos nele e percebi não ser capaz de desviá-los imediatamente. Irritação, curiosidade, atração. Essa última tão potente e inesperada que mesmo que eu tenha saído da reunião, dois dias atrás, puto pra caralho, também saí duro pra caralho.

Enquanto minha mente não podia acreditar na audácia daquele homem, meu corpo pareceu ter adorado cada palavra de desafio que deixou a boca cheia e bem desenhada. Só pode ser a porra de uma piada.

Arrasto a mão pelos cabelos, empurrando alguns fios úmidos de suor para trás e começando a diminuir o ritmo até estar caminhando.

— Bom dia, Valter — cumprimento o porteiro ao entrar na propriedade e rumar na direção da entrada pelo caminho de pedras.

— Bom dia, seu Hugo. — O homem, que ainda não havia começado seu expediente quando saí, responde.

O sol já quente avisa sobre mais um dia de verão no meio do outono carioca e eu olho ao meu redor. Observo os jardins verdes, a fachada de arquitetura contemporânea da casa onde vivi nos últimos seis anos e só agora me permito pensar que também vou sentir falta daqui. Desde que a mudança se tornou um fato, minha única preocupação foi Beatrice e eu não tive tempo para processar como eu mesmo me sinto a respeito dela.

Quando perdemos Thaís, não consegui continuar morando na casa onde havíamos vivido juntos por doze anos, desde o nosso casamento. Eu precisava de um novo começo. Beatrice precisava de um novo começo, um que não fosse marcado, até nas cores das paredes, pela presença fantasma de sua mãe.

Eu amei minha esposa com loucura e desejei, todos os dias, por muito tempo, que tivesse sido ela a viver e eu a morrer naquela noite, às vezes, ainda desejo, na verdade. Mas eu sabia que precisava fazer o melhor para minha filha e me permitir me afogar na dor da perda eternamente não era isso. Então levantei, um dia após o outro, e vivi. Continuo levantando e vivendo.

Atravesso o acesso ladeado por gramados à porta de entrada e posiciono o dedo sobre o leitor de digitais ao alcançá-lo. A porta se abre e eu passo por ela, indo direto para a cozinha.

Abro a geladeira e tiro de lá a bebida pré-treino já pronta para minha rotina matinal de domingo. Primeiro o exercício aeróbico, depois, um par de horas na academia e por último, acordar Beatrice e prepará-la para o almoço de domingo que hoje será na casa dos meus pais.

Levo a garrafa até a boca e o sabor artificial de baunilha inunda meu paladar quando tomo alguns goles. Basta que minha mente se esvazie de propósitos e da agonia do exercício físico intenso por um segundo para que Pedro a assalte outra vez. Deixo a garrafa sobre a bancada da cozinha e estico os braços, apoiando-os também sobre ela.

Eu realmente achei que o cara seria inteligente o bastante para não me irritar, afinal, eu estou oferecendo quase quatrocentos mil reais para que ele faça companhia para minha filha nos próximos seis meses. Ainda assim, o dinheiro que estava prestes a ganhar, ou a perder, não parecia sequer ser uma preocupação.

Seu desapego evidente a esse detalhe me intrigou mais do que qualquer outra coisa e não foi nada difícil descobrir o porquê. Minha secretária levou menos de duas horas para me entregar um relatório com notícias que não poderiam ser mais surpreendentes nem se tentassem.

Acontece que o professor Pedro é, na verdade, Pedro Alves Fernandes, herdeiro do império Perséfone de cosméticos e desde que descobri isso, não consigo parar de me perguntar por que ele está trabalhando como auxiliar de turma e morando num apartamento minúsculo no bairro do Maracanã com uma colega de quarto.

Para ser sincero, essas não foram as únicas perguntas que me fiz, mas foram umas das poucas que ficaram sem resposta depois que eu solicitei uma pesquisa muito mais profunda do que a feita pela minha secretária. Pedro saiu de casa aos dezessete anos e nunca mais voltou. Sua avó é figurinha carimbada nos eventos da alta sociedade carioca, mas o neto não aparece em uma foto sequer há anos. Na única que encontrei, ele ainda era uma criança.

Apesar da fortuna herdada com a morte do pai, Pedri frequentou uma universidade pública e parece não gastar um real sequer do dinheiro que é seu por direito. Pelo menos, não para viver. Ele não tem um carro, o apartamento onde mora é alugado e até mesmo sua lista de supermercado é simplista, para dizer o mínimo. Por quê?

O som de uma chamada sendo recebida interrompe meus pensamentos e eu ficaria grato pela interrupção, se o nome piscando na tela do meu relógio não fosse o do meu irmão.

— Por que caralhos você tá me ligando às seis da manhã de um domingo, Breno? — atendo, tocando na tela em meu pulso e a voz grossa soa em meus ouvidos, nos fones intra-auriculares.

— Você não é o único que gosta de manter a rotina de exercícios antes de se empanturrar nos almoços de domingo.

— Eu não me empanturro — respondo, tomando mais um gole da minha bebida e meu irmão estala a língua.

— Não, você é controlado demais até pra comer — desdenha. — Ele disse não, não disse? — Muda de assunto abruptamente.

— Quem? — Me faço de desentendido.

— O cara que você prometeu dar a sua filha como se fosse a porra de um boneco. — O sorriso na voz de meu irmão é irritante pra caralho.

— E o que te faz ter tanta certeza de que ele disse não? — desconverso, apoiando os quadris contra a pia da cozinha.

— O fato de você não ter me ligado pra esfregar na minha cara que eu estava errado e você certo.

— Esse não é o tipo de coisa que eu faria.

— Certo, você tem razão, não é. Você apenas me mandaria um memorando, certo? — suspiro e levo os dedos polegar e médio às pálpebras fechadas e massageio ali.

— O que você quer, Breno? — pergunto e meu irmão estala a língua. Estreito os olhos, aguardando pela resposta que tenho quase certeza de que não vou gostar.

— Sabe — começa e faz uma pausa dramática apenas para me irritar. — Me ocorreu que se o Pedro não aceitar sua proposta… — Outra pausa desnecessária e eu expulso o ar dos pulmões com força, sentindo-me exausto demais para as seis da manhã da porra de um domingo e a culpa é toda do filho da puta que nasceu da mesma barriga que eu. — Ele não vai mais ser professor da Be, o que significa…

— Não significa porra nenhuma! — interrompo seu raciocínio sabendo exatamente o que ele estava prestes a dizer.

— E eu posso saber o porquê?

— Porque eu não volto atrás com a minha palavra, Breno. Se eu prometi à Beatrice que ela poderia levar o homem, eu vou cumpri-la. — Tudo bem — concorda. — Mas no caso de…

— Breno — digo entredentes. — São seis da manhã, você realmente tem alguma coisa pra dizer ou ligou sem nenhum outro propósito além de azedar meu dia?

— Seus dias estão sempre azedos — resmunga. — Eu vou buscar a Be na escola amanhã — avisa.

— Por que? — desconfio.

— E desde quando eu preciso de uma razão pra ver minha sobrinha, Hugo?

— Desde que eu acho que você pode estar usando minha filha como um pretexto pra se aproximar do professor dela.

— Vai se foder, Hugo — rebate imediatamente, ofendido com a minha sugestão e eu reviro os olhos com sua sensibilidade.

— E você não podia ter me falado isso daqui algumas horas? Quando me encontrasse na casa dos nossos pais?

— Podia, mas não fiz.

*******************

— Não quero o brócolis — Beatrice diz enquanto sirvo seu prato.

— Mas vai comer assim mesmo. — Coloco uma árvore em miniatura ao lado do arroz e do feijão.

— Mas pap… — começa e eu a interrompo com um olhar.

— O que nós conversamos sobre quando o papai diz não, Beatrice?

— Que não é não.

— Exatamente.

— Mas eu não gosto de brócolis, papai. — Os olhinhos castanhos escuros me encaram suplicantes, tentando me convencer em silêncio. Manipuladorazinha.

— E precisa comer ainda assim, pra ficar forte. Coloquei só um — negocio ao deixar o prato diante da minha filha.

Sentados à mesa, ao nosso redor, meus pais e Breno observam a cena em silêncio e pelos olhares em seus rostos, sei que estão prontos para sair em defesa de Beatrice ao mero sinal de mais um protesto. É sempre assim.

Os almoços de domingo também poderiam ser chamados de almoços de adoração à minha filha. Inclino a cabeça, lhes avisando que não façam isso e, como tem acontecido com muito mais frequência do que eu gostaria, a voz irritantemente sensual de Pedro soa em meus ouvidos.

“Talvez ela seja adorada demais.” O professor disse. Bem, e “talvez Pedro seja intrometido demais”. Bufo baixinho para mim mesmo antes de olhar para minha filha, que observa contrariada a verdura que ela não quer comer no prato.

Somando mais uma às muitas reflexões que fiz sobre a reunião escolar nos últimos dias. Não me orgulho da maneira como reagi, mas ninguém vai me ouvir dizer isso. Não acho que Pedro esteja certo sobre Beatrice se isolar, no entanto, sei que ele está certo quando diz que o papel da escola é observar e apontar possíveis problemas. O meu é garantir que eles sejam investigados e resolvidos antes que virem uma bola de neve e realmente possam prejudicar o desenvolvimento da minha menina, mas Deus sabe que aquele homem me tirou do sério.

Mesmo que a cada vez que ele tenha aberto aquela boca, meus pensamentos se dividissem entre querer discordar terminantemente dele e se focar no fato de que sua segurança ao falar era sexy pra caralho. Olho para Breno, seus olhos estão estreitados em minha direção.

Uma imagem dele conversando com Pedri amanhã, quando for buscar Beatrice na escola toma forma em minha imaginação e eu não gosto dela. Balanço a cabeça e volto minha atenção para minha filha. Beatrice vira o rosto na direção contrária à minha, achegando-se para minha mãe, do seu outro lado, enquanto pega o garfo e revira o brócolis no prato. Estreito os olhos, me perguntando se é a esse tipo de fuga a que seu professor se referiu.

— Beatrice — alerto e ela solta um suspiro resignado fofo pra caralho antes de espetar a verdura e levar à boca. Eu sabia que ela comeria o que não quer primeiro. Be prefere se livrar do que é inconveniente antes de aproveitar aquilo que gosta.

Balanço a cabeça em aprovação quando ela me olha depois de ter engolido. Observo seu olhar reticente se transformar num sorriso satisfeito por ter me agradado. Levo a mão ao seu rosto antes de deixar um beijo em sua testa e aspirar lentamente o cheiro dos seus cabelos.

Ouvi muitas vezes, antes de Beatrice nascer, o tipo de mudança que minha vida sofreria depois que ela chegasse ao mundo. As pessoas continuavam dizendo que eu seria capaz de pisar no fogo, atravessar distâncias inimagináveis, que seria capaz de fazer coisas até então classificadas como impossíveis, me diziam que eu seria capaz de tomar uma bala por ela sem pestanejar, mais do que isso, que eu seria capaz de transformar o inferno num parque de diversões se esse fosse o necessário para fazê-la sorrir.

Eu acreditava, mas não entendia, não até olhar para a minha filha pela primeira vez e ver meu mundo ser virado de cabeça para baixo em uma fração de segundo. Até eu ser tomado por um sentimento tão intenso e poderoso que a maior dor do mundo simplesmente não era mais importante do que cuidar e proteger aquele serzinho minúsculo, completamente dependente de mim.

Solto um longo suspiro quando essa mesma certeza me obriga a uma admissão que eu jamais faria se não se tratasse de Beatrice: Pedri pode ser extremamente irritante, mas tinha razão. Inclusive em me acusar de me recusar a ser racional. Só espero que ele não conte com que eu admita isso em voz alta, porque não vai acontecer.

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Comentários

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O conto é lindo e estava sentindo falta de uma continuação. Agradeço pelo retorno e espero que o motivo da sua ausência não tenha sido nada muito grave e seja o que for que já esteja resolvido. Sinto falta também em outros contos que você deixou parado. Obrigado e forte abraço.

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