CAPÍTULO 14: 8 ou 80
NARRADOR: HECTOR
Desde que abri os olhos para a verdade sobre mim mesmo, a luta contra as tentações têm sido uma batalha constante. Me chamo Hector, e sou um jovem gay que por anos travou uma guerra interna contra o vício das drogas. A vida me apresentou desafios inimagináveis, mas aqui estou, diferente de 'amigos' que seguiram um outro caminho.
João entrou em minha vida quando eu menos esperava. Ele descobriu o meu segredo, a sombra que eu tentava esconder debaixo do tapete e, ao invés de se afastar, ele aceitou cada pedaço de mim, inclusive os fragmentos marcados pelo vício. Era estranho, mas a sua aceitação virou uma luz no fim do túnel escuro que eu construí.
Resistir às tentações não é fácil. A cada dia, os demônios do passado tentam me puxar de volta para uma vida desenfreada, mas é na terapia e no grupo de apoio "Um Passo por Vez" que encontrei forças para seguir em frente. Nessas sessões, compartilhamos nossas histórias, dores e vitórias. Juntos, encontramos a coragem necessária para enfrentar um dia de cada vez.
No meio dessa jornada, percebi que usar minha frustração como combustível no trabalho era uma forma de canalizar a energia negativa. Como designer gráfico, aceitava todos os jobs que apareciam, mas meus colegas não sabiam que, enquanto criava obras de artes, travava uma batalha interna contra o vício que ameaçava me consumir.
Fui explorado por colegas que nem desconfiavam do meu dilema. Eles me viam como alguém dedicado ao trabalho, sem perceber que o excesso de tarefas era uma tentativa desesperada de manter minha mente longe das drogas. Mas, ao mesmo tempo, essa dedicação se tornou uma fuga saudável, uma forma de reafirmar que sou mais do que meu passado.
Em meu discurso nas sessões do grupo, costumo destacar a importância de estar ocupado, de encontrar propósito nas pequenas coisas do dia a dia. Mas, ao mesmo tempo, percebo que há um equilíbrio delicado entre ocupação e exploração.
Apesar de todas as batalhas, afirmo com convicção que estar sóbrio é a melhor decisão que já tomei. As drogas, por mais que tenham amenizado a falta dos meus pais, nunca me trouxeram verdadeira felicidade. A aceitação de João, o apoio do grupo "Um Passo por Vez" e a paixão pelo meu trabalho são agora os alicerces que sustentam minha jornada de recuperação. Um passo por vez, seguindo em frente, construindo uma vida além das sombras do vício.
— Boa noite. — desejei aos participantes do 'Um Passo por Vez'. Durante os anos, eu acabei me tornando um dos conselheiros dos novos participantes. — Bem-vindos ao projeto 'Um Passo Por Vez'. Eu me chamo Hector Fernandez, sou ex-dependente químico, e vou ser o moderador deste encontro.
Olhei ao redor da sala de reuniões, que funcionava em uma das igrejas do meu pai. As cadeiras em círculo representavam a união daquelas pessoas que possuíam o mesmo objetivo. Naquela noite, o projeto reunia um novo grupo de indivíduos que, como eu, trilhavam a difícil jornada da recuperação.
Explique a dinâmica do encontro. Então, pedi para as pessoas se apresentarem. De repente, uma mão foi erguida e a atenção de todos se voltaram para uma moça com a expressão cansada. Seu nome era Helena Vieira e decidiu dar uma guinada em sua vida, após meses de abuso de medicamentos.
Ela nos contou sobre sua vida antes do vício, um tempo onde a esperança ainda fazia parte de sua rotina. Contudo, as coisas mudaram após um aborto que a deixou emocionamente despedaçada. O caminho para a autodestruição iniciou quando ela buscou alívio nos remédios, um escape temporário que rapidamente se converteu em uma prisão.
Seus olhos marejados revelavam a dor que carregava. A sala estava silenciosa, exceto pelas palavras sinceras que saiam de Helena. Todos nós, em diferentes estágios de recuperação, nos identificamos com a luta que ela enfrentava. A perda pode ser uma porta para a autodestruição, mas cabe a nós a iniciativa de mudar, de lutar, de sobreviver.
— Eu não quero morrer. — contou Helena chorando copiosamente. — Tenho um filho de cinco anos, o Matheus. Ele é tudo para mim.
Quando Helena concluiu sua narrativa, um silêncio respeitoso tomou conta da sala. Como mediador, tive que encontrar uma sensibilidade e encorajar Helena com palavras de apoio.
— Pessoal, — ofereci um pacote de lenços para Helena. — as dores fazem parte do processo de libertação. Não é uma tarefa fácil, porém, temos que lembrar das pessoas que importam para nós. Fora que este grupo está aqui para oferecer uma mão amiga e um abraço apertado. Você não está sozinha, Helena. Este broche. — mostrei o objeto para o grupo. — Significa o primeiro passo. É ele que define o início da nossa jornada. Ele é sempre o mais difícil. Vocês já são vitoriosas só por estarem na reunião. — entreguei o broche para Helena, que sorriu pela primeira vez desde que começou a contar sua história.
Algumas histórias me destroem, entretanto, utilizo como combustível para seguir no meu trajeto de sobriedade. Confesso que as drogas não são mais atrativas como costumavam ser. Porém, não posso perder o foco, principalmente, com o João em minha vida. Estamos namorando há uma semana. Ele é muito bom para mim. Sinto que nossa história tinha que acontecer de um jeito ou de outro. Obrigado, Alex e Mauro.
Naquele fim de semana, peguei o meu namorado para uma noite romântica. Aproveitamos uma folga em nossas agendas e fomos dar um passeio pela vida noturna do Rio de Janeiro. Durante muitos anos, eu evitava demonstrar afeto na rua, mas com o João era diferente. Ele segurava a minha mão com firmeza, como se soubesse que aquela noite seria especial. Escolhemos um pequeno restaurante, com mesas ao ar livre, proporcionando um ambiente acolhedor para as nossas conversas profundas.
A luz fraca destacava as feições de João, seus olhos curiosos esperando por cada palavra minha. Eu decidi abrir o meu coração naquela noite, compartilhando com ele minha jornada de luta contra a dependência química. Falei sobre as noites escuras e solitárias, as promessas quebras e a batalha constante contra os meus demônios internos. João ouvia com atenção, suas expressões variando entre surpresa, compaixão e carinho.
— Hector, você é incrível por ter superado tudo isso. Estou aqui para te apoiar, não importa o quê. — ele pegou em minha mão e acariciou.
— Obrigado, bebê. Isso é importante. Sabe qual foi a primeira coisa que o Alex fez quando contei sobre a minha dependência? — perguntei e João ficou prestando atenção. — Quem tem telhado de vidro bate carreira no teto. — dei um sorriso fraco e tomei um pouco de suco.
— Que cretino. Sinto muito por isso, Hector. Por favor, você pode sempre me dizer quando não se sentir à vontade com algum comentário ou piada. — ele disse.
— Pode deixar.
Sorri, pois me senti grato por ter alguém tão compreensivo ao meu lado. Mas a conversa não parou por aí. Falamos sobre nossos gostos e preferências, descobrindo detalhes que, embora pequenos, tornavam nosso relacionamento ainda mais especial.
— Eu sou mais fã de peixe do que de carne vermelha. — confessou João, rindo, ao olhar para as opções no cardápio. — E você?
— Na verdade, também prefiro peixe. — respondi, surpreso pela sintonia dos nossos gostos.
Descobrimos que ambos amávamos suco de maracujá, compartilhando risadas sobre como a acidez da fruta combinava com a doçura do nosso humor, o que é mentira, porque não fazemos o gênero garoto ácido. E assim, entre confissões e sabores, a conexão se aprofundava.
Outro tópico frequente em nossas conversas era a jornada de João e José em busca de suas raízes. Eles estavam se aproximando cada vez mais de seus pais biológicos, Jayme e Patrícia, e ansiosamente aguardavam o encontro com seu avô, Fernando, que estava em uma viagem de negócios em Dubai.
— Jayme e Patrícia marcaram um almoço para conhecer meus pais. — João compartilhou, revelando a notícia com uma mistura de animação e nervosismo.
Senti uma onda de ternura ao perceber o nervosismo de João. Nosso relacionamento florescia na simplicidade e nos detalhes cotidianos.
— Vai dar tudo certo, O seu Josué e a dona Esther são adoráveis. — eu assegurei, apertando sua mão mais uma vez. — Tenho certeza que o bolo de morango da sua mãe vai encantar os Telles.
— Disso eu não tenho dúvidas. Agora o João que me preocupa. — ele soltou.
— Com licença. — o garçom chamou a nossa atenção. — Um filé de tilápia à Belle Meunière. — ele colocou o prato na minha frente. — E uma tilápia assada com creme de cebola. — deixando o prato na frente do João. — Bom apetite. — desejou o rapaz, antes de sair.
— O que tem o José? — questionei, colocando o guardanapo sob o meu colo.
— Esse mundo não é nosso, Hector. A gente sempre viveu com pouco. Tenho medo que o José fique deslumbrado. — afirmou João, arrumando os óculos no rosto.
— Eu me deixe levar. Não é fácil, mas tenho certeza que o Jayme vai saber guiá-lo da melhor maneira possível. — falei. — Fora que o José tem você também. O melhor irmão do universo.
— Bobo.
— Só se for por você. — brinquei e tirei uma risada sincera do meu namorado. — Ei, você precisa provar esse peixe. Ele é uma das 10 maravilhas gastronômicas. Rapidamente, João experimentou e fechou os olhos.
— É uma delícia! — ele exclamou e percebi o seu rosto ficando vermelho.
— Fato número 43 sobre o João. Ele fica vermelho quando gosta de alguma coisa. — pensei comigo mesmo e sorri.
Eu queria viver este momento para sempre. Tudo bem, aqui é o Hector emocionado tomando de conta, entretanto, os meus dias são melhores quando estou ao lado dele. Seu jeito meigo, seu sorriso encantador e o beijo caloroso. Após o jantar, seguimos para o meu apartamento. Mal subimos no elevador e começamos a nos beijar. É um beijo demorado e saboroso. Tenho dificuldade para acertar a senha da trava na porta, mas o João me ajuda a lembrar.
Vamos direto para o quarto. Eu tiro toda a roupa e João faz o mesmo. Somos uma bagunça organizada. O João brinca que não vai tirar os óculos, pois queria lembrar de cada momento. Nunca chegamos a conversar sobre sexo. Eu não queria estragar nada pulando etapas, por isso, esperei o melhor momento para o meu namorado.
— Você tem certeza? — perguntei ao ver o João tirando a cueca e ficando hipnotizado. Acabei sentando na cama.
— Sim. — ele se aproximou se encaixando na minha frente e mordendo a minha orelha de leve. — Eu quero que você seja o meu primeiro.
Que noite. A melhor noite da minha vida. Eu amo quando as coisas acontecem a meu favor. O João é tudo o que eu sempre quis. Ele é perfeito em todos os sentidos. Eu sei que ainda vamos aprender muita coisa um sobre o outro. E nem tudo vai ser um mar de rosas, eu sou emocionado, mas não sou otário. Relacionamento é uma construção constante com várias etapas e muito diálogo. Porém, o que eu vivenciei hoje vai entrar para o Hall de Melhores Momento da Minha Existência!
— Você tá bem? — questionei, enquanto o abraçava e nossos corpos suados me davam a sensação de segurança.
— Sim. Obrigado por ser gentil. Desculpa qualquer coisa e...
— Você foi perfeito, João. Fora que foi a sua primeira transa.
— Eu tô com vergonha. — ele se cobriu com o cobertor.
— Você tem que parar de ser tão adorável. — brinquei, mas a nossa risada foi abafada pelo som do celular dele.
— Hum. — João saiu debaixo das cobertas, pegou o celular e atendeu. — Oi, mãe. O quê?! — João ficou de pé, quase tropeçando e pegando suas roupas no chão. — Calma, mãe. Eu tô chegando. — desligando o celular.
— O que foi?
— A minha casa. — João parou de falar e começou a se vestir.
— O que tem a sua casa?
— Tá pegando fogo. A minha casa tá pegando fogo, Hector. — as lágrimas começaram a escorrer dos olhos dele.
— Puta merda. — soltei. — Calma. Vamos para lá. — peguei as minhas roupas no chão e as vesti da forma mais rápida que pude.
Lá se foi o melhor dia da minha vida.