Eu e a banda do Lipe, que a essa altura eu já chamava de minha banda também, continuávamos a fazer shows em algumas festas. Uma das mais marcantes foi no fim de maio.
Era uma festa de jovens, então escolhemos cantar rock.
Por puro azar, encontramos um menino da escola que fez questão de anunciar que eu e Lipe éramos namorados, fazendo com que nós atraíssemos toda a atenção dos convidados.
- E agora? - perguntou Lipe aflito.
- Agora nada, a gente faz o show como combinado. Ninguém tem nada a ver com isso.
- Mas e se eles, sei lá, nos vaiarem por causa disso?
- Para nos prevenir contra isso, teremos que nos superar. Temos que deixá-los tão embasbacados que não tenham vontade nenhuma de vaiar.
- E como a gente vai fazer isso? - perguntou Lipe desconfiado.
- Deixa comigo.
Fui correndo ao banheiro e me posicionei de frente ao espelho.
Baguncei meu cabelo, que eu sempre usava mais certinho, e arranhei de leve meu próprio rosto, apenas para deixá-lo vermelho.
Rasguei um pouco minha camisa também completando aquele visual meio underground. Voltei à sala de ensaio onde os meninos já preparavam os instrumentos. Eles se assustaram ao me ver.
- O que é isso? - perguntou Lipe.
- Além de combinar com o clima de rock, vai servir para o propósito que te falei. Vamos chocar esse povo!
Lipe riu admirado.
- Você é muito autoconfiante, né?
- Tenho que ser, caso contrário nem subiria no palco.
- É por isso que eu te amo. - ele falou me dando um selinho carinhoso.
- Eu também te amo. - falei baixinho e depois me virei para a banda - Agora ao trabalho pessoal. Só uma pequena mudança. A terceira música trocou de lugar com a primeira.
- Por quê?
- Para deixar bem claro o que somos e para quê viemos.
- Ok, então...
Subimos ao palco. Todos nos olhavam curiosos. O meu visual realmente estava chamando a atenção. Peguei o microfone e, aos primeiros acordes da guitarra de Lipe, comecei a cantar o hino composto por Cazuza:
"Mais uma dose?
É claro que eu estou a fim
A noite nunca tem fim
Por que que a gente é assim?
Agora fica comigo
E vê se não desgruda de mim
Vê se ao menos me engole
Mas não me mastiga assim
Canibais de nós mesmos
Antes que a terra nos coma
Cem gramas, sem dramas
Por que que a gente é assim?
Mais uma dose?
É claro que eu tô a fim
A noite nunca tem fim
Baby, por que a gente é assim?
Você tem exatamente
Três mil horas pra parar de me beijar
Hum, meu bem, você tem tudo
Pra me conquistar
Você tem exatamente
Um segundo pra aprender a me amar
Você tem a vida inteira
Pra me devorar
Pra me devorar!"
(Por Que a Gente é Assim? – Cazuza/ Frejat/ Ezequiel Neves)
Com o fim da música vieram os primeiros aplausos dos muitos que receberíamos aquela noite, calando a boca dos que torceram o nariz para nós.
As semanas foram passando rapidamente e quando nos assustamos já estávamos de férias de meio de ano. Tudo continuava na mesma: eu e Lipe felizes, a família dele fingindo que ele não existia, e Bruno ainda dentro do armário, mas namorando Zeca. Combinamos de passar duas semanas na serra gaúcha e fomos.
Nos hospedamos em Gramado e de lá fizemos um tour pelos pampas e pela serra. Era inverno e fazia muito frio, mas foi bom porque os dois casais ficaram ainda mais grudados.
Foi uma viagem perfeita, daquelas que a gente nunca mais esquece. Em um dia, Bruno e Felipe estavam dormindo tão profundamente que eu e Zeca resolvemos descer sozinhos para tomar o café da manhã. Eu já tinha adquirido a habilidade de perceber quando ele estava abatido, como naquela hora.
- Por que essa cara?
- Ah, é que o Bruno resolveu se assumir para a mãe assim que voltarmos para BH.
- Isso é bom, não?
- É... - ele falou meio indeciso.
- Desembucha! O que está passando pela sua cabeça?
- Bom, é que eu estou pensando se não fui muito egoísta em exigir uma coisa assim dele, até porque eu não tenho a mínima intenção de me assumir para os meus pais.
- É diferente, tenho certeza que ele entende isso.
- Tá, mas se isso for um erro.
- Se for um erro, é um erro necessário. Uma coisa é esconder dos seus pais que moram a 200 quilômetros daqui, outra é esconder da minha tia que mora praticamente ao lado de vocês. Acho que ele entendeu a situação, por isso decidiu se assumir.
- Você acha mesmo que estamos fazendo a coisa certa?
- E qual a outra opção de vocês? Continuar namorando escondido? Isso não é felicidade.
Ele me olhou sorrindo.
- Quando foi que você cresceu tanto que eu não vi?
Ri também tímido pelo comentário.
- Em grande parte é devido a você, que sempre estava lá me ajudando e me ensinando a resolver meus próprios problemas. Outro fator importante foi a música, que me deu a força e autoconfiança necessárias para enfrentar o que for.
- Saiba que, como um irmão mais velho, eu estou muito orgulhoso da pessoa que você está se tornando.
- Quem diria, não sou mais aquele menino chorão e assustado. Eu cresci. - falei rindo.
Passamos mais alguns dias por lá, completando uma semana.
Voltando no avião, eu podia ver a tensão no corpo de Bruno. Contei tudo ao Lipe, que também deu o maior apoio a ele. Achamos melhor que Zeca e Felipe fossem direto para suas respectivas casas, e que eu ajudaria Bruno se ele precisasse. Assim seria menos impactante para minha tia. Sim, seria um impacto, ela realmente acreditava que o filho era heterossexual, dava para perceber pela forma que ela falava de netos e noras.
Chegamos num sábado de manhã, nos despedimos de nossos namorados, e pegamos um táxi direto para a minha casa. Bruno tremia.
- Coragem. - falei apertando sua mão.
- Agora não volto mais atrás, é definitivo.
Descemos com as malas, pagamos o taxista e subimos pelo elevador.
Ao abrirmos a porta do apartamento, minha mãe e minha tia já vieram correndo até nós, nos abraçando e beijando.
- Como foi a viagem?
- Ótima, o lugar é maravilhoso. - respondi.
- Que bom que gostaram, trouxeram fotos?
- Muitas. - respondi novamente, Bruno estava mudo.
- Bom; o que vocês acham de irmos almoçar fora e vocês nos contarem tudo? E só o tempo da gente se arrumar e... - Bruno interrompeu minha tia.
- Talvez depois mãe, eu tenho uma coisa para te contar. - ele falou firme, repleto de coragem.
- O que é? - ela falou sem nem dar muita atenção.
- É melhor você se sentar.
Ela olhou assustada e seguiu seu conselho. Minha mãe me olhou desconfiada, como se perguntasse o que estava acontecendo, mas apenas fiz sinal que era assunto dos dois.
- O que é meu filho, você está me assustando. - falou tia Marta visivelmente preocupada.
- Mãe, eu...
Sua voz falhou e ele olhou para mim. Sibilei “coragem” para ele, que voltou a olhar para a sua mãe e confessou:
- Mãe, eu sou gay.
Sabe quando todo mundo se cala num momento de tensão fazendo com que ele pareça interminável? Pois é, foi isso que aconteceu depois de Bruno ter contado à minha tia que é gay.
Tia Marta não tinha expressão no rosto, nem raiva, nem surpresa, nem tristeza, nem alegria, nada. Minha mãe fez uma cara como se dissesse “podiam ter guardado segredo mais tempo”. Bruno, ao meu lado, voltou a ficar nervoso e tremer.
- Mãe, fala alguma coisa. - pediu com voz de choro.
Tia Marta então teve a reação mais imprevisível possível: começou a rir. Ela chorava de rir e escondia o rosto no sofá enquanto fazia isso.
Eu, Bruno e minha mãe nos olhamos sem entender sua reação.
- Ai, gente, assim vocês me matam! - ela falava ainda rindo. - Que coisa absurda! O Bruno? Gay? Sem chance, esse menino saiu aqui de dentro, conheço ele muito bem.
- Mãe, por favor... - Bruno pediu começando a chorar.
- Ai, para, para...
Era uma cena perturbadora: Bruno chorando e tia Marta gargalhando. Eu me senti infinitamente incomodado com aquilo. Era horrível de se ver. Ali eu percebi que tia Marta não ia aceitar bem a homossexualidade do filho.
- Mãe! - ele gritou segurando ela pelos ombros. - Eu sou gay.
O sorriso da minha tia foi se perdendo no rosto. Seus olhos se encheram de lágrimas também.
- Você não é!
- Sou, mãe, sinto muito.
- Eu não te criei para isso! - ela gritou o empurrando para longe dela.
Minha mãe foi intervir a segurando. Minha tia chorava falando palavras de negação enquanto mamãe tentava acalmá-la.
- Fora da minha casa! - ela gritou para Bruno. - Fora!
Bruno, chorando ainda mais, abriu a porta do apartamento e correu indo embora. Fui atrás dele. Ele pegou o elevador e não me esperou. Corri nas escadas e cheguei ao saguão um pouco depois dele. Ele ainda corria, só na esquina eu consegui o alcançar.
- Calma, Bruno! - falei o abraçando.
- Você ouviu ela, ela me odeia, Bernardo, me odeia! - ele falou chorando.
- Não, não odeia, só foi um susto muito grande. Você precisa dar um tempo para ela se acostumar com a ideia.
- Ela não vai se acostumar, ela me odeia...
- Não, não Bruno, se acalma...
Como ele não estava nada bem, fiz questão de acompanhá-lo até seu apartamento. Coloquei ele para dormir e fui embora, mas não sem antes ligar para Zeca contando tudo o que aconteceu.
Ele disse que logo chegaria lá. Fui então para casa não sabendo o que me esperava. Será que minha tia era uma pessoa tão preconceituosa assim? Mas ela sempre me aceitou tão bem... E como seria nossa relação dali em diante? Será que ela me culparia de alguma forma por tudo o que aconteceu?
Ao chegar em casa só encontrei minha mãe sentada no sofá. Pelo jeito que ela estava eu entendi que ela me esperava para conversar.
- E a titia?
- Dei um calmante forte e ela foi dormir. Agora me conte que loucura é essa?
Suspirei, sentei ao seu lado no sofá e lhe contei a história toda, inclusive sobre o namoro de Zeca e Bruno. Ela se mostrou surpresa, e não era para menos, Bruno nunca demonstrou nada.
- E agora? Como vai ser? Tia Marta via renegar o Bruno? - perguntei preocupado.
- Não sei... Nunca a vi desse jeito. Vocês foram bobos, deviam ter me contado e eu ajudaria a preparar o terreno.
- O Bruno não quis. Para ele é muito difícil.
- Entendo... E como ele ficou?
- Dormiu exausto, do choro e da viagem. Antes de sair de lá pedi ao Zeca para ir lhe fazer companhia.
- Isso é bom.
Ela parou pensativa. Decidi perguntar sobre aquilo que estava me angustiando:
- Mãe...
- Oi?
- Você acha que tem alguma chance da tia Marta se virar contra mim depois disso tudo?
- Não, não. De jeito nenhum. Acima de tudo, sua tia sempre foi uma pessoa muito racional, sabe separar as coisas.
- É que eu tenho medo...
- Não tenha. Nada de ruim vai acontecer. - falou beijando o topo da minha cabeça. - Agora, vá desfazer suas malas enquanto eu faço o almoço.
O calmante era mesmo forte. Tia Marta só acordou no dia seguinte. Por recomendação da minha mãe, nem toquei no assunto com ela. Ela agiu como se nada tivesse acontecido, mas em nenhum momento tocou no nome do Bruno. Achei estranho e minha mãe explicou que isso era ela dando um tempo até se acostumar com a ideia.
Almoçamos juntos os três em casa.
À tarde Felipe me chamou para ir ao cinema.
- Mãe, vou sair com Lipe, viu?
- Certo, vá com Deus!
Pode ter sido apenas uma impressão, mas tia Marta pareceu visivelmente incomodada ao ouvir o nome do meu namorado. Será que aquilo a lembrava do filho? Fiquei com aquilo na cabeça e quando me dei conta já tinha chegado ao shopping onde encontraria Felipe.
- Está viajando por onde? - meu namorado me perguntou me dando um selinho.
- Hã? Ah, na minha tia...
- Ah é? O que aconteceu? Nem te liguei ontem porque desmaiei quando cheguei em casa.
- Você nem imagina o que aconteceu.
Contei tudo o que tinha acontecido para ele que pareceu chocado com a reação da minha tia.
- Mas ela parecia ser tão mente aberta.
- Pois é, também estranhei. Mas como dizem, a coisa muda de figura quando acontece dentro de casa.
- É... Só fico triste pelo Bruno.
- Eu também, mas tenho certeza que Zeca vai saber consolá-lo muito bem.
Fomos para o cinema e assistimos Homem Aranha.
Felipe era fascinado com super-heróis. Foi uma tarde divertida.
Ele me convenceu a ir para a casa dele transar, já que na minha o clima ainda estava estranho.
Entramos no apartamento felizes, brincando um com outro, mas paralisamos ao ver quem estava sentada ao lado de Fábio, aparentemente, nos esperando: Estela, a mãe deles.
Ela estava diferente desde a última vez que a vi. Seus olhos estavam fundos, seus cabelos mal arrumados, sua pele tinha mais rugas, e sua expressão era triste. Pelo seu olhar pude perceber que ela não esperava me encontrar ali.
- É melhor eu voltar depois, Lipe...
- De jeito nenhum, você fica. - ele falou firme me segurando.
Eu sabia o quanto era difícil para ele aquilo. Ele sempre adorou a mãe apesar de seus defeitos e sentia muito a falta dela.
- Olá... - ele falou sem jeito se sentando de frente para ela.
- Oi, meu filho. - ela falou chorosa. - Como você tem passado?
- Muito bem.
- Fico feliz com isso.
Silêncio. O clima não estava nada bom e eu me sentia um intruso ali. Fábio não esboçava reação, apenas permanecia de cabeça abaixada.
- O que você veio fazer aqui, mãe?
- Eu vim te ver, meu filho...
- Pois bem, já viu, então?
- Não me trate assim. Eu senti muito a sua falta.
- Então porque não fez nada para me ajudar?
- O que eu podia fazer? Ir contra o seu pai?
Ele riu sem humor nenhum, como se não acreditasse no que tinha acabado de ouvir.
- Lógico que você não iria contra ele, isso é impossível para você. Nem mesmo para proteger um de seus filhos! - ele falou cheio de mágoa e resignação.
- Não fala assim, Felipe... - ela pediu.
- Mãe, - ele falou tentando se acalmar. - o que você veio fazer aqui, afinal?
Ela pareceu vacilar por um momento.
- Vim te dizer que as portas da sua casa ainda estão abertas para você.
Ele ficou sem reação. Era tudo aquilo que ele queria: sua família de volta. Mas a vida já tinha nos ensinado que nada vem de graça, e ela estava pronta para nos demonstrar isso mais uma vez.
- Juntos nós conseguiremos te curar!
Felipe foi ficando vermelho e suas veias se tornaram aparentes devido à raiva.
- Me curar? Me curar de quê? - ele gritou.
- Dessa doença, desse maldita praga que esse menino te causou. - falou se referindo a mim com desprezo.
- Lave a boca para falar do meu namorado! E doente é a senhora que passou a vida inteira vivendo em função da felicidade dos outros. Eu me recuso a ser assim também! Quer saber? Sou gay, sim, e me orgulho disso. Me orgulho de ser uma pessoa melhor do que toda essa corja que vive atrás de uma parede de aparências. Eu me recuso a fazer parte da sua família! - ele gritava a plenos pulmões.
Estela chorava muito e Fábio foi a consolar. Segurei Felipe e puxei ele de encontro ao meu corpo, fazendo com que ele abafasse sua raiva no meu peito.
- É melhor você ir, mãe. - falou Fábio.
Ela se levantou ainda chorando e se preparou para sair. Ela fez menção a passar a mão sobre os cabelos de Felipe, mas ele se desviou e forçou a cabeça ainda mais contra mim. Estela me olhou com ódio e saiu do apartamento, acompanhada de Fábio.
Felipe levantou sua cabeça e me puxou para o quarto. Sem entender, me deixei levar. Entramos, ele trancou a porta e ele já veio para cima de mim se despindo. Não entendi.
- Felipe, o que você está fazendo?
- Não fala nada, Bê, apenas me ame. Me ame intensamente, tudo o que eu quero agora é ficar com você.
Compreendi que ele precisava se sentir amado depois de ter disparado aquelas duras palavras contra sua mãe.
Não sei se foi a melhor coisa a se fazer, mas assenti. Deixei que ele me despisse e comecei a beijá-lo. Eu tentava ser o mais romântico possível, fazendo tudo com carinho, mas ele não parecia querer amor e sim sexo.
Me mordia com desejo, o que devo confessar que era um tesão. Ele pegou um vidro de lubrificante, passou na mão e espalhou pelo cu.
Me puxou para cima dele me fazendo ser encaixado entre as suas pernas. Com cuidado fui posicionando meu pau na entradinha do seu cu, mas ele parecia querer sentir dor.
Me rodou na cama me fazendo ficar deitado com ele sentado em cima de mim. Ele então sentou de uma vez do meu pau. Ele gritou alto com a dor e minha primeira reação foi tentar abraçá-lo, mas ele me empurrou de volta e começou a cavalgar em cima de mim enquanto se masturbava.
Apesar de assustado com sua agressividade, não posso deixar de comentar que aquilo era super excitante. Não demorou muito e nós dois gozamos.
Ele caiu ao meu lado e começou a chorar escondendo o rosto no travesseiro. O abracei e ele se agarrou no meu pescoço.
- Me desculpa, Bê, eu não sei o que aconteceu comigo. - falou entre soluços.
- Shhh. Não precisa se desculpar, eu entendo. Apenas dorme um pouco, você está precisando.
Acho que ele quis se afirmar mais ainda que era mesmo gay e que havia sido honesto nas suas palavras ali na sala.
Exausto de tanto chorar e de ter transado com aquela intensidade, ele rapidamente dormiu.
Me levantei da cama, peguei uma toalha e limpei nós dois como pude.
Ele estava encolhido, agarrado a um travesseiro.
Parecia um anjo. Todo lisinho e rosado.
Delícia de menino lindo que ele era.
Meu instinto natural era protegê-lo de tudo e todos. Eu estava cumprindo o que prometi estando sempre junto, ao seu lado, nas horas difíceis, mas não fazia isso por obrigação... fazia com o maior prazer do mundo.
Eu queria ficar ali e dormir com ele, mas não tinha avisado minha mãe. Depois que Fábio chegou, fui embora deixando um bilhete para Lipe, falando que nos veríamos no dia seguinte.
Me assustei quando cheguei em casa e vi Bruno sentado à mesa junto com minha mãe. Olhei para eles como se procurasse explicação para isso e eles me responderam com os olhos para que não fizesse comentários.
Logo tia Marta apareceu vinda da cozinha com uma grande travessa de lasanha.
- Bernardo! - ela parecia estranhamente animada. - Que bom que você chegou, junte-se a nós.
Meio desconfiado me sentei à mesa também. Eu não estava entendendo nada. Será que ela tinha aceitado Bruno? Aquela hipótese logo foi por água abaixo quando vi a expressão triste no rosto do meu primo.
- Mas vocês não nos contaram da viagem ainda. - titia falou nos servindo de porções generosas.
- Foi ótima tia... - falei vendo que Bruno não falaria nada.
- E você, meu filho, gostou?
- O que está acontecendo aqui, mãe? - ele explodiu nos assustando.
- Como assim?
- “Como assim”? Você me chama para vir jantar com vocês e eu venho na esperança de resolvermos a nossa situação, mas está agindo como se nada tivesse acontecido, como se eu não tivesse te dito que sou gay.
- Não diga essa palavra na minha casa! - ela falou firme o encarando.
Fiz menção de me levantar, mas minha mãe me segurou.
- Sinto muito, mas é isso que eu sou, mãe.
- Ó, meu Deus, o que foi que eu fiz? - ela falou, chorando.
- Marta, não é para tanto... - tentou intervir minha mãe.
- Como não é para tanto? Se você criou seu filho com liberdade e o ama do jeito que ele é, ótimo, mas não foi assim que criei o meu. Não criei meu filho para ser apontado e motivo de piada na rua.
Não me magoei com as palavras dela. Facilmente se via que ela não tinha ódio ou preconceito contra gays, ela simplesmente queria proteger o filho e evitar que alguém o machucasse, como aconteceu comigo.
Como minha mãe me disse uma vez, é como se minha tia nunca tivesse cortado o cordão umbilical que a ligava a Bruno.
- Nem eu quero que seja assim, mãe, mas não temos como evitar. - Bruno falou triste. - Só cabe a você me aceitar agora.
- Mas eu não quero aceitar isso! - ela gritou. - Eu tenho muitos planos para você. Eu quero uma família grande, com muitos netos.
- Eu também quero filhos, só não vai ser com uma mulher.
- Preste atenção no absurdo que você está me dizendo, filho.
- Não é absurdo, mãe. Sou gay, e sim, isso limita muito a minha felicidade, mas não me impede de correr atrás dela. Casado com uma mulher, me fingindo de filho perfeito, eu não seria feliz nunca.
Tia Marta olhou para ele, derrotada. Quem visse podia jurar que ela não dormia há três dias. Ela se levantou da mesa, em silêncio, foi para seu quarto e fechou a porta. Ficamos os três nos olhando sem saber o que dizer.
- Você precisa dar mais um tempo para ela. - falou minha mãe para Bruno.
- Eu sei, só queria que ela me aceitasse.
- Ela vai; você viu que ela não tem preconceito. O problema é que isso destruiu todos os sonhos de uma vida perfeita que ela tinha para você. Ela só precisa de um tempo para sonhar novos sonhos.
- Obrigado por ficar ao meu lado, tia. - falou Bruno, abraçando minha mãe.
- Não há de quê. Conte comigo para o que precisar.
Bruno se despediu de nós e foi embora. Enquanto eu e minha mãe lavávamos a louça, fiquei pensando sobre todos os acontecimentos do último fim de semana. Dois modelos de mãe enfrentando a homossexualidade dos filhos.
Estela era a mãe que vivia de aparências, não gostava de ter um filho gay porque isso a afetava diretamente.
Tia Marta era a mãe que ama demais seu filho, e isso a machucava, pois era capaz de ver o quanto ele ainda ia sofrer com isso.
Nessa hora agradeci a Deus por ter a mãe que eu tenho. Abracei ela com força enquanto enxugávamos a louça.
- Obrigado por ser você. - falei ainda lhe abraçando e ela me respondeu com um beijo no topo da cabeça.
Em agosto as aulas voltaram e eu comecei a fazer cursinho com Lipe. Era uma rotina pesada, e por causa dela tivemos que diminuir a quantidade de shows que fazíamos. O lado bom foi que nós passamos mais tempo juntos. Evitamos contar para alguns dos nossos colegas sobre nosso relacionamento. Não por medo, mas por comodidade. Essa omissão não ia nos atrapalhar em nada, já que não tínhamos a intenção de nos agarrarmos nos corredores.
Tia Marta continuava em negação. Nunca tocava no assunto de Bruno ser gay, e quando alguém fazia isso ela rapidamente mudava o rumo da conversa.
Bruno não estava gostando nem um pouco daquilo, mas resolveu seguir o conselho da minha mãe e dar um tempo a ela. Zeca não estava nada feliz também, pois ele achou que poderia assumir seu namoro com Bruno assim que minha tia soubesse, mas isso não aconteceu. Aliás, não tiveram a oportunidade de contar para ela que tinha um genro, e muito menos que esse genro é o Zeca.
Setembro chegou e Renata veio com um convite duplo:
- Bêzinho do meu coração!
- Ih, lá vem... - brinquei sabendo que ela iria me pedir algo.
- No dia cinco do mês que vem eu vou fazer uma festa para comemorar meu aniversário de dezoito anos.
- Tá ficando velha, já vai até poder ser presa...
- Cala boca! - gritou se fingindo de brava. - Você vai e isso não é opcional.
- Eu imaginei... Vou estar lá.
- Claro que vai, mas quero te pedir um presente especial...
- Não te ensinaram que não é muito educado pedir presente? Contente-se com qualquer lembrancinha que eu te der. - falei rindo.
Ela não aguentou e riu também.
- É sério, quero te pedir uma coisa.
- Bom, se estiver ao meu alcance...
- Está. Quero que você, Felipe e a banda toquem lá.
- Ahh...
- Não aceito não como resposta.
- Bom... - fui pego de surpresa. - Então tá, a gente vai, né?
Ele começou a pular pela sala soltando gritinhos de animação e eu tive que rir da cena.
- Eba! Agora sim minha festa vai estar completa! E quando é que vocês estão cobrando para tocar?
- Para você, nada. Presente é presente.
- Ok, então, se prefere assim. Será que os meninos não vão se importar?
- Duvido, todos eles gostam muito de você, vão ficar felizes em te dar esse presente.
- Ótimo!
Como previsto, os meninos adoraram poder cantar para Renata. Ela sempre foi uma pessoa queridíssima na sala toda, todo mundo gostava muito dela.
No fim de semana prolongado do sete de setembro, eu e Lipe passamos todo o tempo agarrados um ao outro na casa dele. Até queríamos ter viajado, mas estávamos tão atarefados com escola, formatura, cursinho e banda que acabamos resolvendo apenas descansar mesmo. Ficamos apenas nos curtindo, sem pressa, sem preocupação. Nessas ocasiões é que se percebe que a felicidade realmente está nas pequenas coisas.
- Você não está esquecendo a sua promessa não, né? - ele perguntou.
Estávamos peladinhos atirados na cama no domingo de manhã após tomarmos café. Ele estava com a cabeça deitada em meu peito e eu fazia carinho nos seus cabelos.
- Que promessa?
- Ora, já esqueceu? Você prometeu dançar comigo no nosso baile de formatura!
Realmente já tinha me esquecido, tanta coisa tinha acontecido desde então.
- Bom, minha promessa está de pé. - respondi.
- Sério? - ele levantou a cabeça sorrindo e olhando nos meus olhos.
- Claro, eu vou adorar dançar com você no nosso baile de formatura.
- A gente vai ter coragem?
- Uai, a gente já se beijou em cima do palco na frente de todos, dançar não vai ser nada!
Ele riu gostoso se lembrando da cena.
- Aquilo foi um loucura... - ele comentou.
- Sim, mas foi uma loucura boa. Vai ser uma ótima história para contar aos nossos filhos e netos.
Ele me olhou assustado.
- O que foi?
- Você pensa em ter filhos comigo, formar família?
- Claro! Lógico que antes temos muitas coisas para viver, muitos lugares para visitar e muitas músicas para tocar, mas vai chegar uma hora que vamos querer sossegar e ter uma família.
Ele sorriu largamente, ainda me olhando.
- Eu não fazia ideia desses seus planos, mas gostei muito deles.
- Que bom. Mas nunca pensou mesmo em ter uma família comigo? - perguntei meio ressentido e ele percebeu.
- Não, nunca, mas não por causa de você. É porque nós somos homens, nossa única opção seria adotar.
- Poderíamos muito bem engravidar uma mulher artificialmente. Tem muita gente fazendo isso atualmente.
- Eu sei, mas ainda assim essa criança não seria nossa. Seria só minha ou só sua.
- Errado. Pai é quem cria, e vamos criar nossos filhos juntos. - falei firme.
Ele continuou me olhando sorrindo.
- Você pensa em tudo, faz planos para o futuro e está sempre com uma expressão decidida, como se já tivesse nascido sabendo o que queria. Você é tão adulto, Bê.
Eu sou um bobão, não sei como foi se apaixonar por mim...
Eu o abracei forte fazendo ele deitar sua cabeça no meu ombro.
- Eu não sei como me apaixonei por você, mas aconteceu. Hoje eu não sei como consegui passar tanto tempo sem você.
Ele riu abafando o som no meu pescoço.
- E você não é criança, você é leve.
Eu já passei por tanta coisa que adolescentes não deviam passar, que acabei amadurecendo rápido e perdendo essa leveza. Às vezes sinto como se estivesse perdendo a minha juventude... - divaguei pensativo por um instante. - Mas enfim, meu ponto é que você não é infantil, você é simplesmente leve.
Você não complica as coisas, está sempre de alto astral e contagia todos com sua alegria. Talvez seja por isso que me apaixonei por você.
Lipe levantou a cabeça e me beijou com carinho. Se deitou ao meu lado e eu me virei de lado, ficando um de frente para o outro na cama.
- Bom, e essa casa cheia de filhos que você imaginou para a gente no futuro, como é? - ele perguntou ainda sorrindo.
- Humm, deixa eu ver... É uma propriedade enorme no alto das Mangabeiras.
- Mangabeiras? Sabe quanto custa uma casa lá?
- Esqueceu que vamos ficar ricos cantando por aí?!
- Verdade. - falou rindo. - Tinha me esquecido disso.
- Então; vai ser uma casa enorme com vários quartos, uma cozinha enorme para eu praticar minhas habilidades culinárias, uma piscina bem grande para receber nossos amigos em dias muito quentes, e, claro, uma sala de música com centenas de CDs que vamos comprando e juntando durante a vida.
- Nossa, eu quero morar nessa casa!
- Pois é, passei muito tempo imaginando ela, então saiu direitinha.
- E quanto aos filhos? Quantos quer ter?? - ele falou meio rindo, meio assustado.
- É; quatro. Sempre quis ter uma família grande. Imagina a cena: nós dois velhinhos recebendo em casa nossos filhos, genros, noras e uma penca de netos, todos em volta de uma mesa enorme no jardim.
- É, pode ser divertido... - ele falou sorrindo pensativo.
- Seríamos tão felizes...
- Seríamos não, seremos! - ele corrigiu.
- Verdade, seremos. - falei rindo.
Será possível que possa existir algum menino mais lindo que o meu Lipe?
Ele me perguntou o que ele tinha para que eu me apaixonasse por ele.
Além de ser lindo e ter uma alegria contagiante no coração, ele tinha algo mais que não dava para explicar.
Acho que é algo de dentro. Ele nasceu assim. Um carinho especial com tudo. Seus gestos, seu cuidado, seu cheiro de menino. Um anjo!
Algo do universo mesmo. Só pode.
Somos Almas Gêmeas!
aramos e ficamos nos olhando apaixonados, perdidos naqueles infinitos segundos. A felicidade realmente está nos pequenos detalhes. Num beijo carinhoso de bom dia, num café-da-manhã tomado na cama ao lado da pessoa que você ama, numa conversa despretensiosa sobre o futuro...
Em um par de olhos azuis...
Felipe era a minha felicidade. Sem ele todos os meus medos, as minhas lembranças e a minha amargura voltavam. Agora que eu o conheci, não conseguiria viver num mundo sem ele.
- Promete nunca me deixar? - perguntei.
- Prometo. - ele respondeu.
Ele me beijou romanticamente e foi aumentando a intensidade dos movimentos da sua língua. Em pouco tempo estávamos nos devorando entre lençóis. Desci beijando seu pescoço, seu peito e sua barriga até chegar naquele pau branquinho.
Percebi que ele tremia de tesão. Fui dando beijinhos leves no seu pau até engoli-lo inteiro.
Lipe gemia alto.
Ele me puxou novamente para sua boca, me beijando. Num movimento rápido ele se colocou entre minhas pernas. Ri e ele levantou minhas pernas, as colocando por cima dos seus ombros. Foi me penetrando aos poucos, e quando percebeu que eu já não sentia dor, aumentou a intensidade dos movimentos.
Eu me masturbava enquanto ele bombava. Gozamos praticamente juntos. Nos levantamos suados e sujos de porra, e fomos tomar banhos juntos, onde fizemos mais planos e mais sexoMesmo com toda a correria da chegada dos últimos meses do ano, e com eles o vestibular, achamos um tempo para ensaiar números para a festa de Renata.
Já tínhamos alguns números ensaiados, mas queríamos novos porque a minha amiga realmente merecia. Me dei conta que na semana seguinte à festa de Renata eu e Lipe completaríamos dois anos e meio desde o nosso primeiro beijo. Sempre fui muito ligado nesses números exatos, então decidi fazer uma coisa especial para ele também. Pedi permissão à Renata, que deixou e gostou da minha ideia. Escondido dele, ensaiei um número à parte com o nosso baixista. A festa prometia ser um sucesso, todo o colégio só falava disso.
Chegou o dia da festa.
Tive um pesadelo, mas esqueci dele... apenas acordei suado, com o coração a mil e uma sensação ruim.
Sabe aqueles dias em que você acha que não deve levantar da cama? Pois é, eu me sentia assim, como se alguma coisa me dissesse que algo ruim iria acontecer. Decidi ignorar atribuindo isso ao fato de ter dormido sem Lipe, o que não era tão comum. Só fui rever ele pela tarde, quando fomos ao shopping passar o tempo. Senti que ele estava um pouco tenso e perguntei o que era.
- Minha mãe me ligou ontem. - ele respondeu, sem emoção na voz.
- E? - pelo seu jeito não tinha sido uma boa conversa.
- Ela me pediu que fosse até nossa antiga casa amanhã.
- Pra quê?
- Não sei, ela só disse que queria conversar comigo.
- Isso pode ser alguma boa... - arrisquei.
- Pode sim, mas eu não quero criar falsas esperanças.
- Entendo...
- Por causa disso, vou ter que dormir em casa para o Fábio me levar lá amanhã. Ou seja, mais uma noite que vamos dormir separados.
- Ah nem! Assim eu fico com saudade! - protestei de verdade.
- Calma, dormi na sua casa ante ontem.
- Já me acostumei com sua presença, não durmo bem sem você ao lado.
- Que fofo! - ele falou sorrindo e me abraçando.
Aí estava a origem daquela sensação ruim com a qual acordei de manhã. Aquela família não era para o Felipe mesmo. Não se encaixavam!
Do shopping fomos direto para a minha casa, onde namoramos um pouco e depois seguimos para a festa.
Era um grande salão na zona sul da cidade. A decoração era toda em laranja, amarelo e vermelho, tudo lindo.
Renata já havia chegado com seus pais e recepcionava os primeiros convidados.
Eu e Lipe a abraçamos, desejamos felicidades, entregamos presentes (que ela não queria aceitar por já considerar o show seu presente, mas no fim acabou cedendo) e subimos ao palco.
O resto da banda já estava lá, bem como os instrumentos. Peguei no microfone e comecei:
- Boa noite a todos. Renata, a aniversariante e minha melhor amiga, nos pediu para cantar hoje aqui. Nós já cantamos por aí, mas queríamos cantar alguma coisa nova, especialmente para ela, que é uma pessoa muito especial para nós.
Renata me olhava sorrindo, em frente ao palco.
- Pensei muito sobre o que cantar. Não foi fácil achar uma canção que expressasse tudo o que eu tenho a dizer sobre ela. Foi tão difícil que não conseguimos encontrar nenhuma! Mas eu encontrei uma que dizia exatamente a forma com que ela se apresenta a nós: uma estrela brilhante, que nos guia na escuridão com sua grandiosa luminosidade.
Os instrumentos tocavam baixinho, fazendo com que eu cantasse praticamente à capella:
“Estrela, estrela
Como ser assim?
Tão só, tão só
E nunca sofrer.
Brilhar, brilhar
Quase sem querer
Deixar, deixar
Ser o que se é.
No corpo nu da constelação
Estás, estás sobre uma das mãos
E vais e vens como um lampião
Ao vento frio de um lugar qualquer.
É bom saber que és parte de mim
Assim como és parte das manhãs.
Melhor, melhor é poder gozar
Da paz, da paz que trazes aqui.
Eu canto, eu canto
Por poder te ver
No céu, no céu
Como um balão
Eu canto e sei que também me vês
Aqui, aqui com essa canção.”
(Estrela, estrela – Vítor Ramil)
Renata nos aplaudia entusiasmada e com os olhos cheios de lágrimas. Ela mereceu aquela homenagem. Seguimos o nosso pequeno show com mais algumas músicas e as pessoas realmente nos ouviam. Dava para sentir que ninguém ali nos aplaudia só por educação.
Quando acabamos de cantar, a banda foi descendo do palco e só foi ficando eu e o baixista, como nós dois havíamos combinado. Ninguém tinha percebido que nós dois ainda estávamos lá, até que eu peguei o microfone e limpei a garganta para chamar a atenção do público.
Lipe, no meio dos convidados, me olhava sem entender.
- Antes de deixar vocês a mercê do DJ, eu queria homenagear mais uma pessoa.
Essa pessoa apareceu na minha vida há quase três anos e mudou tudo. Com essa pessoa eu descobri o que é felicidade, o que é amor e até o que é sexo. - todos riram e Lipe ficou vermelho como um pimentão, mas sorria largamente. - Então, pedi permissão para a aniversariante que concordou em me deixar homenagear o meu grande amor, a pessoa que eu quero ao meu lado por toda a minha vida.
O baixista pegou o violão e começou a tocar em pé ao meu lado. Comecei a cantar olhando para o público:
"Quero ver o sol atrás do muro
Quero um refúgio que seja seguro
Uma nuvem branca, sem pó nem fumaça
Quero um mundo feito sem porta, ou vidraça
Quero uma estrada que leve à verdade
Quero a floresta em lugar da cidade
Uma estrela pura de ar respirável
Quero um lago limpo de água potável
Direcionei então meu olhar diretamente para Felipe, e continuei a cantar sorrindo.
Quero voar de mãos dadas com você
Ganhar o espaço em bolhas de sabão
Escorregar pelas cachoeiras
Pintar o mundo de arco-íris
Quero rodar nas asas do girassol
Fazer cristais com gotas de orvalho
Cobrir de flores campos de aço
Beijar de leve a face da lua"
(Quero – Thomas Roth)
Agora era Lipe que aplaudia com lágrimas nos olhos.
Lógico que todos perceberam para quem eu cantava, pois eu olhava diretamente para ele. Alguns, que não nos conheciam, se chocaram, mas a maioria já sabia de nós e aprovou a homenagem.
Os convidados logo se dispersaram para a área em frente à mesa do bolo, onde todos se preparavam para cantar parabéns, e só ficamos eu e Lipe.
Nos olhávamos com intensidade sem falar nada. Era como se só existisse nós dois no mundo. Ele veio até mim lentamente, me abraçou e me beijou com ternura. De longe ouvíamos as pessoas cantando parabéns, mas nem prestávamos atenção. Era só eu e ele ali. Não sei quanto tempo nós passamos daquele jeito, não sei se foi um segundo ou uma hora, naquele instante, tempo e espaço eram só um pequeno detalhe.
Algum tempo depois ouvimos seu celular tocando. Ele atendeu, e pela conversa, pude perceber que era Fábio.
- Tenho que ir. Amanhã acordo cedo para ir conversar com minha família. - ele falou triste.
Aquela sensação ruim voltou a apertar meu peito. Não dava para explicar o que era.
- Você tem mesmo que ir? Não pode ser outro dia? Dorme comigo hoje. - pedi quase implorando.
- Não, meu amor, eu tenho que enfrentar eles todos. Mas amanhã eu prometo ir te ver. - falou me dando um beijinho rápido.
- Promete?
- Prometo. Mas não estou entendendo todo esse seu medo de eu ir.
- Também não estou entendendo. - respondi sinceramente.
- Deixa de ser bobo, então, depois que eu resolver isso vou ser todo seu. - ele me deu um beijo carinhoso e, se afastando em direção à saída, completou. - Tenha paciência, afinal, você vai me ter ao seu lado pelo resto da sua vida!
Seu sorriso infantil me iluminava e me fazia sorrir de volta. E aqueles olhos azuis me deixavam alucinado de tanto carinho e paixão por ele.
Mas aquele nó em minha garganta insistia em não se desfazer. Assisti quieto Lipe sair do salão de festas e entrar no carro do irmão.
Ele me olhou com aqueles seus olhos azuis e me deu o sorriso mais lindo que pode existir. Um sorriso de menino.
Aquela foi a última vez que vi Felipe vivo.