Fui embora da festa de Renata de táxi e desmaiei na cama. Tive pesadelos horríveis envolvendo Felipe e aquela sensação ruim não saía de mim. Ainda estava escuro quando acordei com alguém me sacudindo.
- Filho, filho, acorda. - era minha mãe.
Esfreguei os olhos e notei a expressão sombria no rosto dela. Naquele momento eu sabia que tinha acontecido algo muito ruim e meu coração me dizia que a vítima era Felipe.
- O que aconteceu, mãe? Cadê o Lipe?
- O irmão do Felipe ligou. Ele me disse por alto que eles foram assaltados e o Felipe levou um tiro.
- O quê?!
Me levantei assustado. Senti meu coração se apertar ainda mais. Não podia acontecer nada a ele.
- Como ele está? Cadê ele?!
- Está no hospital, o estado dele é grave. Quer ir para lá?
- Claro!
Me arrumei de qualquer jeito e fui para o hospital com minha mãe.
Eu precisava vê-lo de qualquer jeito; saber que ele estava bem.
O Felipe tinha que sair dessa. Ele é jovem, forte, pode resistir a essas coisas.
Chegamos, pegamos informação na secretaria e nos dirigimos ao setor onde ele estava. Chegando lá vi Fábio e a mãe, ambos em silêncio com o semblante preocupado.
- O que aconteceu? - perguntei já chorando.
Estela me olhou com tristeza e depois voltou a fitar o chão. Fábio, que também chorava, me respondeu:
- Depois que saímos da festa, paramos num semáforo e um homem colocou a arma na cabeça do Felipe. - ele falava com dificuldade, como se fosse extremamente duro para ele relembrar aquilo. - Só que apareceu um policial que estava vendo tudo. Ele ameaçou o assaltante, que no susto atirou no peito do Lipe.
Ele chorava muito. Um tiro no peito. Eu entendia a gravidade do seu caso. A cada nova informação a situação piorava e eu a sentia indo para um caminho sem volta.
- E como ele está?
- Bem ruim; estão operando ele agora. Parece que a bala perfurou um pulmão e uma artéria importante. Temos que esperar.
Me deixei cair sem forças numa das cadeiras da sala de espera.
Fábio e minha mãe se sentaram ao meu lado. Em nenhum momento Estela disse algo. Deitei minha cabeça no colo da minha mãe, cansado.
Todos os nossos momentos juntos passavam pela minha cabeça. Cada segundo de felicidade e de amor agora parecia fazer parte de um passado tão distante...
Eu queria ter esperanças, mas eu já sabia o que aconteceria. Meu coração não me enganava.
Não sei quanto tempo passou até o médico vir nos dar a notícia; talvez algumas horas.
Ele tinha um olhar de compaixão para nós.
Ele não precisou dizer nenhuma palavra para sabermos o que tinha acontecido.
Felipe havia morrido.
O meu amor me deixou para nunca mais voltar. Eu nunca mais escutaria sua voz pela manhã falando que me amava. Nunca mais ganharia beijos apaixonados que me faziam levitar, nunca mais ouviria o som da sua gargalhada que me enchia de vida, nunca mais veria o meu sorriso largo refletido nos seus olhos intensamente azuis, nunca mais o teria nos meus braços.
Felipe se foi para sempre, e uma parte de mim, a melhor, se foi com ele. Não consegui pensar mais nada, senti minha pressão caindo subitamente e minhas pernas perdendo a força, me fazendo desmaiar no chão do hospital.
Acordei numa cama de hospital tomando soro pelo pulso. Já era quase noite outra vez e meu corpo todo doía. Olhei para o lado e encontrei Zeca me olhando com os olhos cheios de lágrimas.
- Me diz que foi só um sonho ruim... - supliquei recomeçando a chorar.
Ele balançou a cabeça negativamente como resposta.
Comecei a chorar com força, meu mundo havia caído. Todos os meus sonhos e planos tinham morrido com Felipe e eu sentia como se não houvesse mais razão para viver.
Nenhuma dor física no mundo se comparava àquela.
Perdi meu amor, meu anjo loirinho de olhos azuis. Minha vida...
Zeca se deitou na cama junto comigo, pousou minha cabeça no seu peito e ficou afagando meus cabelos enquanto eu derramava todas as lágrimas que eu tinha.
- Chora, é a única coisa que podemos fazer agora. - Zeca falou com a voz embargada de tristeza também.
Poucos minutos depois minha mãe entrou no quarto.
- Melhorou?
- Tem como?
- Eu sei que é difícil, mas você precisa ser forte, filho.
- Não sei se consigo.
- Tem que conseguir. - falou Zeca se levantando da cama. - Pelo Felipe, que não gostaria de te ver definhando numa cama de hospital.
Me deitei virado para o outro lado olhando a vista pela janela. Belo Horizonte continuava agitada com o tráfego intenso de carros e pessoas. Tive inveja deles, que continuavam vivendo suas vidas. Eu não tinha força nem mesmo para me levantar daquela cama.
- O velório vai ser pela manhã. Você vai querer ir?
- Sim.
Eu devia aquilo a Felipe. Ele me proporcionou os momentos mais felizes da minha vida e me fez descobrir o verdadeiro amor. Eu devia a ele uma homenagemEm casa, tive que contar com a ajuda de Bruno e Zeca para tomar banho e vestir uma roupa apropriada para o velório. Aconteceu no próprio cemitério, na zona oeste da cidade, onde estavam enterrados tantos outros familiares do Felipe.
Fomos no mesmo carro, eu, minha mãe, minha tia, Zeca e Bruno. O local estava cheio. Havia muitos conhecidos que estudavam conosco, mas também muitos desconhecidos, que eu acreditava serem amigos da família, prestando condolências.
O pai de Lipe conversava com conhecidos como se nada tivesse acontecido, e fingiu não me ver quando entrei no lugar.
Estela estava sentada em um canto com um olhar vazio, em silêncio, totalmente apática. O irmão caçula de Felipe chorava silenciosamente no colo de uma das tias.
Reconheci outros familiares deles. Os garotos da banda estavam recolhidos num canto, visivelmente abatidos.
Renata, Beatriz e Pedro me olharam com pena, mas não se aproximaram, possivelmente por não terem ideia do que dizer para me consolar.
Fábio chorava ao lado do caixão. O caixão. Um sentimento ruim desceu pela minha espinha só de imaginar Felipe ali dentro, enclausurado para sempre.
Quando me viu, Fábio veio ao meu encontro, me abraçou e chorou no meu ombro. Eu não tinha forças nem muito menos ânimo para consolá-lo, então apenas deixei que ele chorasse sem dizer nada.
- Venha, venha dar adeus a ele. - ele falou ainda chorando.
Eu queria ver aquilo? Ver meu amor deitado num caixão era a última coisa que eu precisava, mas eu sabia que nunca me perdoaria se não fizesse isso. Seria como vê-lo dormir, como fiz diversas vezes; eu aguentaria.
Concordei com a cabeça. Fábio passou seu braço sobre meu ombro e me guiou até o caixão no meio do salão. Respirei fundo e olhei. Aquele não era Felipe. Aquele era um corpo frio, branco e sem vida que por acaso tinha o mesmo rosto do meu namorado.
O meu Lipe transbordava vida pelos olhos azuis brilhantes, pelo sorriso largo, ou até mesmo dormindo ao meu lado com seus pés quentes entre os meus frios.
Aquele não era Lipe.
Toda a dor voltou de forma arrasadora. Minha garganta fechou, as lágrimas voltaram a brotar nos meus olhos e minhas pernas começaram a se mover sozinhas de ré em direção à saída daquele lugar.
Eu ouvia as pessoas se aproximando de mim e chamando pelo meu nome, mas eu não queria falar com ninguém, só queria o meu namorado de volta em meus braços.
Corri para fora do velório, sem direção. Corri entre as placas presas ao gramado indicando o nome daqueles que ali estavam enterrados e desci uma colina suave até chegar a um pequeno lago.
Sem forças, me deixei cair sentado na grama. Abracei meus joelhos e fiquei ali parado olhando para os cisnes do lago enquanto recordava meus momentos felizes com Felipe.
A primeira vez que o vi na sala de aula; o beijo que ele me roubou no banheiro; o dia do seu aniversário quando ele cantou para mim; a primeira vez que ele disse que me amava na casa da avó; nossa primeira vez; o dia em que ele apareceu na porta da minha casa após chegar de Morro Velho e fizemos as pazes; o dia do baile em que ele subiu no palco e me beijou na frente de todos; nossas viagens juntos; nossos planos para o futuro, aqueles olhos azuis...
Chorei ainda mais forte lembrando dos nossos planos que nunca se tornariam realidade.
Não teríamos um futuro juntos.
Senti alguém se sentando ao meu lado e me abraçando. Pelo perfume percebi que era Zeca.
- Ele nunca mais vai voltar, Zeca! - falei entre soluços e lágrimas.
- Você tem que ser forte, Bernardo. - ele falou com a voz embargada de choro.
- Ser forte como? Ele era a minha força! Sem ele eu não sou nada, sem ele eu não tenho vontade de continuar vivendo!
- Não diga isso nem de brincadeira! - ele falou sério, me repreendendo. - Nós precisamos de você aqui. Onde quer que ele esteja, ele não vai gostar nada de ouvir você falando assim.
Me calei e deixei que Zeca me consolasse um pouco.
- Zeca, você acha que ele foi para um bom lugar? - falei depois de um tempo.
- Como assim?
- Você sabe, nós somos gays e sempre me disseram que vamos para o inferno...
- Nosso Deus é diferente, Bernardo. O Deus dessas pessoas hipócritas é cruel por não aceitar uma das inúmeras formas de amor.
O nosso Deus é um Deus bondoso que não julga as pessoas por uma coisa tão pequena assim. Tenho certeza que Felipe foi para um lugar maravilhoso.
- Pensei que você fosse ateu.
- Nestas horas em que nada parece fazer sentindo, gosto de acreditar na existência de um ser superior com um plano para cada um de nós e razões para esse tipo de tragédia.
- E qual a razão para a morte de Felipe?
- Não sei, talvez algum dia nós descubramos.
Calados e abraçados, assistimos o coveiro empurrar o carrinho, que carregava o caixão de Felipe, colina acima com um grande cortejo atrás. Ainda de longe junto ao lago, assistimos Lipe ser enterrado no alto de uma bonita colina. Aquela seria sua última moradaa semana se passou desde a morte do meu namorado.
Nós cinco: eu, minha mãe, minha tia, Zeca e Bruno, fomos para a sua missa de sétimo dia, numa catedral da zona sul de Belo Horizonte.
Ainda parecia mentira. Mesmo com o tanto que eu tinha chorado, era como se minha ficha não tivesse caído.
Mais tarde eu descobriria que ela nunca cairia. Eu nunca conseguiria superar a morte de Felipe.
Seguir em frente? Sim, eu conseguiria porque era o que ele iria querer para mim, mas superar mesmo, não.
Nunca entenderia como um menino de dezessete anos, no auge dos seus sonhos, morre.
Chegamos à porta da igreja onde a família do Lipe recebia os convidados. O pai virou a cara quando meu viu. Fábio me cumprimentou. Estela, surpreendentemente, veio até mim:
- Posso conversar com você um instante?
- Sim, claro. - respondi ainda meio desconfiado.
Fomos caminhando em volta da igreja em silêncio até ela ter coragem de começar a falar.
- Eu queria te pedir desculpas por tudo.
Ela estava visivelmente emocionada e falava com dificuldade.
- Eu só queria o melhor para o meu filho, mas não entendia que o melhor para ele não é o que necessariamente eu julgo ser melhor.
Eu só queria que ele fosse feliz. E por isso eu te agradeço, porque sei que você o fez feliz.
- Ele gostaria de ter ouvido isso... - falei sem pensar e logo percebi que devia ter me calado.
Ela começou a chorar e eu tive que guiá-la até um banco, onde nos sentamos.
- Eu devia ter dito isso a ele quando ele estava vivo, agora não adianta. - desabafou chorando. - Eu o chamei naquele dia que ele morreu justamente para lhe dizer isso, mas não tive tempo...
Eu poderia ter tripudiado sobre aquela mulher que tanto fez o meu amor sofrer com seu desprezo. Eu poderia ter dito que eu sentia Lipe incompleto e triste pela família não aceitá-lo, que ele chorava escondido com saudade deles, que ele desejava esquecê-los para sempre e não conseguia. Mas o que eu ganharia com aquilo? Aquela mulher estava sofrendo tanto ou mais do que eu e piorar seu estado seria desumano.
- Eu te perdoo por tudo. Felipe nunca perdeu a esperança de que um dia vocês o aceitariam porque ele sabia que era amado pela família. Ele sempre soube. Não se martirize por não ter contado.
Ela me deu um sorriso fraco, me abraçou e beijou meus cabelos.
- Obrigado. Felipe teve muita sorte de tê-lo.
Eu a deixei lá sentada, perdida em lembranças e pensamentos e voltei para a igreja. Localizei minha família num dos bancos e fui para junto deles.
- O que ela queria? - perguntou minha mãe.
- Ela me falou que aceitou Felipe e que lamentava que ele não tivesse sobrevivido o bastante para saber disso. Fiquei com pena e menti falando que ele sabia.
- Fez bem.
- Então, tia. - tia Marta, que ouvia tudo que eu dizia, me olhou curiosa. - Se você não quer correr o risco de alguém ter que mentir para a senhora algum dia também, sugiro que aceite o Bruno e deixe ele saber disso.
Ela me olhou surpresa com o impacto das minhas palavras. Bruno, Zeca e mamãe, também assustados com minha agressividade, me repreenderam com olhares.
Fingi que não era comigo e me concentrei no padre que se preparava para começar o sermão.
Ela precisava ter ouvido aquilo para cair na real e eu precisava extravasar aquilo que eu não quis dizer para Estela.
A missa seguiu seu roteiro católico sem surpresas até que chegou a vez de Estela falar algumas palavras no altar. Ela pegou um papel para ler, mas não conseguia porque chorava muito. A cena angustiava qualquer um que estivesse assistindo. Então ela fez o inesperado:
- Nos últimos meses eu me afastei do meu filho por uma estupidez minha, por isso eu não me sinto no direito de vir aqui ao altar e falar sobre ele. Por isso eu queria pedir ao namorado dele que viesse aqui no meu lugar.
Seguiu-se um grande burburinho entre as pessoas que a ouviam e o padre até tentou protestar, mas era tarde porque eu já tinha me levantado e me dirigia ao altar.
Fiz sem pensar, não senti vergonha nenhuma por aquilo. Mesmo morto, Felipe me dava força para encarar essas situações.
Toda a igreja se calou enquanto eu caminhava pela nave. Estela me entregou o microfone. O que eu iria falar?
- Eu... - vacilei por um instante vendo todos me olhando com os mais diversos sentimentos. - eu o amava. Simplesmente isso. Não existem palavras suficientes para descrever o tamanho do meu sentimento ou da minha saudade, então eu gostaria de homenageá-lo da forma que ele mais gostava: cantando.
Ali, à capella mesmo, cantei uma linda canção de Vinícius de Moraes que eu conhecia na voz de Elis Regina.
"Tantas vezes já partiste
Que chego a desesperar
Chorei tanto, estou tão triste
Que já nem sei mais chorar
Oh, meu amado, não parta
Não parta de mim
Oh, uma partida que não tem fim
Não há nada que conforte
A falta dos olhos teus
Pensa que a saudade
Mais do que a própria morte
Pode matar-me
Adeus...
Adeus...
Adeus..."
(Valsa de Eurídice – Vinícius de Moraes)
Localizei na multidão o rosto de Renata que chorava emocionada. Beatriz, sempre tão firme e fria, também tinha os olhos marejados. Minha tia abraçava Bruno enquanto lágrimas lhes caiam pelos olhos.
Todos ali sentiam saudade de Felipe, mas ninguém mais do que eu.
Até hoje eu sinto sua falta e não entendo sua morte.
Mas eu consegui seguir em frente, pois de alguma forma eu sabia que Felipe estaria sempre comigo, como uma parte de mim.
Desci do altar sob palmas, mas as ignorei.
Não voltei ao meu lugar, segui pelo corredor central da igreja e saí para respirar o ar puro da primavera. O céu estava intensamente azul com poucas nuvens no céu.
Fui caminhando para casa, mas ainda dei uma última olhada para a catedral, lembrando dela como o palco do meu último adeus a Felipe.
Na segunda-feira de manhã abri os olhos com o barulho do despertador. Abri os olhos, mas continuei deitado, tentando imaginar como seria voltar para a escola sem Felipe e sabendo que ele jamais voltaria.
Eu não ia desde o dia que ele morreu.
Era um pensamento massacrante que tirava todas as minhas forças, mas eu teria que enfrentá-lo ou essa tristeza iria se tornar cada vez maior... até o ponto de me engolir.
Como aconteceu todos os dias desde o velório, eu funcionei no automático; não tinha a menor noção do que estava fazendo; fazia por hábito.
Foi assim que me levantei, tomei banho, escovei dente, tomei café e fui para a escola.
No caminho foi impossível não lembrar dele, mas a saudade bateu mais forte quando cheguei e não o vi escorado no muro do colégio me esperando.
Fui despertado das minhas lembranças quando alguém tocou meu braço. Era Renata:
- Pronto para voltar?
- Não sei, acho que sim.
- Me desculpe por não ter te procurado esses dias é que eu...
- É que você foi pega de surpresa pelo que aconteceu e ainda não teve tempo de digerir tudo. - completei.
- É... - ela respondeu meio envergonhada.
- Não se preocupe, eu entendo. - ela sorriu para mim. - Vamos entrar?
- Vamos.
Respirei fundo, dei meu braço a ela e entramos. As pessoas me olhavam ora com pena, ora com curiosidade, mas eu não me importava com elas. Quando se passa por certas coisas, a gente aprende a ignorar quem não é relevante para a nossa vida.
A sala de aula já estava cheia e todos pararam para me olhar quando entrei. Foi meio constrangedor todos me olhando parados sem saber o que dizer, mas resolvi interpretar aquilo como uma forma meio torta de preocupação.
- Bom dia. - falei quebrando o silêncio.
- Bom dia. - alguns responderam e foram voltando para as suas rodinhas de conversa.
Me sentei no meu lugar habitual e foi impossível não olhar para o lugar vago de Lipe ao meu lado sem um aperto no peito. Fui despertado quando alguém se sentou no lugar dele: Beatriz.
- O que você está fazendo?
Minha pergunta tinha mais a ver com o fato dela vir se sentar junto a mim sendo que ela havia se afastado desde o início do ano, do que com ela ocupar o lugar do meu namorado.
- Você não precisa de um lugar vazio para ficar te lembrando.
- Mas é que você tem suas amigas lá na frente e...
- Você precisa mais de mim agora do que elas. - me respondeu sem me olhar.
Achei graça do seu jeito de ser solidária sem deixar de ser ela mesma. No fundo ela era uma boa pessoa que gostava e se preocupava muito comigo. Na verdade eu tinha que agradecer por tê-la conhecido um dia. Alguém me cutucou atrás e me virei para ver quem era.
- Ah, oi Pedro, o que está fazendo aqui?
- Troquei de lugar para ficar mais perto de você. - ele falou baixinho para ninguém ouvir.
- Mas, por quê?
- Porque você faria o mesmo por mim se eu estivesse no seu lugar.
Sorri para ele admirado pelo quanto a minha primeira impressão dele estava errada. No primeiro dia que o vi ele me pareceu ser um garoto arrogante, bruto, mal-educado, mas quase três anos depois, aqui estávamos nos comportando como bons amigos. Pedro era um garoto de ouro.
Beatriz, Renata e Pedro se sentaram junto a mim de um modo que me cercavam, o que só percebi depois. Era como se tivessem criado uma barreira contras as lembranças dolorosas.
Durante todo o tempo os três se ocuparam em me deixar ocupado, de forma que eu não tivesse espaço para pensamentos tristes, e assim fizeram até o final do ano letivo. Aqueles três eram meus amigos de verdadeOs dias foram passando e meu aniversário de dezoito anos chegou.
Não preciso nem comentar que eu não estava com ânimo nenhum para comemorações e todos entenderam isso.
Esqueceram de avisar minha avó paterna, dona Maria, que apareceu lá em casa com uma grande mala.
- Benção, vó. - falei a abraçando quando cheguei da escola.
- Deus de abençoe, meu filho. - falou beijando minhas bochechas. - Como você está?
- Indo...
- Eu tenho rezado muito por ele, meu bem, tenho certeza que ele está em paz num bom lugar te protegendo como um anjo da guarda.
- Uhum. - respondi sem muita convicção.
A morte de Felipe tinha afetado de forma muito negativa minha fé.
- Bom, vim aqui te buscar.
- Me buscar para onde?
- Vamos viajar só eu e você para Poços de Caldas.
- Ah, vó, não estou muito no clima para viagem.
- Vai te fazer bem e já falei com sua mãe. Não vai ter problema você faltar alguns dias na escola.
O cursinho eu tinha abandonado já por não ter mais pique de ir.
Percebi que ela estava usando a mesma técnica de todos os outros para me distrair e não deixar espaço para eu pensar em Lipe. Fiquei grato por tê-los em minha vida.
- Ok, vó, eu vou. - falei me dando por vencido.
- Ótimo, nosso ônibus sai à noite.
- Certo.
Foi uma viagem curta, apenas quatro dias, mas muito proveitosa.
Poços de Caldas é uma cidade linda, bucólica e urbana na medida certa, evocando toda aquela ideia de cidade mineira.
Eu e minha avó aproveitamos muito os passeios turísticos e os banhos de água quente, de minas que brotavam do solo vulcânico, serviram para me revigorar para os últimos dias do ano.
Voltamos num domingo de manhã, e da rodoviária de BH mesmo a minha avó se despediu de mim e seguiu viagem para Morro Velho.
Peguei um táxi e cheguei em casa na hora do almoço. Alguém me gritou para segurar a porta do elevador. Quando me virei, Zeca e Bruno vinham correndo em minha direção.
- Não sabia que você estava chegando. - falou Zeca entrando no elevador.
- Pois é, o tempo estava meio chuvoso, então adiantamos a volta.
- Que bom, vai dar para você apreciar esse momento. - falou Bruno.
- Que momento?
- Hoje vou contar para minha mãe que Zeca é meu namorado.
Olhei para Zeca que não conseguiu segurar seu sorriso.
- Sério? Que ótimo! - falei sinceramente.
- Eu sei, estou tão nervoso. - confidenciou Zeca.
- Vai dar tudo certo.
- E você, como está? - perguntou Bruno passando o braço sobre meus ombros.
- Indo...
Chegamos ao apartamento e nós três fomos abraçados pela minha mãe e minha tia, que já tinham preparado todo o almoço.
Vale ressaltar que tia Marta já tinha aceitado Bruno abertamente depois do que eu havia lhe dito na missa de sétimo de dia de Felipe.
Serviu para abrir seus olhos.
Nós cinco nos sentamos à mesa e começamos a comer. Só minha tia falava. Bruno e Zeca estavam calados diante do nervosismo. Minha mãe, que já tinha sacado tudo, e eu só assistíamos.
Quando terminamos, eles perceberam que não daria mais para adiar aquela conversa.
- Mãe, - começou Bruno. - eu tenho uma coisa pra te contar.
- Pois bem, fale. - ela falou não dando muita atenção.
- Eu estou namorando um cara.
Ela olhou surpresa para ele, mas depois sorriu.
- Isso é bom! Tomara que seja alguém que te ame e respeite muito. E quando vou conhecer meu genro?
Segurei para não rir e Zeca abriu um sorriso envergonhado.
- Você já conhece, mãe... - Bruno respondeu pegando na mão de Zeca sobre a mesa.
O queixo de tia Marta caiu completamente. Ela olhava de um para o outro sem acreditar no que tinha acabado de descobrir.
- Ah... - falou sem graça. - Isso é bom...
Ela voltou a se concentrar no prato de sobremesa e deixou a todos na mesa constrangidos. Bruno e Zeca principalmente. Minha mãe tomou as rédeas da situação:
- Deixa de bobeira, Marta, os dois estão namorando há meses e sofrendo por esconder isso de você. Agora que os dois criaram coragem para te contar, você cai de novo num mundo de fantasia onde tudo isso é mentira?
- Você sabia? - titia perguntou.
- Claro, você é a última a saber por causa desse preconceito bobo.
Tia Marta ficou sem reação olhando Bruno e Zeca.
- Há quanto tempo vocês estão juntos?
- Mais de dez meses. - respondeu Zeca.
- Dez meses? - ela gritou assustada.
Ela continuava a olhá-los de boca aberta sem saber o que dizer. Bruno estava, visivelmente, uma pilha de nervos.
- Olha, Zeca, não posso dizer que você é bem-vindo a essa família. - ela começou e todos nos preparamos para o pior. - porque você já faz parte dela há muito tempo. Fico contente que tenha sido você o escolhido para fazer meu filho feliz.
Depois de toda a verdade revelada e aceitação total dela, o resto do almoço foi de festa. Minha família estava em paz. Não pude deixar de sentir falta de Felipe, que ficaria muito feliz em compartilhar aquele momento com a gentea coisa extremamente desagradável aconteceu no início de novembro.
Eu saía do shopping com Beatriz depois de assistir a um filme no cinema quando encontramos com Mariana, o meu karma em carne e osso.
Quando me viu, suas feições, antes angelicais, transbordaram puro ódio. Desejei profundamente que ela nos deixasse passar em paz, mas isso não condizia com o gênio dela.
- Espero que você esteja feliz agora! - ela gritou.
- Por que eu estaria? - respondi.
Beatriz assistia tudo com atenção.
- Foi por causa de você que Felipe morreu. Se você não tivesse aparecido na vida dele, ele ainda estaria aqui com a família dele.
- Olha aqui, quem você pensa que é para falar com ele assim? - falou Beatriz.
Tenho que explicar que as duas já se conheciam. Elas foram apresentadas quando Beatriz era namorada de Lipe e na mesma ocasião Beatriz ficou sabendo de toda a minha história em Morro Velho, conforme Felipe me confidenciou mais tarde.
- Fica quieta no seu canto porque o papo não é contigo. - respondeu Mariana.
Vi Beatriz se enervando até chegar ao mesmo estado de espírito de Mariana. Não pude deixar de pensar que aquela era uma briga de titãs.
- Não é comigo seu cu! Mexeu com o Bernardo, mexeu comigo!
- Vai defender ele agora? Não foi ele que roubou seu namorado? Que humilhante, uma garota que não consegue segurar seu namorado e o perde para outro cara.
- Mas aconteceu o mesmo com você, não? - revidou com ironia.
- Beatriz... - tentei intervir.
- Fica quieto, que o assunto não é contigo! - ela respondeu e voltou sua atenção para Mariana.
Deixei as duas continuarem a briga, era humanamente impossível enfrentar as duas de uma só vez. Na entrada do shopping, todos assistiam àquela cena incomum: duas garotas lindas e bem vestidas batendo boca. Os seguranças já se aproximavam.
- Piranha! - gritou Mariana.
- Mal amada! - revidou Beatriz.
- Puta!
- Recalcada!
E pronto, as duas saíram no tapa.
Era uma cena tão surreal ver as duas rolando no chão trocando insultos e golpes, que fiquei sem ação. Só despertei quando apareceram dois seguranças apartando a briga e levando cada uma para um lado. Segui com Beatriz e de lá fomos embora.
- Obrigado por me defender. - falei para ela, que já tinha se recomposto no banheiro e estava novamente linda.
- Eu devia isso a ela desde que ouvi a sua história. Só eu tenho direito de ser a “bitch” da história. - falou rindo e acompanhei.
Caminhando pela rua, ela me abraçou, o que era raríssimo vindo dela, e falou ao meu ouvido:
- Não ligue para o que ela diz, tenho certeza que Felipe não trocaria os momentos felizes ao seu lado por nada.
- Obrigado. - falei retribuindo o abraço e ela me soltou.
Como podiam existir duas pessoas tão parecidas e ao mesmo tempo tão diferentes como Mariana e Beatriz?
(...)
Dezembro chegou com o meu baile de formatura. Eu não estava nem um pouco a fim de ir, mas minha mãe insistiu falando que era um momento único e tal, e acabei cedendo.
Até me chamaram para cantar, mas me recusei.
- Muito bem, Senhor Bernardo - Era o Raul. - Vamos até a sala de música para escolhermos o repertório que você cantará no baile de formatura.
- Eu não vou cantar nada, Raul!
- Mas vai sim.
- NÃO! - Eu não vou cantar nada nessa porcaria de baile.
- Vai sim. Por que senão... - O interrompi:
- Raul, vai você e esse seu baile para a puta que o pariu! Vai para o raio que te parta. Vai gritar pra cachorro na rua... Faz o que você quiser, Mas eu não canto nessa droga! E você não é homem para tentar me obrigar!
E saí de perto dele, chorando de saudades do meu amor.
Eu não ia cantar mesmo. Nunca mais queria ouvir falar de canto.
Sem Felipe não tinha graçaO salão da escola foi todo decorado em tons de azul e estava tudo muito bonito. Primeiro houve o tradicional cerimonial de entrega de diplomas, e depois o baile propriamente dito. Estar ali sem Lipe me doía muito, então me afastei da multidão. Me sentei num banco da área externa e comecei a chorar silenciosamente. Logo Zeca veio ao meu encontro.
- O que foi?
- Eu prometi que dançaria com ele no nosso baile de formatura! - falei entre soluços e lágrimas.
Ele me abraçou e deixou que eu chorasse o que ainda tinha para chorar em seu ombro.
Um tempo depois, vi os rapazes da banda vindo nos encontrar.
- Como você está? - eu já estava me cansando daquela pergunta.
- Indo.
- Viemos te chamar para tocar uma última música com a gente.
- Gente, eu...
- Fomos muito felizes quando estávamos todos juntos. - me interrompeu. - Agora que nos formamos, vai cada um para um lado e talvez nem nos vejamos mais. Queríamos ter o prazer de tocar uma última música com você. Felipe iria gostar muito mesmo.
Analisei o rosto dos meus companheiros da música; pessoas de quem eu nunca esqueceria. Emocionado pelas suas palavras e pelas lembranças de Felipe, cedi ao pedido. Os segui em direção ao palco, subimos e todos no salão pararam para nos assistir.
Com os olhos fechados e Lipe na cabeça, cantei uma das últimas músicas que tínhamos ensaiado juntosDepois da minha formatura comecei a me preocupar com o que faria da vida dali em diante. Claro que eu sentia falta de cantar e apesar de ter dito que não cantaria mais, muitos dos meus amigos diziam que seria uma forma boa de seguir em frente.
Mas eu queria fazer uma boa faculdade antes e já havia abandonado o cursinho.
Para espairecer, aceitei o convite dos meus avós maternos e fui passar o resto de dezembro com eles no Rio de Janeiro.
Eles me buscaram no aeroporto e me deram os pêsames pela morte de Felipe, se desculpando por não terem ido ao enterro.
Foi uma temporada de férias bem proveitosa. Para me distrair, meu avô me levou a várias casas de shows e me apresentou a grandes amigos seus ligados à música, o que só me deu mais certeza sobre ser a música meu futuro.
Em um desses passeios com meu avô, avistei um outdoor com a propaganda de uma faculdade particular de direito. Comentei com vovô e ele respondeu que o dono era um velho conhecido dele, e que se eu quisesse, ele falaria com ele por mim. Aceitei de imediato. Nem parei para pensar no fato de que teria que me mudar para o Rio de Janeiro e deixar Belo Horizonte para trás, deixando também minha família e amigos.
Agi por impulso e não me arrependi.
Não contei nada a ninguém a não ser meus avós. Queria ver o resultado antes.
Como era uma faculdade particular, o vestibular no fim do mês foi mera burocracia, “passei”.
Minha mãe, minha tia e Bruno chegaram no dia seguinte para passar as festas de fim de ano com o restante da família. Contei logo a novidade para minha mãe, que não reagiu muito bem:
- O quê? Se mudar para o Rio de Janeiro?!
- É mãe, eu já sou maior de idade, posso morar longe de você.
- E onde é que o senhor vai morar?!
- Aqui, oras. - falou meu avô, se intrometendo na conversa e ela não teve como rebater.
- Mas você tem certeza disso? Aqui está tão perigoso...
- Está perigoso em todo lugar mãe e sim, eu tenho certeza disso.
- Ahh...
Ela teve que se conformar. Ela me conhecia bem o bastante para saber que eu não mudaria de ideia. Passou todo o tempo das comemorações de fim de ano colada em mim e me paparicando. Segundo ela era saudade antecipada.
À meia-noite do dia 31, me vi mais uma vez escorado na varanda do apartamento dos meus avós. Há um ano eu estava naquele mesmo lugar imaginando meu futuro feliz ao lado de Felipe. Agora eu estava ali, só e sem um futuro concreto no qual eu pudesse me escorar.
No fundo a minha mudança tinha o sentido de me apresentar a pessoas novas; um mundo novo.
Se eu continuasse em BH, me lembraria do Lipe em cada esquina, em cada praça, em cada prédio pelos quais eu passasse e acabaria caindo em depressão.
Eu não podia deixar aquilo acontecer comigo de jeito nenhum. Por mim e pela memória do Lipe eu tinha que me reinventar, nem que para isso fosse preciso, mais uma vez, abandonar toda uma vida e começar de novo.
- Pensando nele? - perguntou Bruno colocando a mão no meu ombro.
- Sim. Tentando imaginar como vai ser daqui em diante.
- Vai ser difícil, mas você vai conseguir. Você é forte demais para se deixar cair assim.
- Obrigado. - respondi sorrindo.
Me peguei envergonhado quando percebi que tinha parado de perguntar a ele sobre seu namoro. Havia passado todos os últimos meses sofrendo pela morte de Felipe e me esqueci de me preocupar com aqueles à minha volta.
- E como vai o namoro?
- Bem. Zeca está muito feliz por termos nos assumido para a minha mãe.
- Isso é bom, já dá uma liberdade maior para vocês.
- Sim... - ele admirou os fogos no horizonte, pensativo por um momento. - Contei ao meu pai antes de virmos.
- Sério? E ele?
- Gritou coisas horríveis, me demitiu e me deserdou.
Ele falava sério e seco.
Eu o entendia, já tinha passado por aquilo com meu pai. Nessas horas você não se sente triste ou aliviado, você não consegue sentir nada. A ficha só cai depois.
- Eu sinto muito, Bruno... - falei afagando suas costas.
- Eu já esperava por isso. - falou ainda olhando os fogos. - Agora, preciso da sua ajuda.
- Da minha ajuda? Pra quê?
- Quero você ao meu lado amanhã na hora do almoço quando eu contar para todos aqui que sou gay.
- Ah! Sério? Você tem certeza disso?
- Absoluta. Chega de viver na mentira.
E assim foi. Quando Bruno, no dia seguinte, contou a toda a nossa família que era gay, começou o burburinho e os comentários do tipo “foi o Bernardo que te influenciou”.
Meus avós, como fizeram comigo, tomaram a frente e o defenderam de todos. Foi tudo meio tumultuado, mas no fim eles tiveram que engolir seu preconceito e ficar calados.
Logo no início de janeiro voltei com minha mãe, minha tia e Bruno para BH para fazer minha mudança. Também achei justo fazer uma pequena festa reunindo Zeca, Renata, Pedro, Beatriz, os meninos da banda e minha família. Todos aqueles que fizeram parte da minha vida nos últimos três anos e que eu nunca esqueceria.
Zeca já tinha terminado a faculdade e trabalhava em uma agência de publicidade. Renata e Pedro passaram no vestibular, ela para jornalismo e ele para engenharia.
Beatriz ingressou num curso muito famoso de teatro, ela queria ser atriz e devo admitir, levava muito jeito para aquilo.
Foi uma comemoração bem íntima, só nós.
Comemos, bebemos e rimos a noite inteira, e quando demos conta o dia já estava amanhecendo. Minha mãe e minha tia já tinham ido dormir. Bruno e Zeca tinham ido embora e deram carona para os meninos da banda. Fui levar Beatriz, Renata e Pedro até a portaria. Na rua mesmo começou o clima de despedida que tínhamos tentado evitar a noite toda.
- Eu vou ficar com muita saudade sua! - falou Renata, chorando, enquanto me abraçava forte.
- Eu sei, minha linda, também vou sentir muita falta sua. - respondi, começando a chorar também.
- Você é o meu melhor amigo, viu?
- Eu sei, você também é minha melhor amiga. Nunca vou te esquecer, até porque vamos nos falar sempre.
- Promete?
- Prometo.
Depois foi a vez de Pedro.
Sem cerimônias e parecendo esquecer que estava no meio da rua, ele me puxou e me deu um selinho demorado. Renata e Beatriz abafaram gritinhos de surpresa e eu fui obrigado a rir.
- Você é doido! - falei para ele.
- E isso lá é novidade? - respondeu debochado.
- Bobo. Vou sentir saudade desse seu jeitão.
- E eu vou sentir falta de você inteirinho. Mas olha aqui, me faz um favor?
- Claro, o quê?
- Se cuide, Bernardo. Eu sei que ainda está cedo pra você se interessar por alguém, mas procure fazer novos amigos e transar muito, mesmo que seja sem amor.
- Que diabo de conselho é esse? - falei rindo alto.
- Sério. - falou rindo também. - Vai te fazer bem. Não dê espaço para a saudade e a depressão te alcançarem. E o mais importante: seja feliz, meu amigo.
- Obrigado. - falei voltando a chorar e o abraçando.
Beatriz foi por último. Ela tinha os olhos marejados, mas a expressão bem séria, como se estivesse usando todas as suas forças para segurar as lágrimas.
- Eu não faço a mínima ideia do que te dizer... - ela falou.
- Posso falar, então?
- Pode.
- Você é a pessoa mais misteriosa que eu já conheci. Nunca vou conseguir te entender. Isso poderia ser uma coisa ruim, mas acabou se revelando ser uma coisa ótima. Você é um exemplo para mim, Beatriz. O dia em que eu tiver a força que você tem, a segurança que você demonstra, e a habilidade de controlar as pessoas sobre a qual você me falou uma vez, eu terei certeza de que posso enfrentar qualquer um e qualquer coisa. Você é minha heroína, Bia.
Ela não aguentou e as lágrimas começaram a rolar pelo seu rosto. Foi a primeira e última vez que a vi chorando.
- Você está chorando? - perguntou Renata incrédula.
- É o álcool, me deixa mole. - Beatriz respondeu limpando as lágrimas com as mãos.
Ela voltou a se virar para mim, ainda visivelmente emocionada.
- Me desculpe pelas coisas que eu te fiz.
- Não tem pelo que te desculpar. Quando você errou, não estava errando sozinha, ora era ele, ora era eu. Eu sou muito grato por ter te conhecido um dia e ser digno de te deixar desse jeito. É uma tarefa árdua.
Ela riu e me abraçou bem forte.
- Me espere lá no Rio. - falou no meu ouvido. - Um dia eu serei uma grande atriz e vou me mudar para lá, onde estão os grandes estúdios daqui. Provavelmente, você já será um cantor bem famoso, e poderemos desfrutar da fama juntos.
- Se você diz... - respondi rindo.
Eles me deram um último adeus e foram caminhando juntos em direção ao ponto de táxi. Não consegui segurar minhas lágrimas com a imagem de três dos meus melhores amigos indo embora. Não sei quanto tempo demoraria sem reencontrá-los, pois cada um agora seguia com sua própria vida; seu caminhoNo dia seguinte, minha mãe, minha tia, Zeca e Bruno foram me levar para o aeroporto. Mais lágrimas, a maior parte delas vindas da minha mãe. Como fiz com meus amigos, me despedi de cada um individualmente.
- Tia, eu não tenho palavras para te agradecer o bastante por ter me abrigado quando eu mais precisava.
- E você acha que eu te deixaria na rua? Jamais! Não tem nada pelo que agradecer, tenho você como um filho.
- Obrigado. Me faz um favor?
- Claro, qual?
- Cuida desses três pra mim? - falei apontando o resto da família com a cabeça.
- Pode deixar. - ela me respondeu rindo.
Depois foi a vez de Zeca e Bruno:
- Mais uma despedida, hein? - falei para Zeca.
- Pois é, mas a gente não consegue ficar muito tempo separados; vamos estar sempre nos falando e nos visitando. - ele respondeu.
- Verdade... - me virei para Bruno. - E quanto a você, finalmente vou te devolver seu quarto.
- Deixou de ser meu há muito tempo. Você deixou sua marca ali; aliás, deixou uma marca em nossas vidas. Muito obrigado por ter me ajudado tanto nesse último ano.
- Fiz com prazer. Quer me agradecer? Cuide bem do Zeca e faça ele feliz. - me virei novamente para Zeca. - E isso vale pra você também, viu? Tenho vocês dois como os irmãos mais velhos que nunca tive.
- Boa viagem! - eles falaram me abraçando ao mesmo tempo.
E então veio o mais difícil: minha mãe.
Não houve despedida, ela só chorava e eu consolava. Era a primeira vez que nos separaríamos por tanto tempo, então era compreensível o que ele estava sentindo.
Com muito custo, consegui fazê-la entender que estávamos separados por apenas quarenta minutos de voo e ela poderia me visitar quando quisesse. Me despedi mais uma vez de todos e adentrei a sala de embarque apenas com uma mochila nas costas, o resto das minhas coisas foi de caminhão.
Lá do alto, dei um último adeus a Belo Horizonte, a cidade que havia me acolhido nos últimos três anos e que eu tinha aprendido a chamar de lar.
A vida é assim, cheia de despedidas, mas elas são essenciais.
Só se despedindo das coisas que te prendem ao passado você pode se lançar de peito aberto ao futuro.