Tive que rir concordando com ele. Era esperado mesmo que aquilo acontecesse. As pessoas são hipócritas, me tratam diferente só pelo fato de eu ter conquistado fama. Eu seria capaz de apostar tudo o que tenho que todos me tratariam como um rei.
Ainda com meu celular nas mãos, voltei a discar, desta vez para a minha avó paterna, Maria.
- Benção, vó.
- Menino! Como você está pelo amor de Deus?
- Bem; melhorando.
- Como isso foi acontecer?!
Demorou um tempo até tranquilizá-la e chegar até onde eu queria.
- Você está morando sozinha na cidade, né, vó?
- Estou, por quê?
- Nada, estou pensando em ir te visitar...
- O quê? - ela perguntou com uma certa euforia na voz. Apesar de sempre nos falarmos, fazia tempo que não nos víamos.
- A senhora ouviu. Posso ir?
- É claro! Minha casa sempre esteve aberta pra você, meu filho. Quando você vem?
- Ainda não sei, dependo da aprovação do médico, mas deve ser em breve. Pretendo passar o natal com a senhora.
- Seria maravilhoso!
- Também acho.
Fiquei mais algum tempo conversando banalidades com ela e fazendo planos para a viagem.
Deixei para contar meus planos para a minha família no dia seguinte, quando todos estavam reunidos no meu quarto.
- Bom, depois que eu sair daqui, vou tirar umas férias.
- Faz muito bem. - falou minha mãe. - Você anda viajando e fazendo shows como um louco. Precisa descansar.
- Pois é, estava pensando em viajar.
- Ótima ideia! - comentou tia Marta.
- E pra onde você está pensando em ir? - perguntou Bruno.
- Morro Velho.
Os quatro me olharam assustados e Rafinha riu das suas reações.
- Bernardo... - começou Zeca.
- Eu estou decidido, nem adianta tentar me convencer a desistir.
- Mas, meu filho, por que isso agora? - perguntou minha mãe.
- Foi o acidente; me fez ver a minha vida por outro ângulo. Sempre achei que faltava alguma coisa e agora eu descobri o que é: um passado; é isso que me falta. Eu tenho que voltar a Morro Velho para acertar minhas contas com o meu passado.
Nos instantes seguintes tudo que ouvi foram pedidos e recomendações para que eu não fosse, mas eu estava irredutível.
Analisando posteriormente, eu só estava pondo em prática ensinamentos milenares de diversas religiões e seitas.
“Para falar com Deus, ou seja, atingir um estágio superior enquanto homem, eu precisava ficar a sós, apagar a luz, calar a voz. Para conquistar a paz que eu tanto desejava, eu precisava folgar os nós dos sapatos, da gravata, dos desejos e dos receios. Eu tinha que me acertar com todos aqueles que eu deixei para trás para ter a alma e o corpo nus, e assim, quem sabe, ser feliz.”
O que eu não sabia é que esta estrada pela qual eu estava decidido a seguir, ao findar daria em nada do que eu pensava encontrar.
Seria bem diferente.
Cerca de uma semana depois da minha decisão de voltar a Morro Velho, o médico me deu alta. Voltei ao Rio de Janeiro, onde eu realmente morava, arrumei minha bagagem e voei para Belo Horizonte, de onde sairia.
Rafinha ia comigo aonde quer que eu fosse, como um enfermeiro, todo preocupado com meus curativos.
Minha mãe decidiu ir junto dizendo ser para me proteger de qualquer um que tentasse falar mal de mim.
Para mim ela queria reencontrar meu pai com alguma esperança de eles se resolverem.
Ele podia até ter se casado de novo agora, mas todos sabiam que meus pais sempre foram apaixonados um pelo outro. Só separaram por minha causa. Ainda me martirizando com isso, incluí mais uma missão na minha viagem: unir meus pais novamente.
Zeca e Bruno também decidiram ir. Meu primo queria conhecer os sogros de qualquer maneira, coisa que Zeca morria de medo. Segundo Bruno, ele não iria contar nada para eles, até porque concordava com o “marido” que eles viviam melhor na ignorância, mas tinha a curiosidade conhecê-los. Zeca estava morrendo de medo do que poderia ocorrer, mas não teve como negar o pedido de Bruno.
No avião que nos levava do Rio de Janeiro para Belo Horizonte, resolvi perguntar a Rafinha uma coisa que não saía da minha cabeça:
- Rafinha...
- Oi?
- Tem uma coisa que não está fazendo sentido. Você me contou que seus pais não queriam nem ouvir meu nome, mas a sua mãe me tratou tão bem pelo telefone.
- Ah, não me expressei bem. O problema não é minha mãe. Ela é uma grande fã sua e nunca deixou de te ver como filho.
O problema é o resto da família. Meu pai e Vítor são quem proibiram seu nome dentro de casa. Sendo eles os “homens da família” - falou fazendo sinal de aspas com os dedos. - só restou à minha mãe acatar a decisão deles.
- Entendo...
- Ela nunca toma a iniciativa de falar de você porque respeita a ordem deles, mas quando eu puxo esse assunto, ela começa a falar muito bem de você. Já até a peguei escondida ouvindo você no rádio algumas vezes.
- Sério? - perguntei achando engraçado.
- Sério. Ela nunca me falou o que acha de toda a história que Mariana inventou e Vítor confirmou, ela foge desse assunto, mas eu sempre vi nos seus olhos a dúvida.
Acho que no fundo ela sabe que as coisas não são como parecem ser. Diferente do meu pai que, com medo de ter um filho gay, prefere acreditar numa mentira e fechar os olhos para todos os sinais.
- Sinais?
- Ah, qualquer pessoa com o mínimo de esperteza olha para o Vítor e a Mariana e percebe que aquilo é tudo fachada!
- Ah...
Pelo jeito eu teria sérios problemas com tio Alfredo. Na minha vida no Rio, conheci muitos outros gays e eles realmente contavam que às vezes seus pais preferiam viver acreditando na mentira.
Me diziam que era confortável até certo ponto, porque hora ou outra há a necessidade de escancarar a verdade, e poucas famílias estão preparadas para ouvir a verdade.
Eu entendia tio Alfredo.
Fechar os olhos era seu meio de se proteger.
Infelizmente para ele, minha visita o forçaria a abri-los.
- Bernardo, posso te perguntar uma coisa? - falou Rafinha me tirando dos meus pensamentos.
- Claro.
- Como vai ser para você reencontrar meu irmão?
- Não sei...
Como seria encontrar Vítor depois de tanto tempo?
Eu não sentia mais mágoa dele por um lado, mas por outro, também não nutria por ele nenhum outro sentimento bom.
Eu acreditava que ele havia mudado muito em todos esses anos, do mesmo modo que eu mudei, e depositava nisso todas as esperanças de podermos conviver bem pelo tempo que eu estivesse em Morro Velho.
Aliás, esse pensamento também valia para o meu pai. Eu esperava que com o passar dos anos ele tivesse aprendido a me aceitar melhor.
Era por causa dele também que eu estava indo.
Ele era a principal pessoa a quem eu devia perdoar e pedir perdão. Apesar do fato dele não ter feito contato ao longo dos anos, eu sonhava com nossa reconciliação pacífica.
- Não sei como vai ser reencontrar com todos os habitantes de Morro Velho. Eu estou pagando pra verNo dia quatorze de dezembro, uma sexta-feira, eu, Rafinha, Zeca, Bruno e minha mãe pegamos a estrada com destino a Morro Velho. A viagem era curta, então fomos conversando.
- E como vai ser sua volta triunfal, Bernardo? - brincou Zeca.
- Será um marco na história da cidade. Eu aluguei um helicóptero que vai me deixar no telhado da igreja matriz ao final da última missa.
De lá vou descer de rapel até a entrada.
O padre Antônio vai ter um infarto tamanha a surpresa.
Então, eu vou tirar os óculos escuros que estarei usando durante tudo isso, olhar bem nos olhos dos espectadores estarrecidos e falar num tom de vilã mexicana: “I’m back, bitches!”.
Eles riram muito da brincadeira. Estávamos todos precisando relaxar. A tensão no ar no carro podia ser cortada com uma faca de tão sólida.
Todos ali tinham motivos para temer o nosso destino final. Bruno iria conhecer os sogros, Zeca teria que se desdobrar para não deixar nada transparecer, minha mãe iria reencontrar meu pai.
Só Deus sabe o que tio Alfredo tentaria fazer com Rafinha depois dele ter fugido, e eu não queria nem pensar.
Depois que acabaram de rir, o silêncio caiu sobre o carro e ficou.
Para tentar melhorar um pouco o clima, liguei o rádio, e coincidentemente, Elis cantava:
“Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar
Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir cantar
Uma sabiá
Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Vou deitar à sombra
De uma palmeira que já não há
Colher a flor que já não dá
E algum amor talvez
Possa espantar as noites
Que eu não queria
E anunciar o dia
Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Não vai ser em vão
Que fiz tantos planos
De me enganar
Como fiz enganos
De me encontrar
Como fiz estradas
De me perder
Fiz de tudo e nada
De te esquecer”
(Sabiá – Tom Jobim/Chico Buarque)
E lá estava eu, voltando para o meu lugar. Do alto da montanha que dava nome à cidade, pude ver a minha cidade natal. Já era noite, então o vale estava salpicado de luzes. Mas muita coisa havia mudado, não era mais uma vila e sim uma cidade.
- Parece maior... - comentei.
- Foi a mineradora. Atraiu muita gente e a cidade foi crescendo. Não é mais uma cidade do interior isolada do mundo. É uma pequeno centro regional de comércio. - respondeu Rafinha.
E era mesmo. Não parecia mais a cidade que eu havia abandonado há quase oito anos. Tudo havia mudado, mas o mais importante, seus habitantes haviam mudado junto com ela?
Deixaram de ser tão provincianos e pequenos? Tão conservadores e hipócritas?
Em breve eu teria minha resposta.
- Então, como é voltar depois desses anos todos? - me perguntou Zeca.
- Não sei. Agora que estou aqui, me pergunto se fiz o certo em vir...
- Fez sim. - falou minha mãe.
- Eu tenho medo...
- Não tenha. Você é uma estrela agora, eles não podem mais te fazer mal. - respondeu Rafinha.
- Será?
- Tenha fé. - falou Bruno apertando meu ombro.
O carro foi entrando na cidade.
As ruas agora eram de asfalto e não mais de cascalho, como quando eu era criança. As casas barrocas com seus janelões de madeira tinham dado lugar a construções muradas com altos portões que isolavam seus moradores. Eu não reconhecia nenhuma das pessoas que passava pela rua, ao contrário de antigamente, quando todos se conheciam. O antigo e único cinema da cidade, do qual eu tinha tantas boas lembranças, havia se transformado num mini shopping center, com uma arquitetura que nada lembrava à antiga.
O único prédio que ainda parecia intacto era a igreja matriz.
Não pude deixar de me entristecer. Nos meus sonhos, Morro Velho era aquela do século 20 onde eu cresci, e não esta nova do século 21 que só me trazia estranheza.
Zeca entrou em algumas ruas com o carro já que ele era o único que conhecia a atual cidade e parou em frente a um sobrado de dois andares, com grades e um lindo jardim na frente da entrada. Ele não precisou dizer nada para que soubesse que aquela era a casa da minha avó. Não esperei ninguém, saí correndo do carro em direção ao portão e chamei alto:
- Vó!
Ela veio já de pijamas e roupão, apesar de não ser tão tarde.
Ao me ver, seus olhos se encheram de lágrimas e ela correu para abrir o portão. Já fazia bem tempo mesmo que não nos víamos.
Nos abraçamos emocionados e ela me arrastou para dentro de casa, nem ligando para o resto das pessoas.
Matamos a saudade durante um bom tempo e ela me forçou a comer muitas guloseimas que tinha preparado para me receber. Sua casa era muito espaçosa apesar dela morar sozinha. Tinha um quarto para a minha mãe, e outro para Bruno e eu. Zeca ficaria hospedado com seus pais.
- A cidade vai ficar louca quando souber que você está aqui! Mas nada de contar agora, você deve descansar porque até curativos tem ainda. - falou apontando para o esparadrapo que protegia o corte no meu supercílio direito.
- Vou descansar sim, vó, mas antes tenho que ir num lugar cumprir uma promessa. - falei olhando para Rafinha que engoliu seco. - Me empresta a chave do carro, Zeca?
- Claro. - respondeu me entregando. - Esqueceu que ele é seu? – Rimos.
Eu e Rafinha nos despedimos de todos e entramos no carro. Por sorte não havia ninguém na rua, então nada de reações escandalosas com minha presença.
No caminho para a fazenda do Cercadinho, nenhum de nós dois falava nada. Impossível saber qual de nós estava mais nervoso.
Em um certo momento Rafinha, assim do nada, me dá um beijo no rosto.
- Eu te adoro, Bernardo!
Entrei com o carro pela porteira aberta e segui em direção à sede da fazenda. Nem que se passassem mil anos eu esqueceria o caminho, afinal aquela foi a minha segunda casa durante minha infância.
Quanto mais perto eu chegava, mais lembranças me vinham à cabeça. Meu coração batia acelerado.
Parei o carro em frente à entrada e desci.
Rafinha veio logo atrás com sua mochila.
Ele foi em direção à maçaneta da porta para abri-la, mas eu segurei seu braço.
- O que foi?
- É melhor bater antes.
- Mas eu moro aqui.
- Mas eu não.
Ele concordou e bateu na porta. Escutamos os passos de alguém lá dentro vindo atender. Meu coração parecia que ia sair pela boca.
Rafinha notou e segurou em minha mão tentando me dar coragem, em vão.
A porta se abriu e se revelou uma mulher de meia-idade loira, já com várias rugas, e um vestido simples, porém bonito.
Seu rosto se iluminou quando nos viu e nos puxou para um abraço apertado. Não contive a emoção e a abracei de volta.
- Eu nem acredito que você veio! - falou tia Rosa.
- Eu tinha uma promessa a cumprir, né? - respondi apontando para Rafinha.
Eu sorria feliz, sem motivo aparente. Talvez só aquele reencontro já me deixava feliz.
- Você cresceu tanto, menino. Está bonito e quem diria, famoso!
- Pois é, a vida é uma piada...
- Você não é uma piada, você é muitíssimo talentoso, merece a fama que tem.
- Obrigado. - respondi sem jeito o elogio.
- Venha entre. - ela convidou.
- Eu não sei se é uma boa... - fui tentar argumentar, mas ela já tinha me puxado para dentro da casa e fechado a porta.
Rafinha ria da situação, mas seu sorriso se perdeu quando uma voz familiar veio da sala de jantar.
- Quem é Rosa?
Era tio Alfredo.
Senti meus músculos se enrijecerem de nervosismo. Eu esperava adiar ao máximo aquele encontro depois do que Rafinha havia me contado.
Mas eu não tinha escapatória, teria que dar a cara à tapa ali mesmo naquele instante.
- Venha ver com seus próprios olhos! - ela lhe respondeu ainda rindo.
Ele veio até o cômodo onde estávamos e estacou ao me ver.
Ele não parecia ter envelhecido. Ainda era um pouco gordo e tinha cabelos grisalhos. As rugas ainda eram as mesmas e suas feições gentis também, apesar do seu humor terrível.
Nos encaramos durante alguns segundos sem saber como agir. Ao contrário do que tinha acontecido com tia Rosa, éramos dois estranhos.
- Hum, que surpresa. - ele falou enfim.
- Vim te devolver seu filho, seu Alfredo. - falei tentando soar tranquilo, mas sem sucesso.
Ele desviou seu olhar para Rafinha que estava abraçado em minha cintura, e depois voltou para mim.
- Obrigado por isso. - sua expressão se fechou mais ainda e eu percebi que lá vinha chumbo para o meu lado. - Olha aqui, se acha que eu esqueci...
- Shh. - interrompeu tia Rosa. - Passado é passado. Hoje é dia de festa, nosso filho e Bernardo estão de volta. Ele é nosso convidado. Junte-se a nós na mesa, Bernardo.
- Não precisa tia, já comi na minha vó...
- Ela está certa. Você é nosso convidado, junte-se a nós. - falou tio Alfredo com sua voz de trovão.
Percebi que recusar não era uma opção. Não sei se para me salvar ou me danar ainda mais, a porta da entrada atrás de mim se abriu.
- De quem é esse carrão importado aí fora?
A voz estava mais grossa, mas ainda parecia a mesma. Prova disso é que meu corpo todo reagiu a ela.
Impulsivamente, me virei para o dono dela. Os olhos incrivelmente verdes ainda eram os mesmos, assim como o cabelo loiro.
Mas não era mais um garoto e sim um homem. Ao contrário de mim que não tinha sequer traço de barba, a dele, rala ainda, estava por fazer, lhe dando um ar de masculinidade. Seu corpo era musculoso como o de um atleta, mas nada muito exagerado.
Lembro-me de pensar como ele tinha conseguido ficar ainda mais bonito depois de todos esses anos, ainda mais vestido de forma tão casual como ele estava.
Nos encaramos por um instante que pareceu uma eternidade. Em seus olhos eu vi toda a minha infância feliz, tudo o que eu tinha passado de bom e de ruim em Morro Velho e uma vida inteira que eu havia deixado para trás.
Lá estávamos, cara a cara, Vítor e eu depois de tanto tempo e tantos acontecimentos.
Mal sabíamos que aquele reencontro mudaria para sempre nossas vidas.