Nas elucubrações de um dia solitário relembrei com muita satisfação de um acontecimento, agora já longevo, inesperado e estranho experimentado nos meus primeiros anos de juventude. Tentando, em tempo recente, compreender um pouco do que significou aquele encontro percebo que, tanto já quanto à época, não há explicação que o justifique. Nasceu e morreu simultaneamente, e não se prolongou, pelo que noto, em nossa memória.
Eu estava em meu último ano de graduação; por isso, o vínculo de estágio que mantinha àquela altura beirava o encerramento. Uma pena, porque sempre nutri profundo afeto pelo meu local de trabalho mesmo que, pelas dinâmicas inerentes a ele, houvesse grande rotatividade de funcionários e chefia. Naquele mesmo ano, por exemplo, dois chefes foram substituídos de forma injustificada, e permanentemente pairava sobre nós, funcionários e estagiários, incerteza brutal sobre a continuidade ou descontinuidade da equipe que com muito custo foi se construindo. Acontece que, pela primeira vez, uma mulher foi nos apresentada como chefe. Lembro daquele dia em detalhes: um sócio, entrando acompanhado e desavisadamente na sala de controladoria onde estávamos, disse: "Pessoal, como alguns de vocês notaram, Raul está afastado das atividades desde o início da semana passada. Com muito pesar decidimos oficializar e tornar definitivo o afastamento. Pelo fluxo de serviços do setor em que vocês estão, é preciso que haja substituição imediata, mesmo que eu saiba da boa relação que sempre houve entre vocês e Ruul (por alguma razão, era o apelido do antigo chefe). Por isso, preciso que vocês conheçam a mulher que, pela primeira vez, vai acompanhar a equipe de forma mais próxima daqui pra frente. Por favor, se apresente, doutora Mariana". O que se seguiu foi de praxe. Mariana contou dela; contamos de nós, e não houve mais espaço para conversa até o dia seguinte. Claro, a saída de Ruul ainda era um choque, mas simpatizamos de imediato com Mariana e com a impressão que ela nos deixou. Aliás, era uma mulher linda. Cabelo castanho, liso, até os ombros, e alta, muito alta. Parecia jovem demais, e isso nos fez especular. De onde ela teria vindo?
No dia seguinte, já transitando normalmente pela sala, Mariana travou a primeira reunião em sua gestão. Lá pude observar mais atentamente: ela tinha um rosto incrivelmente harmônico, cheio de delicadeza, embora muito sisudo e ela mesmo fosse um tanto quanto pomposa. Era encorpada, admito. Discreta, me ative aos procedimentos iniciais básicos, sem muita transversalidade com relação à Mariana. Deixamos que ela se ambientasse, ao mesmo tempo que nós próprios procurávamos retornar à normalidade.
Pelos próximos meses, esse foi o comportamento geral que nos guiou em toda a dinâmica interativa no trabalho. Os colegas estranharam, porém, que o trato sempre muito polido e distante com o qual Mariana nos tratava continuava. De fato, era desagradável e nos enchia de um nervosismo constrangedor em todas as ocasiões em que se fazia necessário consultá-la sobre alguma questão em específico.
Infelizmente, seguimos nesse ritmo até meu último mês de estágio, maio de 2005. Encerraria meu contrato em exato no dia 20 daquele mês, e já ensaiávamos, pouco tempo antes, o momento de despedida quando Mariana se dispôs a agendar um jantar coletivo num restaurante próximo à sede da controladoria. Ficamos surpresos, e não era pra menos: mesmo depois de tanto convívio, tínhamos acesso a informações escassas e raras sobre a chefe. Sabíamos que namorava um rapaz que trabalhava no ramo hospitalar, que pertencia a uma cidade próxima e que era tímida na mesma proporção que era exigente, e só. Por isso, consideramos 'missão' obrigatória participar do jantar - meu último momento com aquelas pessoas e Mariana.
Ele aconteceu numa quinta-feira, dia 20, e seguimos do trabalho até o restaurante (de excelente gosto, por sinal). A noite foi maravilhosa. Interagimos e conversamos de maneira descontraída, e a mesa foi tomada logo por um clima completamente diferente daquele de mais cedo, tão formal e absorto. Mariana mesmo demonstrou muita conformidade, e brincava com um e outro de maneira inédita até ali. Ficamos confortavelmente por lá até às 21h, quando os compromissos domésticos foram convocando, um a um, os membros da equipe para suas casas, maridos, esposas e filhos.
No fim, a cada despedida um abraço e uma troca de palavras afetuosas iam surgindo. Foi assim até que ficamos em três: uma veterana do trabalho chamada Aline, eu e Mariana. Finalmente me dei por vencida e comuniquei às duas de minha ida para casa, cansada e já sonolenta que estava. Nesse ponto, mais uma surpresa: a chefe se voluntariou a levar-nos embora, Aline e eu, o que foi imediata e contentemente aceito. Ela, coletando informações de onde morava Aline, aproveitou que era local mais próximo de onde estávamos e deixou ela primeiro. Como de praxe, desci, abracei e me despedi de Aline, prometendo visitá-la na controladoria e agradecendo pelos dois anos de profundo cuidado e aprendizagem. Já no carro, fui distraída e emocionada para casa. Acho que Mariana viu a lágrima solta e silenciosa que deixei escorrer por um ou dois segundos, já saudosa que eu estava das pessoas com quem tinha andado até ali, porque, num gesto, ela a enxugou e disse, firme: "Não vais ficar em casa só desse jeito, toda chorosa". Rindo, emendei: "Uma cerveja resolve". Eu já nem ligava mais, estava de saída mesmo, pouco me importava o que ela diria ou pensaria dali em diante.
Instada pelo tom do convite, Mariana encostou num bar esvaziado no caminho para minha casa. Me convidando a descer do carro, de forma graciosa e risonha lançou: "Vamos resolver, então". Quase dei um "graças a Deus". Desde cedo queria mesmo era beber umas brejas, e aquela coisa de estar em companhia de trabalho me impossibilitava de realizar a vontade. Na verdade, pelo que me lembre, foi quase o que verbalizei para ela, na descida. Saiu algo como "que bom que você vai me acompanhar".
Uma vez sentadas, só foi 'bater' a quarta cerveja que logo nos soltamos. Mariana estava linda, num macacão longo, preto e apertado. Eu, claro, elogiei e não perdi a oportunidade.
"Olha, até aqui só tivemos chefias masculinas. Fico feliz em te ver lá... é um suspiro ter mulher competente e gata no alto escalão".
Ela gargalhou deliciosamente.
"E aí tu só me diz isso quando tá indo embora? Que sacanagem! Um elogio desses a gente compartilha logo, pra elevar a autoestima de quem ouve".
"Era difícil dizer antes. Tu és sempre tão autocentrada. Às vezes pensava que te atrapalhava até compartilhando uma questão de trabalho, imagina dizendo que te acho super gostosa?". Caramba! Relembro com clareza da tentativa de me controlar depois de ter dito isso. Fingi normalidade, embora a expressão de Mariana me indicasse que a situação era tudo, menos normal. Soltei de forma involuntária essa confissão, embalada pela cerveja e pela conversa, e logo tive que inventar uma forma de sair pela tangente.
"E tu de fato é. Não é uma opinião só minha". Fiz cara de paisagem e dei um risinho sem-vergonha, propositalmente dando a entender que a equipe inteira falava sobre ela. A feição dela mudou numa fração de segundos.
"Tu acha, é? Que gostoso ouvir isso assim. Vejo que as pessoas em geral têm muitos dedos em serem abertas comigo. É um comportamento que me incomoda".
"Mas isso quem causa é tua polidez. Aliás, estou até te estranhando tão solta assim, ainda que esse estranhamento seja na verdade maravilhamento".
Mariana enrubesceu. A feição avermelhada, iluminada pela timidez, contrastava com o ambiente escuro e isolado onde estávamos.
"Poxa, se eu soubesse que ouviria tanta coisa bonita aqui contigo teria te trazido antes". Mais um risinho. Fui sucinta: "devia ter trago mesmo".
Notei ela dando uma olhadinha em meu rosto rapidamente, antes de pegar o celular. Minutos depois disse: "Vamos? Tá tarde". Realmente, já era 23:30h, e estávamos as duas esgotadas. Claro, fiquei um tantinho triste por não poder mais reafirmar naquela noite o quanto ela era uma puta duma gostosa. Se houvesse brecha, certamente o teria feito umas mil vezes, para ver se ela entendia que eu queria mesmo era ela.