CAPÍTULO DEZ
*** PEDRO FERNANDES ***
Como é aquele ditado? Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão. Será que a mesma lógica se aplica à stalkers? Me pergunto enquanto observo, atrás das cortinas da janela da cozinha, Hugo passeando com Beatrice pelos jardins durante o horário de almoço. Eu simplesmente não consigo desviar o olhar.
— É precioso, não é? — Silvia, a governanta, me assusta ao perguntar. Deus, de onde ela saiu? Depois de algumas respirações para acalmar as batidas aceleradas do meu coração, me vejo obrigada a concordar.
— Sim, é precioso.
Eu sempre soube que a relação de Beatrice com o pai era algo para se admirar. Em um mundo onde ser mãe é obrigação enquanto ser pai é uma escolha, é preciso uma desconstrução constante para que a cabeça entenda que um pai agindo como pai não está fazendo mais do que sua obrigação.
Mas no caso do Hugo, o que chama minha atenção é que ele sabe disso. O pai de Beatrice conhece seu papel e busca, apesar dos próprios defeitos, executá-lo com perfeição. Isso ficava claro mesmo quando eu só conhecia a versão da filha dos fatos. E depois de um par de dias observando os dois juntos de tão perto, não acho que Silvia pudesse ter escolhido uma palavra melhor do que essa: preciosa.
Mesmo que a mania de Hugo de observar nossas aulas quando acha que nenhum de nós dois está percebendo sua presença me irrite. Até mesmo sua reação na reunião de pais, há quase um mês, se tornou mais compreensível para mim. Ele estava com medo, só isso. Mas não me passou despercebido que Beatrice passou a ver uma psicóloga alguns dias depois.
Inclino a cabeça e não consigo evitar o sorriso quando a menina é erguida e girada no ar. Quase posso ouvir sua risada gostosa e rio também. É difícil acreditar que aquele, lá embaixo, é o mesmo homem que parece sentir prazer em me atormentar a cada oportunidade e que quando não as encontra, as cria.
Nos últimos quatro dias, já tivemos pelo menos dez discussões: sobre meu horário de chegada, sobre atrasar por um minuto o almoço de Beatrice, sobre atrasar por dois minutos a aula de música de Beatrice, sobre a cor do céu ou o melhor caminho para chegar ao lavabo na casa enorme. Nossos encontros não duraram mais de cinco minutos e, ainda assim, ele cumpriu com louvor a tarefa de me irritar em todos eles.
No momento em que passei pela porta na segunda-feira e encontrei Hugo com aquele sorrisinho ridículo na cara depois de eu ter tido uma manhã horrorosa, entrando e saindo de dentro de quatro ônibus para conseguir atravessar do sul ao norte da ilha, eu quis apagá-lo, nem que fosse no soco. Deus, eu nunca fui uma pessoa violenta. Mas Hugo Maldonado com certeza desperta meus piores instintos.
Custava ter me avisado sobre o caos do transporte público Florianopolitano, já que ele o conhecia? Inacreditável! Homem irritante! Urgh!
Socá-lo poderia até não ser uma opção, mas eu não lhe daria a satisfação de pedir pelo motorista que já havia dispensado. Eu preferiria começar e concluir o processo da autoescola e comprar um carro financiado, a lhe dar o prazer de voltar atrás. Aquele rosto irritantemente perfeito vai derreter antes de chegar o dia em que eu verei prazer estampado nele por eu ter admitido que Hugo tem razão sobre qualquer coisa que não seja o fato de ele ser um idiota.
Uber teria que ser o suficiente, então. Decidi. E, convenhamos, com a fortuna ostentosa que me está sendo paga pelo homem de apenas três expressões faciais: carrancudo na maior parte do tempo, bobo quando lida com a filha e sorridente de forma ácida e satisfeita quando está me irritando; eu posso andar de Uber pelo resto da vida. Por isso, ignorei o balançar negativo de cabeça que Hugo me deu, da janela do seu escritório, quando me viu entrar no carro de aplicativo para ir embora no início da noite de segunda.
— Nunca deixa de me impressionar o quanto ele é uma pessoa completamente diferente com a filha — Silvia diz e para ao meu lado na janela, parecendo ansiosa para fofocar. Eu não sou uma pessoa que desperdiça boas oportunidades.
— Você trabalha com eles há muito tempo? — pergunto, como quem não quer nada.
— Cinco anos. — Inclina a cabeça e cruza os braços. — O senhor Maldonado me salvou — diz a segunda frase baixinho e eu abro a boca, mas fecho logo em seguida, sabendo que a pergunta que quero fazer é completamente inconveniente. Silvia ri antes de assentir. — Eu sei. É difícil de acreditar, né?
— Com aquele humor? Eu diria impossível. — O que eu havia dito sobre alguém estar ansiosa para fofocar? Talvez Silvia não seja a única. Viro-me para a mulher magra, de pele avermelhada e cabelos castanhos dourados. A governanta deve ter uns cinquenta e cinco anos e tem uma beleza sóbria. — Eu achei que você fosse tipo a Madame Samovar, sabe? — admito e agora, a risada dela é uma gargalhada gostosa.
— A Bela e a Fera, hein? Eu tive mesmo a impressão de que você era um sonhador — declara e dá uma piscadinha. Espera, o que ela quis dizer com isso? — Eu tinha acabado de perder meu marido quando vim trabalhar para o senhor Maldonado. — Vira-se para mim. — Ele fez algo que a maior parte das pessoas ao meu redor parecia não ser capaz, ele entendeu. — Não preciso perguntar o que, porque eu mesmo entendo. E como entendo.
Há certas dores impossíveis de se explicar. A única forma de compreendê-las é sentindo-as. É triste, mas é verdade. Apenas balanço a cabeça para cima e para baixo, assentindo.
— Ele foi sempre assim? — pergunto, indicando os jardins. O sorriso de Silvia se torna quase maternal.
— Desde que o conheço, sim? O senhor Maldonado nunca deixou que ninguém tomasse para si a responsabilidade que era dele. — Assinto, outra vez. E a outra versão dele? Também foi sempre essa? Quero perguntar, mas guardo para mim. — Beatrice está muito animada por ter você aqui, sabia? — Silvia muda de assunto de repente e eu pisco antes de sorrir. — Ela falava de você o tempo todo muito antes desse assunto de mudança surgir.
— Eu também estou. Honestamente, uma mudança de estado não estava nos meus planos, mas eu quase consigo entender porque o Hugo não consegue dizer não para aquele ser. Ela é muito especial. — Silvia recua o rosto e franze o cenho e eu levo alguns segundos para perceber o motivo do seu estranhamento. Hugo, eu o chamei pelo primeiro nome. Embora ele insista que eu o chame assim, já reparei que todos os outros funcionários o chamam pelo sobrenome. — E a procura pela babá? Como vai? — Faço uma tentativa de desviar a atenção de Silvia para outro lugar que não a minha gafe.
— Não muito boa. — Faz uma careta. — Ele não gostou de nenhuma das candidatas até agora. Hoje à tarde ele vai entrevistar mais três.
— Mas se ele fica em casa, por que precisa de uma babá?
— Ele não vai ficar por muito mais tempo. Só essa primeira semana. — Abro a boca e deixo que um “ah” silencioso escape por ela. Isso faz bastante sentido. Não haveria motivo para a mudança se o trabalho pudesse ser feito via home office.
— E você acha que ela vai se adaptar? — pergunto movido pela curiosidade. Beatrice não demonstrou quaisquer sinais de resistência ainda. Mas isso não quer dizer que ela não exista. A garota pode estar apenas se esforçando para agradar e, futuramente, descobrir que é demais para ela.
— Ela vai tentar. E vai tentar muito. — Não preciso perguntar o motivo. A direção do olhar de Silvia é toda a resposta de que preciso. Beatrice vai tentar para agradar o pai.
— Ela é fascinada por ele, não é? — murmuro enquanto observo com atenção mais um momento entre pai e filha. Sinto-me um invasor, é verdade, mas esse tipo de espetáculo é apenas impossível de ignorar.
Hugo arranca uma pequena flor de um arbusto do jardim e prende atrás da orelha de Beatrice. A garota sorri, boba e derretida para o pai. Mesmo de longe, quase posso sentir a segurança dela de que todas as coisas do mundo estão em seus lugares, porque seu pai está ali. Pisco, engulo e umedeço os lábios, tentando controlar as emoções despertadas pela cena e pelos meus próprios pensamentos.
— Completamente. O senhor Maldonado não é só o herói da filha, ele é seu mundo inteiro.
No jardim, Hugo pega Beatrice no colo e a garota estende as mãos pequenas para o rosto do pai. As palavras de Silvia estão estampadas naquele gesto para quem quiser ver.
É assim que uma família deveria ser. O pensamento vem sorrateiro, mas se agiganta a ponto de me levar ao limite em uma batalha para não derramar nenhuma lágrima. Meu peito e pulmões parecem comprimidos por uma força invisível e eu puxo o ar quase com desespero. Silvia vira-se para mim e preocupação colore seu rosto quando ela percebe que há algo de errado.
— Você está bem?
— Estou. — Finjo uma risada e faço uma careta como se perguntasse o porquê de ela estar me fazendo aquela pergunta. A governanta abre a boca, pronta para dizer algo, mas sou salvo pelo toque do meu celular sobre a bancada. A desculpa perfeita para eu sair da cozinha. — Com licença, eu preciso atender — digo, mesmo sem saber quem está me ligando e quase corro para fora do cômodo, só parando para pegar o aparelho celular antes de fugir.
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O celular vibrando em minha mão faz uma pergunta que eu não sei como responder. Seis dias. Saí do Rio no sábado e minha ausência foi notada na quinta, já que essa é a única razão plausível para eu estar recebendo essa ligação. Foi mais rápido do que imaginei que seria, considerando que minha avó nunca se importou em saber onde eu estava.
Posso ignorar. Deixar a ligação cair na caixa postal. Ela insistiria por mais duas ou três vezes antes de me deixar um recado mal criado, exatamente como Marieta adora me acusar de ser. Olho para os lados, confirmando que os corredores próximos à biblioteca estão vazios.
Hugo não mantém muitos funcionários fixos, apesar da casa enorme. Há a governanta, a chef, uma empregada fixa, os motoristas e um jardineiro. O resto dos trabalhos da mansão é feito por equipes terceirizadas, segundo o que Silvia me explicou.
Mordo o lábio, sem saber o que fazer e a foto da minha avó na tela arqueia uma sobrancelha, me desafiando a ignorá-la para que a mulher por trás do rosto aristocrático possa me acusar de covardia depois. Suspiro e passo a mão pelos cabelos soltos. É melhor arrancar logo a droga do band-aid.
— Sim.
— Você se mudou para Santa Catarina? — Sem olá, sem qualquer indicação de que ela realmente se importe. Apenas um tom gélido e a pergunta direta.
— Sim. — Não me importo em perguntar como ela descobriu.
— E pretendia me contar quando?
— Não pretendia.
— Você é uma criança ingrata! — acusa. Levo a mão à testa e fecho os olhos.
— Qual era o seu plano, avó? De verdade, o que a senhora esperava?
— Que quando se cansasse da brincadeirinha de professor, você voltasse para casa, não que entrasse em um avião para outra região do país, Pedro! — diz como se este fosse um raciocínio óbvio.
— Eu não sei mais de quantas formas diferentes posso te dizer que para mim isso nunca foi brincadeira.
— E, ainda assim, você abandonou seu emprego e foi morar em outro estado. O que aconteceu? — O silêncio que preenche a ligação depois dessas palavras é o único indicativo de que essa não foi uma pergunta retórica. — Te demitiram, não foi? — assume um tom venenoso. — Você falhou e não teve sequer a coragem de admitir? — Bufa e ri. — Por isso foi embora? Você sempre foi mimado, mas agora passou dos limites! Pelo menos coragem eu achei que você tivesse, já que faz tanta questão de me enfrentar uma vez atrás da outra. — Pisco, levemente atordoado e quase rio. É claro que o fato de eu ter atendido a porcaria da ligação não a impediria de me acusar de covardia.
Não é a primeira vez que Marieta diz que sou mimado, mas é a primeira vez que a mentira contida nessa acusação me atinge com tanta força. Mimado? Como ela...Como ela se atreve?
— A senhora tem mais alguma coisa para me dizer? — pergunto com os dentes cerrados com tanta força, que acho que posso estar prestes a quebrar alguns. Cansada. Sinto-me exausta, de repente.
— Quero saber onde você está! Agora! Vou mandar um avião, acho que em duas horas consigo organizar tudo — avisa antes de gritar por sua assistente. — Camila! — Ela é inacreditável.
— Avó, eu não vou voltar. Eu vim a trabalho e tudo o que a senhora precisa saber, se é que tem algum interesse, é que eu estou bem. Mais alguma coisa?
— Pedro!
— Avó, eu nunca desliguei o telefone na sua cara antes, não me faça começar agora.
— Eu não acredito na sua petulância. — Um som desgostoso arranha minha garganta. — Depois, não adianta vir correndo pra mim! — Dessa vez, eu rio.
— Faz muito tempo que eu aprendi que isso não me ajudaria em nada, avó. Eu tinha sete anos. Boa tarde. — Desligo e aperto o telefone entre os dedos.
A pressão causada em meu peito pela visão de Hugo e Beatrice se torna infinitamente maior. Se antes me faltava ar, agora parece que me faltam os órgãos. Meu coração e pulmões foram reduzidos a um tamanho miserável que os deixa incapazes de realizar seu trabalho.
Espalmo as mãos na parede mais próxima, uma direto no concreto frio pintado de branco, a outra, pressionando o aparelho celular contra ela. Toco a testa na superfície lisa antes de puxar uma inspiração profunda. No que diabos eu estava pensando para atender a ligação durante o trabalho? As ligações da minha avó são como acidentes radioativos, eventos raros e ruins.
Fecho os olhos e fico parado, concentrando-me apenas no esforço hercúleo de respirar corretamente enquanto uma gama sem fim de emoções disputa espaço em meu peito quase vazio, já que o principal ocupante dele foi reduzido a quase nada.
Não sei quantos minutos se passam até que eu sinta que sou capaz de respirar normalmente outra vez. O frio da parede em contato com a minha pele ajuda. Mantenho os olhos fechados, finalmente começando a me concentrar em colocar meus sentimentos em ordem, em outras palavras, pegar tudo de ruim que minha avó desperta e trancar num quarto escuro, abafado e negligenciado da minha própria mente.
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*** HUGO MALDONADO ***
— Pedro? — chamo, ao encontrar o homem pequeno com o corpo voltado para a parede. Mãos e testa tocando a superfície e os ombros curvados em uma postura contraída. O único indicativo de que me ouviu é sua mão se movendo e expondo o celular que tinha a tela contra a parede para os seus olhos antes de acendê-la.
— Se você precisa reclamar de alguma coisa… — começa e se a postura em que o encontrei me causou estranhamento, seu tom de voz me alarma. Esse não é o tom habitual da Bela Armadilha. Sua voz sempre segura e cheia de certezas, agora soa baixa e cansada. O professor sequer conclui a frase.
Me aproximo. Sem pensar muito sobre isso, espalmo a mão na base da sua coluna e todo o corpo de Pedro enrijece. É a primeira vez que o toco, percebo. A quantidade de vezes que desejei isso em meus próprios pensamentos é tão grande, que é difícil acreditar que eu tenha demorado tanto tempo para sentir o calor da sua pele, mesmo que camuflado pelo tecido da camiseta fina branca que elale veste, sob meus dedos.
Como sempre acontece quando me aproximo o suficiente, seu cheiro se infiltra pelo meu nariz, entorpecendo meus sentidos e eu me percebo, quase tarde demais, me aproximando, inconscientemente, na direção do seu ombro, querendo tocar o nariz em sua pele e aspirar direto da fonte. Porra, Hugo! Se controla! Pigarreio.
— Você está se sentindo bem? — Minha voz sai inconvenientemente rouca e baixa e vejo os pelos dos braços desnudos de Pedro se arrepiarem com o tom.
— Não — diz, baixinho. Não sei o que provoca o estremecimento em sua voz, nem o rubor súbito em sua pele. Se o que quer que o tenha colocado na posição de exaustão em que o encontrei, ou minha proximidade. Egoísta, torço pelo segundo, porque seria lamentável descobrir que seu corpo não reage tão intensamente ao meu toque como estou descobrindo que reajo ao tocá-lo. — Mas vou ficar. Só preciso de alguns minutos — explica honesto e eu gosto pra caralho disso.
Um sorriso pequeno curva um dos cantos dos meus lábios. Pedro já mostrou algumas vezes que não foge de uma briga, mas mesmo as pessoas mais corajosas, ou inconsequentes, tendem a avaliar diferente quando o assunto é expor as próprias vulnerabilidades. É claro que a Bela Armadilha não seria uma delas. Corajoso até o fim.
— Como eu posso te ajudar? — As palavras viajam dos meus pensamentos até os meus lábios sem pedir permissão. Deus, quando foi a última vez que eu quis fazer algo por alguém que não fosse minha família ou minha filha? Não me lembro.
— Você não pode. Ninguém pode. — Quando ouço sua resposta, não sei se ele tem consciência do quão revelador está sendo, ou se apenas está sendo guiado pelo abandono do momento.
— Pedro — chamo, sentindo-me sufocado pelo tom derrotado usado pelo professor.
O homem vira-se para mim, desfazendo meu toque em sua pele, mas mantendo curta a distância que nos separa. Se achei que seu corpo gritava exaustão, puta que pariu. Eu não estava minimamente preparado para aquilo que encontro em seus olhos.
Lembro-me de me perguntar, na primeira vez em que nos vimos, como era possível que tantos sentimentos atravessassem um mesmo par de olhos em um espaço tão curto de tempo. Bem, agora, há um só neles. Um que eu reconheço porque mora no meu peito há muito tempo: solidão.
Inclino a cabeça, sem conseguir entender. Pedro estava bem há pouco mais de uma hora quando o espionei durante a aula matutina de Beatrice.
— Eu vou ficar bem, Hugo. Só preciso de uns minutos — repete aquilo que agora sei ser uma mentira, mas que tenho certeza de que o professor acredita ser verdade.
— Você quer que eu cancele a aula da tarde de Beatrice?
— Não! — ele responde no meio da pergunta tão rapidamente, que o restante das palavras é dito ao mesmo tempo em que ele nega a oferta.
— Ela ia adorar passar o restante do dia assistindo filmes. Acabei de deixá-la na sala de TV. — Pedro pisca seus olhos grandes e engole duro.
— Não. Não precisa cancelar nada. Eu só preciso de um momento. — Pausa. Eu assinto. — Você pode me deixar sozinho? — pede e, sem desviar os olhos dos seus, considero o seu pedido por um segundo antes de responder.
— Não. — Pedro recua, pego completamente desprevenido pela minha resposta e eu me mantenho firme, observador. Ele é tão jovem. A pele lisa não tem uma ruga sequer, exceto as de expressões. A Bela Armadilha com certeza sorri demais, com os lábios e olhos.
Depois de observá-lo com Beatrice pela primeira vez, na segunda-feira, não consegui mais parar. Pedro sorri o tempo todo e eu ainda não consegui decidir como ele fica mais bonito, se sorrindo leve e livre ou com o olhar de morte que me dá todas as vezes em que o irrito.
Essa, aliás, foi a segunda obsessão despertada em mim pelo Bela armadilha. É curioso como depois de uma vida inteira sem vícios e anos sem um hábito recorrente, não foi necessária nem mesmo uma semana completa de contato diário com o homem para que eu desenvolvesse dois pelos quais ele é totalmente responsável: vigiar suas interações com minha filha e irritá-lo de propósito.
Eu nem mesmo tenho me esforçado para encontrar pretextos que não sejam idiotas. Contanto que coloque aquela expressão ultrajada no rosto dele, eu estou satisfeito.
Uma expressão bem diferente da ostentada por Pedro nesse momento e isso é um fato incontestável: de todas as que já vi colorirem seu rosto, o cansaço carregado de outros sentimentos que vejo agora é a que menos gosto.
Até porque, se as outras parecem adicionar cor aos seus olhos escuros, essa parece roubar-lhe o brilho. A percepção não é a única coisa que agita meu peito no que diz respeito ao assunto. Há também uma determinação completamente absurda em manter essa, e qualquer coisa que roube o brilho do grande par de olhos castanhos, bem longe de Pedro.
— Não? — pergunta, com o cenho franzido.
— Não — repito e me encosto na parede, finalmente desviando meus olhos do rosto de Pedro.
Pela visão periférica, o vejo me encarar com a testa enrugada por quase um minuto inteiro antes de espelhar meu gesto e apoiar as costas contra a parede, ficando ao meu lado, tão próximo quanto é possível sem que nos toquemos. Me pego desejando que nos tocássemos, me pego desejando segurar a sua mão e é um sentimento estranho para caralho, por isso, não faço.
O silêncio que preenche o espaço entre nós não é desconfortável, ele paira como um companheiro. Não sei quanto tempo se passa até que eu ouça Pedro suspirar longa e profundamente.
— Hugo — ele diz, virando o pescoço para olhar para mim e precisando inclinar a cabeça, dada a nossa diferença de altura.
Viro o pescoço também, mas olho para baixo, a fim de encará-lo. Sua expiração morna bate contra o meu queixo e meus olhos descem dos seus para os lábios apenas por um deslize. São lábios realmente pecaminosos. A mudança no ar é quase palpável e, de repente, respirar se torna um desafio.
Desço os olhos pelo queixo, vejo sua garganta se movimentar lentamente enquanto ele engole com dificuldade antes de a boca vermelha se abrir, preparando-se para dizer algo e eu fecho os olhos brevemente quando o calor do hálito morno atinge minha pele, fazendo-a pinicar.
Meu corpo esquenta e acende, pressionado por uma atração exigente que me puxa na direção do corpo ao meu lado, a apenas alguns centímetros de distância, sem me dar tempo de entender o que exatamente disparou o gatilho responsável pela mudança drástica na atmosfera que foi, no espaço de um segundo, de um silêncio solidário para uma necessidade irreconhecível.
— Professor Pedro! — A voz da minha filha quebra o momento fazendo com que tanto eu quanto o professor nos afastemos imediatamente e só quando estou a mais de um metro de distância tomo consciência da minha respiração quase ofegante.
Que porra?
*** PEDRO FERNANDES ***
— Esse lugar é lindo demais, Pê! — Melissa diz com uma expressão deslumbrada no rosto enquanto caminho com o telefone erguido nas mãos, lhe mostrando cada casinha colorida ou comércio elegante espalhado pela avenida à beira-mar do Ribeirão da Ilha, bairro onde estou hospedado.
O encanto de Melissa é o mesmo que o meu, ainda que sete dias já tenham se passado desde que eu cheguei aqui. Sair do Rio de Janeiro para um lugar como esses é no mínimo como estar de férias, pelo menos, visualmente.
O bairro pequeno não é mais do que uma grande avenida cercada por mata e mar. As pessoas são simpáticas, tudo gira em torno da pesca e do que a infinidade azul que chamamos de oceano oferece, não há prédios ou qualquer outra das monstruosidades urbanas que preenchem os centros metropolitanos, é quase como estar no interior. Sutilmente, Ribeirão da Ilha me lembra Paraty, no Rio.
Há alguns anos, quando conheci a cidade, fui tomado por uma vontade imensa de tirar um ano sabático entre aquelas ruas de pedras e casas coloniais. Nunca aconteceu, mas parece que Hugo Maldonado de alguma maneira atendeu a um desejo ao qual eu nunca sequer havia dado voz. Mais um deles. Uma voz teimosa, que insiste em não esquecer de um momento que nunca deveria ter acontecido, sussurra em meus pensamentos. Ignoro-a.
Eu poderia ser grato pela casinha de vila colonial de fachada vermelha e janelas brancas escolhida para ser minha casa pelos próximos meses se aquele homem não fosse tão insuportavelmente intragável. Tudo bem, talvez isso não seja tudo o que ele é. A última semana foi diferente de qualquer outra que eu já tenha vivido, é quase como se ele tivesse o desafio pessoal de me surpreender, pelo menos um pouquinho, todos os dias. E houve aquele momento... Cala a boca, voz inconveniente!
Tudo o que ele faz é me irritar! Ponto! Desde o dia um, quando o maldito não fez qualquer questão de me avisar sobre o caos que os Florianopolitanos, ou manezinhos, como as pessoas que nascem aqui gostam de ser nomeadas, chamam de transporte público. Deus, é um inferno!
Quando Hugo me ofereceu o motorista, achei que era só mais uma forma de aquele maníaco exercer controle sobre toda a situação e eu tenho certeza que em parte era isso mesmo. Mas depois da experiência do dia 1, já não sei mais onde acabava sua mania irritante e onde começava uma gentileza real e isso, mais do que qualquer coisa, me preocupa.
Afinal, eu jurei odiar aquele homem para sempre, ele não pode me dar vistas como a que estou olhando agora e ser gentil comigo. Ele não pode se recusar a ouvir minha boca e prestar atenção aos meus olhos quando eu peço para ser deixado sozinho com a primeira e imploro pelo contrário com o segundo. Ele não pode ouvir pedidos que eu nunca fiz e atendê-los. Vai contra as regras!
O que teria acontecido na quinta-feira se Beatrice não tivesse chegado? A pergunta que não me deixou desde aquele dia ecoa em minha mente pelo que deve ser a milésima vez. Eu não sei. Por aqueles breves segundos, foi como se outra pessoa estivesse controlando meu corpo. Outra coisa, aliás. Uma atração, um desejo irresistível de tocar e ser tocado por aquele homem.
Ele precisa continuar sendo estúpido todas as vezes, precisa continuar com aqueles sorrisos de canto arrogantes e terminantemente sexys. Ele precisa continuar me olhando como se descobrisse uma coisa nova sobre mim a cada vez que nos encontramos e goste disso. Ele precisa continuar sendo odiável. Absoluta e completamente odiável. E quente feito o inferno enquanto faz isso.
— Terra para Pedro! — Ouvir meu nome me desperta. — Você ouviu alguma coisa do que eu disse? — Melissa pergunta e eu franzo o nariz, pega em flagrante.
— Não?
— Você nem tem a decência de parecer culpado! — acusa e eu sorrio.
— Desculpe. O que você estava dizendo?
— Nem pensar! Você não vai escapar dessa fácil assim, não! No que você tava pensando?
— Nessa vista maravilhosa — minto descaradamente e minha amiga joga a cabeça para trás, gargalhando.
— Unhum! E eu sou um Escort de quatro portas!
— O quê? — É a minha vez de rir alto. Sério, de onde Mel tira essas coisas?
— Eu acho que você estava pensando em outra vista — sugere e eu reviro os olhos. Interrompo meus passos ao chegar em uma pequena sorveteria artesanal. O dia está quente e a ideia de um sorvete me anima. Entro no lugar cujas paredes estão tomadas por freezers horizontais e começo minha procura. — Hum, sorvete de framboesa! Eu quero! — Melissa choraminga.
— Tudo bem, vou tomar por você.
— Não seja malvado.
— Malvado eu seria se te obrigasse a assistir, mas vou deixar a câmera virada pro mar.
— Ah, minha nossa! Isso realmente faz de você uma pessoa muito melhor! — acusa e eu rio enquanto espero que a atendente sirva o sorvete que pedi na casquinha. Minutos depois, me sento em uma das cadeiras coloniais de ferro brancas na calçada da sorveteria.
— E então? Como foi a semana de trabalho? A comida das marmitas deu certo? — Minha amiga revira os olhos. Seus cabelos estão presos em um rabo de cavalo torto e com frizz para todos os lados enquanto Melissa está sentada na cama, cutilando as unhas.
Ela provavelmente apoiou o celular em um livro, porque consigo ver todo o seu corpo, inclusive suas pernas, dobradas na posição borboleta.
— Nem tenta, Pê! Você passou a semana inteira me mandando mensagens evasivas. E pode tratar de virar essa câmera pra você! Quero ver seu rosto enquanto você me conta como foi passar uma semana com o papai gostosão. — Ela nem faz ideia!
— Você realmente precisa parar de chamá-lo desse jeito — suspiro antes de dar uma lambida em meu sorvete e fazer o que Mel pediu.
Meu rosto aparece num retângulo pequeno no canto inferior esquerdo da tela segundos antes do sabor da fruta explodir na minha boca e eu não consigo evitar gemer e fechar os olhos. Puta merda! Acho que encontrei minha nova comida favorita.
— Malvado! — Melissa faz careta de brava e aponta o dedo para mim. Dou de ombros.
— O quê? Você quem pediu pra me ver.
— Uhum — lamenta com os olhos fixos no meu sorvete. — Pode começar!
— Tem uma coisinha aqui — aviso e esfrego meu polegar no canto dos lábios, mostrando à minha amiga onde limpar. Mel espelha o gesto, mas franze o cenho quando seu dedo volta limpo.
— Aqui onde? — pergunta, só agora fazendo o óbvio quando alguém te diz que você está sujo e há uma câmera ou um espelho ao seu alcance. Melissa se dobra sobre as pernas, aproximando-se da tela do celular e de repente, estou vendo até mesmo seus poros. — Não tem nada aqui, Pedro.
— Ah, desculpe! Achei que tivesse visto sua baba escorrer. — Ela se afasta da tela rapidamente para que eu possa ver seu rosto vestido com sua melhor expressão de ultraje.
— Pode debochar à vontade, Pedro Fernandes. — Ih, ela me chamou pelo nome e sobrenome, é? — Essa conversa não vai acabar enquanto você não começar!
— Começar o quê? Já te contei tudo que tinha pra contar. Foi uma semana diferente, é claro. Mas nada demais — omito, porque se eu contar sobre o telefonema da minha avó, terei que contar sobre a forma como Hugo agiu, e se eu contar sobre isso, não vai ter jeito de esconder o resto.
Melissa é como um cão farejador para fofocas. Ela vai esfregar o nariz e escavar até que não haja nenhuma vogal ou consoante sob a terra e eu não posso lhe contar o que aconteceu. Não quando eu ainda não entendi.
— É, e eu já disse que se isso é verdade, eu sou um Escort de quatro portas.
— Não, você disse que se eu estivesse pensando na vista, você era um Escort de quatro portas.
— Vamos começar por aí, então — diz e eu não gosto do que vejo em sua linguagem corporal. — Você vai realmente tentar me convencer de que sua cabeça estava no horizonte e não no pai gostoso da sua aluna? — Bufo e ela ri.
— Não é engraçado, Melissa. — Não nego, lhe dou isso, pelo menos.
— Por que não?
— Porque ele é o pai da minha aluna — repito suas palavras, porque elas deveriam ser o suficiente para explicar o problema. — E se isso não bastasse, ainda há o fato de que o homem é extremamente arrogante, eu estou preso a ele por um contrato de trabalho irrevogável por seis meses e a cereja do bolo é que me irritar parece ser seu esporte preferido.
— Você só esqueceu de mencionar que ele é gostoso — lembra, e eu grunho, frustrado, dispensando seu comentário. — Um-Um! Você não vai se safar dessa! Eu aceito que você não admita que se sente atraído pelo cara, pelo menos por enquanto, eu aceito. — Balança a cabeça, concordando consigo mesma. — Mas que ele é gostoso? — Estala a língua. — Nem pensar! Admite, Pedro.
— Para de ser louca, Melissa. — Mordo a casquinha do meu sorvete para ter com o que ocupar minha boca além da admissão que minha amiga quer me obrigar a fazer.
— Admite e eu te deixo em paz pelo resto do dia.
— Isso é uma promessa? — Ergo uma sobrancelha debochada.
— Tudo o que você precisa fazer é admitir — diz devagar, espalma as mãos para frente em um sinal de rendição e torce os lábios como se eles dissessem “É isso.”
— Tudo bem. — Sopro o ar com força. — Ele é gostoso.
— Quem é gostoso, Pedro? — questiona com um brilho malicioso no olhar.
— Hugo Maldonado, Melissa. Aquele bastardo arrogante é um grande gostoso! — Levanto um pouco a voz, desesperado para pôr fim ao assunto e a disritmia que ele causa no meu peito. Entretanto, o sorriso da minha amiga ganha proporções assustadoras e o ritmo acelerado do meu coração parece ser multiplicado por mil. Não, não, não. Ela não fez isso, fez?
— Boa tarde. — O cumprimento da voz grossa vem depois de um pigarreio, limpando a garganta. Olho para Melissa com uma promessa de morte em meus olhos. Ela, por outro lado, parece extremamente satisfeita consigo mesma ao se despedir.
— Até mais tarde! — diz e desliga a chamada. Eu ainda fico olhando para a tela do celular, sem coragem de me virar por pelo menos dez segundos.
*** HUGO MALDONADO ***
Um grande gostoso. Minha vontade é de gargalhar, mas me impeço a tempo de não exibir mais do que um sorriso de canto. O Bela Armadilha se vira e seu rosto é pura mortificação. As bochechas estão vermelhas e os olhos repletos de irritação. A colega de quarto maluca acabou de subir no meu conceito apenas por me dar a chance de acrescentar essa expressão ao meu álbum de figurinhas mental sobre Pedro.
Em um movimento involuntário, olho ao nosso redor, procurando por outros homens que possam estar com a atenção no mesmo lugar que eu. É ridículo, mas suspiro aliviado quando não encontro nenhum.
— Boa tarde. — Volto a olhar para o rosto redondo e seu sorriso tenso não convence ninguém enquanto elE luta para não apertar os dentes. — O que você está fazendo aqui?
— Na rua?
— No Ribeirão da Ilha. Achei que a grande vantagem de morar no Sul enquanto você mora no Norte era não precisar lidar com a sua arrogância quando eu não estivesse trabalhando — provoca e dessa vez, não contenho meu sorriso, afinal, de alguma maneira, esse se tornou o estado natural das coisas para nós.
Exceto quando nos aproximamos demais, como há alguns dias, na porta da biblioteca. Nesses momentos, nosso estado natural passa a ser uma irracionalidade descontrolada, mas Bela Armadilha já entendeu o mesmo que eu: enquanto nos mantivermos longe o bastante, ficaremos bem. Gostar de irritá-lo vem a calhar, nesse caso.
— Ou com a minha gostosura, certo? — pergunto e Pedro se engasga com a própria saliva.
— Eu... Eu... Eu não estava falando de você!
— Quantos Hugos Maldonados, bastardos e arrogantes você conhece?
— O que você está fazendo aqui? — pergunta entre dentes.
— Passeando com a minha filha, Pedro. Pode ficar tranquilo. Eu também tenho mais do que o suficiente da sua petulância durante a semana. — Mentira. Meu sábado já ficou muito melhor depois da meia dúzia de farpas que acabamos de trocar.
— É mesmo? E onde está sua filha?
— No petshop. — Indico com o polegar a loja ao lado da sorveteria onde Pedro está sentado. — Vendo filhotinhos. — Nem sei se Pedro percebe o sorriso que toma conta do seu rosto.
— Ela está louca por um cachorro. — Bufo.
— Está.
— E você não quer dar.
— Não.
— Talvez fizesse bem a ela, sabe? Ajudaria na adaptação. — O profissionalismo assume seus gestos com tanta naturalidade, que ninguém diria que segundos antes Pedro estava me dizendo desaforos. Ele é mesmo uma belíssima armadilha.
— Todo mundo quer me convencer disso — resmungo e Pedro xinga baixinho quando o sorvete em sua mão derrete e escorre. Em um movimento natural e atormentadoramente sexy, ele ergue a mão lambuzada, estica a língua e lambe a pele.
É a minha vez de apertar os dentes, só que eu o faço para conter um gemido. E quando ele faz um bico com aqueles lábios tentadores e chupa o sorvete derretido de dentro da casquinha, preciso desviar o olhar, porque o latejar em minha virilha começa se intensificar e eu não duvido que o Bela Armadilha seja capaz de mais um movimento impensado que me levaria de excitado a duro pra caralho em um segundo.
— Você realmente deveria cogitar a ideia — diz, anunciando que olhar para ele já é seguro novamente. Mas quando meus olhos encontram seus lábios, meu cérebro não se sente em segurança.
A boca vermelha está melada de sorvete cor de rosa derretido e quando Pedro passa a língua devagar, recolhendo cada gota, minha mente projeta uma imagem semelhante por trás dos meus olhos, só que ao invés de sorvete derretido, o que mela seus lábios é minha porra e Pedro está completamente nu, de joelhos, diante de mim.
Puta que pariu! Mas que caralho está acontecendo comigo? Você precisa transar! O pensamento vem súbito e eu franzo as sobrancelhas. Certo. Já faz algum tempo. A última vez foi com Daniel, quase um mês atrás. Talvez eu realmente precise. Com ele, você precisa transar com ele! Agora eu só estou pensando besteiras. Não é que eu não tenha fantasiado ou desejado isso antes, mas existe um abismo entre querer e fazer.
— Farei isso — prometo pensar sobre o cachorro apenas para dizer alguma coisa e as sobrancelhas do professor se erguem em surpresa. Fecho os olhos rapidamente. Preciso sair daqui antes que eu prometa alguma coisa da qual eu não possa voltar atrás apenas porque não consigo ser racional quando estou perto desse homem.
— Papai, eles tem um cachorrinho da cor das nuvens! — É claro que Beatrice tinha que sair do petshop justamente um segundo antes de eu entrar e impedi-la de descobrir a presença de Pedro. Puta que me pariu. — Professor Pedro! — exclama no instante em que seus olhinhos pousam no Bela Armadilha e corre, lançando-se nos braços do homem que faz um verdadeiro malabarismo para conseguir pegá-la sem derrubar o sorvete que tinha nas mãos.
Pedeo sorri imenso e abraça Beatrice com um sentimento que transborda pelos seus olhos. É o mesmo que eu observo escondido todos os dias durante suas aulas, mas, hoje, me faz engolir em seco e sentir um aperto desconhecido no peito.
— Eu tava com saudades, professor — Beatrice diz e eu desvio os olhos. Enfio as mãos no bolso e aperto os lábios.
— Eu também, meu amor. Eu também — o professor responde e não há nada em sua voz que indique uma mentira. Lembro-me do sentimento de solidão em seus olhos na tarde em que o encontrei assombrado em frente à biblioteca e da pressa que ele teve em negar que eu suspendesse as aulas de Beatrice naquela tarde. Como se mais do que qualquer outra coisa, ele mesmo precisasse daquelas aulas. — Quantos cachorrinhos você contou lá dentro?
— Cinco.
— E que outros bichos você viu?
— Um hamster, seis pássaros e muitos peixes. Papai, eu posso ter um peixe? — A pergunta me obriga a voltar o olhar na direção dos dois e a visão de Beatrice tão confortável nos braços de Pedro lhe falando amenidades quando nenhum de nós está nos papéis de aluna, professor e pai da aluna, é como uma marreta em minha caixa toráxica.
— Talvez outro dia — respondo baixo e Pedro inclina a cabeça, parecendo perceber a mudança em meu tom. Seu cenho se franze.
— Quer me mostrar seu preferido?
— Quero! — Beatrice responde animada.
Pedro se levanta. Sem dizer nada, caminha com Beatrice pendurada em seu colo até a porta ao lado e entra no petshop, deixando-me sozinho para lidar comigo mesmo, de alguma forma, tendo percebido que eu preciso disso. As palavras ditas por Breno no dia do aniversário de Beatrice voltam à superfície dos meus pensamentos para se juntar ao coro de sentimentos conflitantes me dominando “Você realmente acha que a Be vai ser mais feliz crescendo ao lado do homem que você é hoje do que daquele que você costumava ser?”
Ver minha filha tão emocionalmente entregue ao Pedro faz com que eu me pergunte sobre outras coisas, outra pessoa, que poderia fazer o crescimento da minha filha mais feliz. Balanço a cabeça e esfrego as mãos no rosto, sem entender como, pela segunda vez em dias, a presença do professor pode ter disparado um gatilho para pensamentos tão íntimos sem que eu sequer tenha notado até ser tarde demais.
— Papai! O professor Pedro vai estar no almoço de domingo! — Isso me faz virar imediatamente na direção dos dois, saindo do petshop.
Agora, Beatrice está no chão e está tomando o sorvete que era de Pedro. Sua boca já está completamente suja de rosa, mas esse é o menor dos meus problemas.
— O quê? — A pergunta sai muito mais ríspida do que deveria e as bochechas de Pedro ficam vermelhas, uma das poucas vezes, no pouco espaço de tempo em que o conheço, que ele parece envergonhado.
Mesmo quando sua amiga provocou as condições inusitadas do nosso encontro, ele ficou mortificado e irritado. Mas agora, provavelmente, interpretando errado a rispidez do meu tom, Bela Armadilha transpira constrangimento.
— Beatrice me convidou para o almoço e eu estava explicando a ela que não posso ir.
— Mas você disse que ia almoçar sozinho — Be argumenta. — Aos domingos é dia de almoçar com a família — repete o que eu sempre lhe digo e Pedro pisca, tão sem palavras quanto eu, deixando toda a falação por conta da criança. — Não é papai? — pergunta e eu abro a boca, mas demoro a dizer algo e, sutilmente, Pedro nega com a cabeça, me pedindo não sei o que.
— É, Be. Domingo é dia de almoçar com a família.
— Então o professor Pedro não pode almoçar sozinho — minha filha conclui, satisfeita. Olho para o homem, mais constrangido agora do que segundos atrás, fixando os olhos em qualquer lugar que não seja eu.
— Não. Não pode — decido e Pedro finalmente se torna capaz de me encarar, surpreso.
— Eu…
— Vai almoçar com a gente, amanhã — o interrompo, não lhe dando a chance de discutir e ele balança a cabeça negando. Mas Beatrice não está disposta a aceitar um não e isso me faz rir, mesmo que a situação como um todo não seja exatamente divertida.
— Por favor, professor Pedro. A vovó e o tio Breno só vão estar lá pelo vídeo — minha filha reclama com a voz chorosa, fazendo biquinho e olhos de pedinte. Pedro procura ajuda em mim, pedindo, silenciosamente, que eu interfira. Mas tudo o que eu faço é dar de ombros e nem sei por quê.
— Eu.. Eu... — gagueja antes de suspirar e deixar os ombros caírem. — Tudo bem. Eu vou — aceita e Beatrice pula com tanto entusiasmo, que deixa o pouco que havia sobrado do sorvete cair no chão.
Pedro acaba rindo da empolgação de Be e tudo o que eu quero é perguntar ao Bela Armadilha o que ele acha agora sobre a necessidade de ensinar Beatrice a administrar frustrações.