XXXVII
A rua estava em polvorosa.
A ambulância na porta da casa de Lulu Beicinho com as sirenes ligadas provocavam uma sensação de pânico.
Eu fui para a republica e perguntei ao Fabrício o que estava acontecendo. Ele sacodiu os ombros.
- Dizem que Lulu tentou se matar...
- Como assim? - falei alarmado.
- O pessoal que está comentando - ele continuou - Duval está lá com eles.
Os paramédicos e socorristas entraram no veículo e buzinando para as pessoas abrirem espaço, disparou subindo a ladeira. O burburinho das pessoas era como em uma feira livre.
"Está tudo bem?", mandei para Duval pelo celular, ele respondeu quase imediatamente "Sim, foi um susto, Lulu está bem..."
Eu não compreendia a relação do Duval com o Lulu Beicinho mas fazia uma ideia. Era como um sugar daddy para o Duval, ele oferecia sua juventude, sua masculinidade, virilidade, enquanto Lulu, entrava com o conforto.
Afinal, enquanto fazia faculdade Duval nunca precisou se preocupar em ganhar a vida. Mas fiquei ruminando comigo mesmo por quê de tudo aquilo, Lulu sempre parecera uma pessoa centrada, e alegre.
Ultimamente deixara de colocar a música para a rua inteira ouvir. Andava de cara fechada. Mas não passou de um susto mesmo na semana seguinte tudo estava normalizado.
Meu celular tocava no meio da noite.
Eu passei por cima do peito do Duval para alcançá-lo em cima da cômoda. Era estranho como havia me acostumado aquela fartura de pelos no peito do meu amigo.
"Agora consigo entender melhor o Lulu", sorri pensando com carinho naquela mata mas o nome na tela do celular, indicava problemas.
"Erick", eu atendi, e com a voz de sono perguntei o que estava acontecendo. Ele em sua voz nasal de taquara rachada, respondeu:
- Valério precisa de você aqui, agora - ele disse - fica aqui na zona da mata próximo ao...
Eu empurrei o Duval porque eram quase três da madrugada. Em uma cidade em que conhecia pouca coisa assim, por nome. Não era o caso do Duval.
Estávamos sozinhos no quarto. Betão havia viajado para a ilha e eu suspeitava que com uma mulher. O que era uma excelente notícia. Eu ficava sentindo remorso por transar com os dois ao mesmo tempo "sou uma cachorra!".
Duval abriu os olhos e me encarando passou a mão na minha coxa.
- Você sabe onde fica a zona da mata?
Ele fez que sim com a cabeça. Eu disse ao Erick que estava chegando ao local e desliguei.
Era uma matéria e para garantir a preferência tínhamos que chegar o quanto antes. Só não entendia por que chamaram justo a gente que cobria outro tipo de notícia. Matheus estava a caminho e o Valério pelo que Erick dissera estava no local.
Eu não fazia ideia do que se tratava mas sabia que precisava chegar até lá o quanto antes. Duval vestia-se lentamente enquanto eu andava de um lado para o outro com uma euforia um pouco fora do comum.
- Calma, - Duval pediu - dá tempo, daqui para lá é perto.
- E eu vou de quê?
- Vamos de carro, - ele disse - Juarez está em casa, pego o carro emprestado, sem problemas.
Eu avancei para o Duval e dei um beijo no seu rosto ele soltou um risinho fofo e nós dois saímos em direção a rua. A noite estava cerrada lá fora e eu me encolhi um pouco me chegando em Duval.
Havia luz na casa do Lulu Beicinho, evitei olhar diretamente para lá, sempre achava que ele olhava de volta para nós, as vezes quando nos víamos na rua, os olhos de Lulu cravavam em mim de uma forma agressiva.
A cidade ainda estava acordada em uma hora daquela e quando chegamos ao local haviam outros veículos. Erick veio em minha direção, eu coloquei o crachá, e em uma atitude instintiva beijei os lábios de Duval, ele tomou um susto.
- Preciso ir, - falei.
Duval ficou olhando para mim com cara de bobão, uma carinha cada vez mais frequente nele nos últimos dias. Matheus havia passado mal por causa do cheiro.
- Você vai entender - Erick disse.
Eu não compreendi muito bem mas enfim, seguimos em direção ao cercado de cones maior onde haviam outros jornalistas.
- Não sou pago para isso, - disse Valério - não me formei para cobrir assassinatos.
Ele dizia isso cobrindo os lábios e o nariz em um acesso de tosses.
- E agora o que a gente faz? - perguntei para ninguém em especial.
Matheus e Valério ficaram confabulando há três metros de nós. Valério colocou o celular na orelha. Ele veio em nossa direção gesticulando com a outra mão.
- Vocês vão ter que manusear a câmera e a luz enquanto dou a matéria, - Valério disse. - Preparem tudo aí que vou bolar o texto...
Era uma loucura porque éramos estagiários e estávamos a pouco tempo naquela posição. Embora ficássemos o tempo todo com eles, desde a coleta de dados até o fechamento das matérias. Nunca havíamos feito aquilo.
- Tudo bem acho que sei o que fazer - falei.
Mas Erick puxou meu antebraço e respirando fundo disse sério:
- Cara, acorda, esse cavalo tá selado na nossa frente - ele disse - a gente tá com uma oportunidade que pode impulsionar nossas carreiras.
"Ou colocar um ponto final nelas", pensei comigo mas decidido a fazer aquilo.
Valério ajeitou o colarinho da camisa e preparou-se para entrar. Ele repetia um texto que vinha digitando no celular com a ajuda de Erick, enquanto Matheus me passava instruções de manuseio da câmera.
O cheiro de putrefação atacou a nós dois no mesmo instante em que nós aproximamos mais. A ordem era gravar o fato em si "um corpo foi encontrado em uma região de desova da cidade...", enquanto Valerio falava eu filmava. Erick ombro a ombro comigo, como um espectro.
Ele se precipitou por um descampado e derrapou para baixo. Enquanto eu equilibrava a câmera no meu ombro, mantinha a luz em cima da cabeça de Valério com o microfone na mão.
Os olhos de Erick estavam vermelhos assim como os meus. Eu focalizei a câmera para o corpo ali, ainda exposto, e engoli o vomito que me veio a boca. O rosto de famélico de olhos vítreos ainda não se desfizera do semblante.
Um rosto de poucos amigos. Uma agressividade nos traços das bochechas e testa.
"Que porra!", eu o identifiquei. Era ele com certeza. Embora estivesse fedendo e em estado de decomposição, era o Adriano, o policial! Silverback!
Abaixei a câmera e me afastei para tossir por causa do fedor. Erick também estava passando mal mas assumiu o leme. Tomou a frente e manteve a câmera na posição.
- Eu sei quem é... - falei.
- O quê?
- Eu sei quem é aquele cara, - falei olhando para o Erick. - Ele é um policial. Se chama Adriano.
Minha mente deu um salto, pensei em Maicon, em Frederico, e em como aquilo tudo poderia ter alguma ligação. Ou era coisa da minha cabeça? "Eu vou resolver isso", Frederico havia dito.
Mas um cara como Adriano devia ter outros inimigos além do Frederico, gente perigosa de verdade, o que um riquinho esnobe de nariz em pé poderia fazer contra um policial como Adriano?
Eu não consegui retomar o controle da câmera mas tampando o nariz e virando o rosto mantive a luz no pobre Valério que estava tendo uma intoxicação respiratória.
Mas era um furo um dos pontos G de tesão de todo jornalista ou aspirante. Um furo de reportagem que nós daríamos em conjunto!
A gente tinha um furo nas mãos. As autoridades ainda não haviam identificado o nome do morto nós daríamos a notícia em primeira mão.
- Você tem certeza disso? - Valério me perguntou. - A gente precisa confirmar.
Quando tudo terminou, a sensação era de que havia durado semanas, e no entanto, não passaram de algumas horas.
Duval estava no carro me esperando quando o dia clareou de vez e eu pude ir até ele chorando, me escondendo na curva do seu pescoço.
- Calma, calma - ele dizia passando a mão nas minhas costas - agora respira fundo.
- Eu... - tentei falar - o corpo ali embaixo, é do mesmo cara que tentou me atropelar, do mesmo cara que apontou um fuzil para mim quando apareci naquela noite na rua em frente a republica lembra?
Duval não estava entendendo nada, eu li em seu semblante.
- E por que esse cara fez isso?
- Lembra do Maicon, meu amigo da faculdade? Esse cara era obcecado por ele, e achou que de alguma forma eu estava atrapalhando o envolvimento dos dois. Mas nunca pensei que ele fosse encasquetar justo comigo.
- Seu amigo está bem encrencado... - ele disse.
- O que você quer dizer? - perguntei limpando os olhos.
- Com a morte desse sujeito, - Duval disse. - Vem cá, esse daí não é o cara com quem você trepou daquela vez no vídeo não né?
Eu voltei a chorar.
- É...
- Que desgraça Yuri! - ele bradou.
Duval me puxou para ele e beijou meu rosto me apertando. Era gostoso tê-lo comigo enquanto tudo aquilo passava por dentro de mim. Duval não perguntou mais nada e nós conduziu de volta para casa.
Ele ainda tinha plantão para dar no hospital, e eu, eu precisava falar com Maicon de qualquer forma!