Assim que entramos no carro, o Bernardo me lançou um olhar questionador, sem desviar os olhos da estrada.
— Por que você quer sair da minha casa? — A voz dele era calma, mas eu podia sentir a preocupação por trás.
Suspirei, olhando pela janela antes de responder.
— Não é que eu não goste de ficar lá, amor. Só que... eu sinto que preciso de um espaço meu, sabe? Algo pra gente ficar mais à vontade, sem me sentir um hóspede. Além disso, vai ser bom pra nossa relação, ter um canto só pra nós dois.
Ele ficou em silêncio por um momento, como se processasse o que eu havia dito. Depois, assentiu lentamente.
— Eu entendo, Rafa. Eu só... não esperava. Mas se isso te faz feliz, eu te apoio.
Senti o alívio em sua voz e me inclinei para dar um beijo rápido nele, aproveitando o breve sorriso que ele me deu de volta. Seguimos até o apartamento, e logo que entramos, eu sabia que não era o que eu procurava. Pequeno demais, apertado. O preço era justo, mas... algo não se encaixava.
— O que achou? — A corretora perguntou, enquanto caminhava pelo cômodo, tentando enxergar o potencial que eu claramente não via.
— Acho que não é o que estou procurando. Vou dar uma pensada, mas prefiro ver outras opções. — Respondi.
Ele riu de leve, meio que já prevendo minha resposta.
— Tenho uma ideia. Lembrei de um prédio um pouco mais afastado? Não é exatamente onde você queria, mas tenho certeza que vai adorar o apartamento. Vou marcar com a proprietária pra gente ver amanhã.
Voltamos para a casa dele, e com a Claudia viajando e o Alysson no Alto, tínhamos o lugar só para nós. Depois de fazermos amor, nos enroscamos debaixo das cobertas, naquele momento íntimo onde as conversas fluíam naturalmente. Eu adorava esses momentos, em que íamos nos conhecendo melhor, um pouco mais a cada dia.
— E você, já decidiu o que vai fazer quando sair a nota do ENEM? — perguntei, quebrando o silêncio confortável que havia se instaurado.
Ele suspirou, olhando para o teto como se as respostas estivessem escritas ali.
— Acho que vou fazer Publicidade. — Ele fez uma pausa, como se testasse a ideia em voz alta. — É mais cômodo, sabe? Posso trabalhar nas empresas do meu pai. Não é o que eu amo, mas... parece prático.
— E o que você ama, então? Qual é o seu sonho? — perguntei, curioso.
Ele sorriu, um pouco tímido.
— Sempre sonhei em ser piloto de avião. Desde criança, sempre fui fascinado por isso. A ideia de estar no comando de algo tão grandioso, viajando pelo mundo...
Eu sorri de volta.
— Você seria um piloto lindo. — brinquei, vendo seu sorriso se alargar.
— Mas não sei se é o que eu realmente quero, sabe? — Ele virou de lado, me encarando com seriedade. — Eu gosto da ideia de pilotar, mas não tenho certeza se todo o processo para me tornar piloto é o que eu quero. O estudo, a prática, o trabalho constante... Talvez seja mais um sonho de infância, algo que me faz sentir grande, mas que não se encaixa no que eu quero pra minha vida de verdade.
Assenti, compreendendo seu dilema.
— Às vezes, nossos sonhos mudam, e tudo bem. Não significa que você tenha que abrir mão de ser quem você é.
Ele sorriu, me puxando para mais perto.
— Sim, acho que você tem razão. A verdade é que sempre tive tudo muito fácil, e talvez por isso nunca precisei me esforçar tanto pra correr atrás de algo grande. Sou acomodado, Rafa. Pode soar arrogante, mas é a verdade.
— Mas você não é como essas pessoas que se acham só porque nasceram em berço de ouro. — interrompi. — Você tem empatia, tem consciência de que as coisas podem mudar. E é isso que te faz diferente.
Ele me olhou, seus olhos refletindo um misto de alívio e gratidão.
— Obrigado por dizer isso. Às vezes, acho que sou só mais um cara privilegiado sem noção do mundo real.
— Talvez seja. — brinquei, provocando um riso dele. — Mas você é meu cara privilegiado.
Seguimos conversando na cama, e então me lembrei de algo que há muito tempo eu queria perguntar, mas sempre acabava adiando:
— Bernardo, como você acha que a Sofia vai reagir quando descobrir que eu sou irmão dela? — Perguntei, um pouco hesitante, virando-me para ele.
Ele ficou pensativo, seus olhos focados no teto, mas claramente processando minha pergunta. Finalmente, ele me olhou de lado e suspirou.
— Rafa, pra ser sincero, eu não sei. Mas... acho que talvez a reação dela não seja das melhores. A Sofia sempre gostou de estar no comando, sabe? Sempre foi meio que a "abelha rainha". Ela é incrível, divertida, consegue tudo o que quer. — Ele fez uma pausa, escolhendo as palavras com cuidado. — E quando ela descobrir que tem um irmão mais velho, isso pode balançar as coisas. Porque, hoje, ela é a irmã mais velha. É ela quem vai ser a referência para a Zoe, é a filha "perfeita" e preferida. E ela se esforça muito pra manter essa imagem.
Eu senti um leve desconforto no peito ao ouvir isso. Bernardo continuou:
— Você quer ser médico, e isso é algo que o Silas admira muito, mas a Sofia não tem interesse em seguir esse caminho. Mesmo assim, pode ser que ela veja isso como uma competição. Pode ser que, só pelo fato de você querer fazer medicina, ela sinta que precisa te superar em alguma coisa. — Ele fez aspas com os dedos ao dizer "competição". — Por outro lado, ela também pode acabar te aceitando e tirar um grande fardo das costas, de não precisar mais ser a "perfeita" o tempo todo. Sinceramente, não consigo prever qual vai ser a reação dela.
Fiquei pensativo com as palavras de Bernardo, uma mistura de esperança e receio crescendo dentro de mim.
— Eu gosto muito da Sofia, sabe? — respondi, após um momento de silêncio. — Quero ser um bom irmão pra ela, mas a ideia de ser rejeitado por ela... isso me dá medo. Mas, ao mesmo tempo, não quero ficar obcecado com isso agora. Ainda preciso conversar com o Silas, entender o que eu realmente quero.
Bernardo assentiu, me observando atentamente antes de responder com sinceridade.
— Rafa, vou ser bem honesto com você. Talvez eu soe um pouco interesseiro, mas o tio Silas é muito rico, e ele pode te ajudar de várias formas, sabe?
— Bernardo, não estou atrás do dinheiro dele, entende isso.
— Eu sei, amor. — Ele suspirou. — E é justamente por isso que eu hesitei em trazer esse assunto à tona. Mas veja por esse lado: você sempre trabalhou duro. Mesmo sendo tratado como parte da família lá na fazenda, você tinha responsabilidades desde cedo. E agora, mesmo trabalhando pro meu pai, você está se esforçando pra ganhar seu dinheiro, pra conquistar seu espaço. Só que o Silas... ele pode te proporcionar uma vida diferente. Ele pode te ajudar a se concentrar nos estudos, pagar sua faculdade, seu apartamento, te dar uma mesada boa. Ele te deve isso. E não é só sobre dinheiro, é sobre descanso. Você já pensou em como seria sua vida se não precisasse se preocupar com contas? Acordar, ir à praia, estudar tranquilamente, sem essa pressão de trabalhar pra pagar as coisas no fim do mês?
Fiquei quieto por alguns instantes, ponderando o que Bernardo havia dito. Ele conhecia minha realidade, sabia o quanto eu me esforçava, mas ainda assim, a ideia de aceitar uma ajuda financeira tão grande me incomodava. Era como se eu estivesse traindo algo dentro de mim.
— O Silas é tão rico assim? — perguntei, tentando desviar um pouco o foco da conversa.
Bernardo deu um pequeno sorriso antes de responder.
— Sim, muito mais do que meu pai, eu diria. Ele soube investir bem o dinheiro da herança. Comprou uma parte de um hospital, e só isso já gera rios de dinheiro. Além disso, ele é um médico respeitado, tem muitos pacientes, clínicas... E ainda se casou com a Yves, que, apesar de ser uma bruxa, vem de uma família podre de rica.
— Também não fui muito com a cara dela. — confessei.
Bernardo riu, assentindo com a cabeça.
— Ela é péssima. Arrogante, chata... o tio Silas merece alguém muito melhor do que ela.
— Você e o Silas são muito próximos?
— Sim, temos um certo contato. A gente não se fala sempre, mas eu gosto muito dele. E, ultimamente, acho que ele tem melhorado muito. — Bernardo olhou para mim com um sorriso suave. — Acho que sua presença fez uma grande diferença pra ele. Ele quer mudar, sabe?
Me senti tocado com isso, mas ao mesmo tempo, me veio uma curiosidade.
— E o que ele fala sobre mim?
Bernardo pensou um pouco antes de responder.
— Ele já falou muitas coisas boas. Disse que ficou feliz por ter te encontrado, que gostaria de se aproximar mais, de ser seu amigo. Ele está muito orgulhoso por você querer seguir a medicina, e ficou impressionado com sua inteligência naquele dia na fazenda, e ficou muito orgulhoso quando te viu ajudando a Sofia. Mas acho que, enquanto vocês não tiverem uma conversa sincera, vai sempre existir uma barreira entre vocês dois.
Suspirei, sentindo o peso dessa realidade.
— O que você acha que eu devo fazer?
— Eu acho que você deveria conversar com ele, sem pressa. Não precisa ser agora, mas quando se sentir pronto. E quem sabe, depois disso, você pode até aproveitar um pouco da fortuna do seu pai. — Ele riu, abrindo um sorriso brincalhão.
Eu ri junto, balançando a cabeça.
— Talvez. Quem sabe.
As palavras de Bernardo ressoavam dentro de mim, e confesso que a proposta era tentadora. Aceitar a ajuda do Silas poderia me tirar um peso enorme das costas, me permitir focar completamente no meu sonho de ser médico, sem a necessidade de conciliar trabalho e estudo. Mas, por outro lado, algo dentro de mim gritava para não aceitar. Eu sempre fui esforçado, batalhador. Desde pequeno, aprendi a conquistar as coisas por conta própria. A ideia de ter tudo de mãos beijadas não me descia.
Porém, a realidade me confrontava: eu sabia que minha nota na redação do ENEM não seria boa. Provavelmente, não conseguiria uma vaga em medicina no próximo ano e teria que adiar meu sonho por mais um tempo. E, claro, continuar dividindo meu tempo entre trabalho e estudos. Era uma proposta extremamente tentadora a ajuda do Silas, mas não era simples assim. Decidi que daria um tempo para mim mesmo. Até sair o resultado do ENEM, esse seria meu prazo. Quando a nota chegasse, eu teria que tomar uma decisão, e talvez uma conversa com o Silas fosse inevitável.
Só que o que mais me segurava era o medo de que, ao aceitar sua ajuda, eu me tornasse "obrigado" a algo. O medo de que, ao me bancar, ele esperasse de mim um relacionamento forçado de pai e filho, algo que eu não estava pronto para oferecer. A sensação de ser comprado, de que o dinheiro poderia "quitar" o que ele fez comigo e com minha mãe, me dava raiva. E era exatamente isso que eu não queria. Esse era o meu maior impasse.
No dia seguinte, fui com a corretora ver os apartamentos. Começamos com algumas opções na região que eu queria, mas nada me agradava realmente. Quando chegamos ao último, um pouco mais afastado do trabalho e possível faculdade, algo mudou. Era um edifício imponente, com 15 andares. O apartamento que íamos ver ficava no sétimo andar, número 702. A corretora parecia animada, e Bernardo, ao meu lado, me olhou com aquele olhar que eu já conhecia, como se dissesse: "Confia em mim."
Entramos no prédio e subimos de elevador até o sétimo andar. O corredor era tranquilo e silencioso, e quando a corretora abriu a porta, fui surpreendido. O apartamento era grande, espaçoso, muito mais do que eu imaginava. Tinha uma vista incrível para uma área verde, e a luz natural entrava pelas enormes janelas da sala.
— E aí, o que achou? — Bernardo perguntou, com um sorriso no rosto.
Eu dei uma volta pelo apartamento, admirando os detalhes. A cozinha era aberta, integrada com a sala, e havia 3 quartos, um sendo suite.
— Eu sei que não é exatamente onde você queria, mas eu tinha certeza que você ia gostar. — Ele continuou, observando minha reação.
— Realmente... é incrível. — Admiti, ainda meio surpreso.
A corretora, percebendo nosso interesse, começou a explicar as condições, o valor do aluguel, e as vantagens do local.
A corretora, sempre atenta às oportunidades, aproveitou o momento e disse com um sorriso profissional no rosto:
— Então, o aluguel daqui é R$ 1.500, um pouco acima do que você havia me pedido, mas conversei com o seu tio, e ele me disse para mostrar algumas opções melhores. Achei essa uma excelente escolha, e ele também mencionou que pagaria o aluguel nos primeiros meses. Como você pode ver, o apartamento é amplo, com três quartos e dependência de empregada. No começo, achei grande para uma pessoa solteira, mas seu tio comentou que em breve você vai ser pai, então acredito que esse espaço vai atender perfeitamente a você e ao seu filho.
Quando ela mencionou que eu seria pai, meu coração deu um salto. Olhei para Bernardo rapidamente, mas ele apenas sorriu, deixando-me mais confuso. Ela continuou, apontando para a janela com a vista incrível:
— Aqui em frente, temos uma vista para uma área verde que pertence ao Exército, então não será construída nenhuma outra estrutura na frente. A localização é um pouco distante da fábrica e da faculdade, mas, hoje em dia, de carro, tudo é relativamente próximo. Além disso, aquela estrada ali à frente leva direto à praia; em cerca de oito minutos de carro você já está no litoral. Este bairro é muito bom e está entre os que mais crescem e se valorizam aqui na capital.
Confesso que fiquei realmente encantado com o apartamento. Além da vista e do espaço interno, a estrutura do prédio era impressionante. Tinha tudo o que eu poderia querer: piscina, academia, salão de jogos e festas. Era praticamente um sonho.
Olhei para Bernardo, ainda processando a informação que a corretora havia deixado escapar sobre eu ser pai, e ele apenas sorriu, tranquilo.
— Então, o que você acha, Rafa? — Ele perguntou, aproximando-se. — Parece o lugar ideal, não acha?
— É, parece perfeito... — respondi, ainda com a cabeça a mil, dividindo minha atenção entre o encantamento pelo apartamento e a surpresa das palavras da corretora.
A corretora, cheia de entusiasmo, olhou para mim sorrindo e disse:
— Então, já posso fechar o contrato?
Eu sorri de volta, mas precisei ser honesto.
— Por mim, sim. Mas preciso falar com o meu tio antes.
— Ótimo! Já vou preparar o contrato então! — ela respondeu com ainda mais animação, parecendo não ter ouvido completamente a parte sobre falar com meu tio.
— Calma, preciso conversar com ele primeiro e acertar alguns detalhes.
Ela riu um pouco, visivelmente empolgada com a possibilidade de fechar o negócio, mas entendeu e nos despedimos.
Saí dali com o coração acelerado, sentindo que estava prestes a dar um grande passo na minha vida. Era um misto de empolgação com uma sensação estranha de algo não resolvido. Assim que entramos no carro, Bernardo me olhou seriamente, e o clima mudou imediatamente.
— Como assim pai? Você pode me explicar isso? — A voz dele saiu calma, mas com um peso evidente.
Fechei os olhos por um segundo, tentando organizar meus pensamentos, e suspirei antes de começar a falar:
— Bom, amor, é um assunto delicado... Ninguém sabe ainda, só quem sabe, além de mim e do Caio, é o seu pai, porque conversamos há algumas semanas. Mas lembra na festa da padroeira, quando a gente se conheceu? Naquele dia, eu e o Caio transamos com uma garota. E... bom, ela engravidou. Não sabemos quem é o pai. Pode ser eu ou o Caio, mas eu acredito muito na minha intuição e tenho quase certeza de que o filho é meu. Não contamos a ninguém porque estávamos tentando processar tudo... foi tudo muito repentino, e eu não queria causar alvoroço antes de termos certeza.
Bernardo ficou em silêncio por alguns segundos, e eu conseguia ver a tensão em seus olhos.
— Rafa, você devia ter me contado. A gente namora. Não pode haver segredos entre nós.
Eu sabia que ele tinha razão.
— Eu sei, amor, mas eu e o Caio decidimos que não contaríamos a ninguém até termos certeza. Era muita coisa acontecendo de uma vez.
Ele franziu o cenho, visivelmente incomodado.
— Então você divide sua vida toda com o Caio agora? Vocês estão namorando também? — Ele disse com uma ponta de sarcasmo e raiva na voz.
— Não, Bernardo, não vamos brigar... — Tentei acalmá-lo.
— Só quero entender por que você me deixou de fora disso. Você contou pro meu pai antes de contar pra mim!
— Alysson é meu tio, e eu decidi que precisava conversar com ele. Ele me apoiaria, e eu sabia que precisava desse apoio.
— E eu não posso te apoiar?
— Claro que pode, Bernardo. Mas era uma questão delicada... peço desculpas. Reconheço que deveria ter te contado antes.
Mesmo assim, Bernardo parecia ferido. Aquela era nossa primeira grande briga, e eu sabia que havia várias camadas ali que precisavam ser resolvidas. Por mais que eu tivesse me desculpado, para Bernardo, isso não parecia ser suficiente. Eu sabia que isso ainda ia pesar entre nós por algum tempo.