Eu entrei na sala de terapia já com o coração acelerado, como se eu estivesse preso em um pesadelo sem fim. A Dra. Mônica estava ali, como sempre, me esperando com aquele sorriso gentil e paciente. A luz suave da sala contrastava com o turbilhão que se passava dentro de mim. Mesmo que o ambiente fosse aconchegante, hoje ele parecia mais como uma prisão. As paredes, tão calorosas antes, agora me sufocavam.
– Como você está, Yuri? – ela perguntou com a voz tranquila, como se cada palavra dela pudesse ser um alicerce para minha sanidade.
Eu queria responder, queria dizer que estava bem, que estava melhor, mas a verdade estava estampada no meu rosto. O olhar dela me atravessava, e eu me senti nu ali. Fraco.
– Eu não sei… – respondi, desviando o olhar para qualquer canto da sala. – Não sei se estou bem ou se estou piorando. Cada vez que fecho os olhos… tudo volta. É como se… como se eu ainda estivesse lá, preso naquela maldita noite.
A Dra. Mônica se aproximou um pouco, a mão dela pousou gentilmente no braço da cadeira onde eu estava sentado.
– Às vezes, Yuri, o trauma não desaparece apenas com o tempo. Às vezes, ele precisa ser enfrentado diretamente, por mais doloroso que seja.
Eu senti um nó se formando na garganta. Meus dedos se apertaram com força nos braços da cadeira, e o suor frio escorria pela minha testa. As palavras dela perfuravam uma parte de mim que eu tentava, a qualquer custo, evitar.
– Enfrentar…? Como, exatamente? Eu revivo isso toda noite! – minha voz saiu mais alta do que eu queria, tremendo. – Como você acha que alguém pode "enfrentar" algo assim?
Ela me olhou, serena, com aquele olhar profundo que parecia ver todas as minhas rachaduras.
– Eu acho que o caminho é começar pelo início, Yuri. Reviver e relembrar os detalhes, as emoções… pode ser doloroso, mas é necessário para se libertar.
Minha mente rejeitava aquilo, mas meu corpo estava imóvel, como se estivesse preso ali. Eu sabia que era inevitável; sabia que, no fundo, fugir só me arrastava de volta àquele lugar escuro. Mas enfrentar… eu sequer sabia como.
– A cada detalhe? – minha voz saiu como um sussurro, incrédulo.
– Sim, Yuri – ela respondeu, com uma serenidade que me irritava, como se o inferno que eu estava prestes a atravessar fosse algo simples.
Senti o corpo inteiro estremecer. Eu estava suando frio, e o ar na sala parecia desaparecer. Comecei a lembrar, mas era como se tudo estivesse misturado. Cada detalhe, cada segundo daquela noite, se sobrepundo na minha mente, me esmagando.
– Foi… foi horrível. Tudo! – explodi, a voz ecoando pela sala. – Eu ainda consigo ouvir o grito dele, sinto o cheiro do sangue… e eu fiz isso, entende? Eu matei um homem! – o grito saiu do meu peito como se fosse o próprio peso da culpa se transformando em som.
A Dra. Mônica manteve a calma, embora eu visse em seus olhos que ela sentia a intensidade da minha dor. Cada palavra minha parecia cortar o ar entre nós, como lâminas afiadas.
– Você estava se defendendo, Yuri. Era sua vida… ou a dele.
Mas isso não ajudava. Eu sabia disso, mas, ao mesmo tempo, as imagens daquela noite eram claras, reais, como uma ferida aberta que eu não conseguia fechar.
– Mas eu queria – minha voz tremia, e as lágrimas começaram a escorrer pelo meu rosto. – Eu queria que ele pagasse… eu queria ver ele sofrer. E eu não consigo esquecer. Não consigo apagar o olhar de ódio dele. Não consigo parar de pensar no que ele me disse, as palavras que ele usou… é como se ele ainda estivesse aqui, dentro de mim.
Meus dedos apertavam tão forte os braços da cadeira que eu podia sentir as pontas começando a dor. Era como se a raiva e a dor estivessem se acumulando dentro de mim, e eu estava à beira de explodir.
A Dra. Mônica respirou fundo, inclinando-se um pouco mais, a mão ainda firme, quase como se quisesse me ancorar.
– Então vamos lá, Yuri. Vamos lembrar de cada detalhe. Eu quero que você se deixe levar, que sinta tudo, sem medo. Eu estou aqui com você, você não está sozinho.
Eu fechei os olhos, minha respiração se tornando irregular. As imagens voltaram com força total, e era como se eu estivesse novamente naquele morro, sentindo o cheiro da terra úmida, ouvindo os sons ao redor, sentindo a adrenalina pulsando nas veias.
– Eu… lembro de ouvir a voz da Isa, ela estava tão assustada… – minha voz saiu embargada, como se cada palavra fosse uma facada no peito. – E ele… Samuel, ele me olhou como se eu fosse nada. Como se eu não tivesse o direito de ser feliz. Ele disse que… que o Erick merecia alguém melhor. Ele disse que eu era um viciado no perigo, que tudo o que eu tocava se destruía.
Minha voz começou a sair em sussurros, mas o peso era insuportável.
– E ele não estava errado, entende? Ele estava ali, me fazendo sentir como se tudo fosse minha culpa… e eu queria acabar com ele. Eu queria que ele pagasse por cada coisa que me fez, por cada noite de dor.
Eu estava suando e tremendo, os olhos cerrados enquanto cada pedaço daquela noite vinha à tona.
– Eu o empurrei. Lutei com ele. Quando ele estava em cima de mim, apertando meu pescoço, eu só conseguia pensar no Erick… no quanto eu queria voltar para ele. Mas também... no quanto eu queria ver Samuel caído, sem poder me machucar de novo.
Eu abri os olhos, o rosto cheio de lágrimas, sentindo o peso do que acabava de dizer. A Dra. Mônica ainda me observava com aquele olhar firme e compreensivo.
– Você estava se defendendo, Yuri. Essa raiva que você sentiu… é o que nos protege em situações extremas. Mas não deixe que ela te aprisione agora. O que você fez foi uma tentativa desesperada de sobreviver. E isso não faz de você uma pessoa ruim.
Eu balancei a cabeça, frustrado, exausto. Era como se as palavras dela fossem boas demais para serem verdade. Como se eu não tivesse o direito de aceitá-las.
– Mas e agora? Como eu vou viver com isso? Como vou viver com essa culpa? E com o Erick… como ele vai entender isso?
Ela suspirou, se inclinando mais para perto, e a expressão dela se suavizou.
– Começa por perdoar a si mesmo. Entender que você não teve escolha. E, com o tempo, aprender a ver que você não está definido pelo que aconteceu naquela noite. Você é mais que isso, Yuri. Muito mais.
Eu queria acreditar nela, queria me agarrar a cada palavra. Mas, por enquanto, era difícil ver qualquer coisa além daquela noite, daquele olhar de ódio, daquela sensação de que eu estava quebrado. Mesmo assim, com a Dra. Mônica ao meu lado, eu senti que, talvez, eu pudesse tentar. Que, talvez, houvesse uma chance de encontrar um caminho para fora daquela escuridão. E, pela primeira vez, um lampejo de esperança atravessou o caos da minha mente.
A Dra. Mônica me olhou com aquele olhar calmo, mas incisivo, que parecia querer enxergar cada canto da minha alma. Sua voz saiu firme, mas gentil, e isso me desarmou.
– Depois que você saiu de lá, me conta como foi a reação de Erick ao te encontrar.
Tentei respirar fundo, mas minha garganta parecia apertada demais. A memória daquele dia ainda pesava em mim como uma âncora, cada detalhe vívido, a adrenalina pulsando no meu sangue, misturada ao horror de tudo que vivi. Pisquei devagar, sentindo o gosto do ferro do sangue seco que ainda parecia estar na minha boca, mesmo agora, semanas depois.
Quando levantei daquele chão de concreto, coberto pelo sangue de Samuel, as pernas mal me sustentavam. Eu estava sujo, ensanguentado, exausto, e as pessoas ao redor me olhavam com expressões horrorizadas, algumas até recuavam como se eu fosse algum monstro saído do inferno. Mas tudo o que importava pra mim naquele momento era Isa. A preocupação dela estar bem se sobrepunha a qualquer outra coisa.
Lá embaixo, Robinho me esperava, com Isa protegida em seus braços. Nos olhamos rapidamente, um olhar que dizia tudo, mas em silêncio. Não trocamos uma única palavra sobre o que aconteceu lá em cima. Robinho sabia que, para Isa, o mais importante agora era proteção, não detalhes. Ele carregava ela no colo, enquanto caminhávamos pra fora da comunidade, cada passo como se fosse uma prova de resistência, meu corpo reagindo a cada movimento com a exaustão que eu vinha segurando por tanto tempo. Isa olhava pra mim, a expressão confusa, perdida, e perguntou baixinho:
– Onde tá o papai? Por que eu não posso ficar no seu colo?
Eu senti meus olhos arderem, mas eu não podia assustá-la. Forçando um sorriso, abaixei o olhar para ela e falei, com a voz rouca:
– Isa, a gente já tá indo pro papai. Eu... eu não posso te pegar no colo porque tô todo sujo de tinta, olha só minha blusa. – Ri, mas era um riso quebrado, quase sem vida, só pra ela acreditar que tudo estava bem.
As lágrimas me escaparam sem que eu pudesse controlar. Olhei para Robinho, que me deu um pequeno aceno com a cabeça, um gesto que, vindo dele, era a única demonstração de apoio que ele sabia dar, mas que naquele momento significou tudo. Entramos no primeiro táxi que passou na rua, o cheiro de sangue e suor preenchendo o carro, mas Isa ainda estava inocente demais para perceber. Mandei uma mensagem para Erick, pedindo que ele fosse pra casa, que estava tudo bem. Embora, naquele instante, "bem" fosse uma palavra que parecia ter perdido o sentido.
Robinho estava sentado ao meu lado, quieto, mas eu sentia a tensão irradiando dele. Eu sabia que ele estava ansioso pra perguntar o que tinha acontecido lá em cima, que queria uma explicação, mas, por algum motivo, ele respeitou o meu silêncio. Talvez porque ele próprio estivesse em choque, ou talvez porque sabia que, se tocasse no assunto naquele momento, eu desabaria por completo.
Aquele trajeto de volta parecia interminável, o peso de tudo o que vivi caindo sobre mim, a responsabilidade que senti ao proteger Isa, a brutalidade do que eu fiz. E, ao mesmo tempo, a antecipação do reencontro com Erick, sabendo que nada mais seria como antes.
Quando finalmente chegamos em casa, o ar parecia carregado, pesado. A sala estava em um silêncio tenso, interrompido apenas pelo som dos nossos passos. Erick e Jonas já estavam lá, ansiosos, e quando Erick me viu com Isa, o alívio no rosto dele foi quase palpável. Ele correu até ela, pegando-a no colo e envolvendo-a em um abraço tão apertado que parecia não querer soltá-la nunca mais. Seus olhos estavam marejados, e ele a abraçava como se tentasse protegê-la de qualquer ameaça que pudesse surgir.
Jonas, por outro lado, encarava Robinho, sem dizer uma única palavra. O olhar dele passava de mim para Robinho com desconfiança, e a tensão era quase visível. Ele parecia tentar entender quem era esse homem, de onde ele me conhecia, e o porquê de estar ali. A mão de Jonas começou a se mover lentamente em direção à arma que carregava na cintura, os músculos de sua mandíbula estavam travados, indicando sua intenção clara.
– Jonas – falei, com firmeza, interrompendo o movimento dele. O olhar que lancei foi direto, tentando transmitir a gravidade do que eu ia dizer. – Nem pensa nisso. Ele é quem me ajudou a salvar Isa. Se não fosse por ele, nós dois provavelmente estaríamos mortos agora.
Jonas manteve o olhar fixo em mim por alguns segundos, como se ponderasse as minhas palavras. Ele olhou de volta para Robinho, avaliando-o como se pudesse encontrar uma justificativa para manter a mão na arma.
– Esse cara não é procurado? – perguntou, com uma voz grave. – Ele é um dos maiores...
– Eu sei – interrompi, segurando o olhar dele. – Eu sei quem ele é. Mas ele também é meu amigo de infância. Se Isa está aqui, segura e inteira, foi graças a ele.
Erick, ainda abraçando Isa, deu um pequeno aceno para Jonas, como se desse permissão para que ele confiasse em mim naquele momento. Relutante, Jonas afastou a mão da arma, mas seus olhos ainda estavam fixos em Robinho, que permaneceu calado, apenas observando.
Jonas então pegou Isa no colo com cuidado, como se ela fosse a coisa mais preciosa do mundo, e a levou para o quarto para que ela brincasse e não ouvisse o que estávamos prestes a discutir. O alívio era visível, mas o peso das próximas palavras já pairava sobre nós.
Quando Jonas voltou e fechou a porta do quarto, Robinho finalmente olhou para mim, e seu rosto, que sempre parecia tão impenetrável, exibia uma mistura de dor e apreensão.
– Ele... morreu? – perguntou ele, com a voz baixa, medindo as palavras.
Meu coração apertou, e senti o nó na minha garganta ficar ainda mais apertado. As imagens daquele momento voltaram como um flash na minha mente – Samuel me enforcando, o desespero, o medo que eu senti ao ver a morte tão próxima. As lágrimas começaram a escorrer pelo meu rosto, e a culpa, o horror, tudo transbordou de uma vez.
– Me desculpa – sussurrei, minha voz falhando. Encarei os olhos de Robinho, que estavam pesados, mas ele permaneceu parado, apenas ouvindo. – Ele ia me matar, Robinho. Ele estava me enforcando, e eu já estava sem ar... não tive outra alternativa.
Robinho deu um passo na minha direção, me puxando para um abraço, apertando-me com força. Eu sabia que, por mais que ele estivesse ali para mim, Samuel era seu irmão. Ele estava ali para me apoiar, mas também para lamentar, porque, no fundo, aquela perda também era uma ferida para ele.
Sentir o peso dos braços dele ao meu redor era um alívio e, ao mesmo tempo, uma dor. Eu estava ali, nos braços do irmão do homem que matei, e isso me rasgava por dentro.
– Me perdoa – sussurrei novamente, com um fio de voz, perto do ouvido dele. As palavras saíam carregadas de dor e arrependimento.
Robinho apertou o abraço ainda mais, a tensão em seus músculos indicando que ele também estava se segurando para não desabar.
– Eu nunca ficaria bravo com você – murmurou ele, a voz saindo trêmula, mas firme. – Eu já errei uma vez com você, não erraria de novo.
Aquela resposta me surpreendeu e trouxe um calor inesperado ao peito. Por mais absurdo que fosse, Robinho estava ali, como uma âncora, alguém que entendia a minha dor, e, mesmo com tudo o que aconteceu, ainda me oferecia algum tipo de consolo. Ao fundo, Erick observava a cena, tentando absorver o que estava se passando, com o olhar perplexo e a expressão carregada de confusão. Ele tentava entender como a minha vida tinha chegado a esse ponto e como eu poderia estar ali, num abraço com o irmão do homem que acabara de matar.