A sala de terapia estava imersa em um silêncio pesado, quase opressor. As paredes cinzas pareciam absorver a tensão do ambiente, e a luz fraca do abajur ao canto fazia as sombras dançarem de forma quase fantasmagórica. Era minha terceira sessão com a Dra. Mônica desde o sequestro de Isa, mas aquela em particular parecia carregar um peso a mais. Eu me sentia como se tivesse uma âncora presa ao peito, cada palavra que ela me incentivava a dizer parecia arrastar algo escuro, profundo e doloroso à tona.
Eu olhei para o chão, incapaz de encarar o olhar atento e cuidadoso dela, enquanto mexia os dedos nervosamente. Respirava fundo, mas o ar parecia se recusar a preencher completamente meus pulmões.
– Você já compartilhou algumas das coisas que viveu naquele dia, mas sinto que ainda há algo mais – começou Dra. Mônica, numa voz suave, mas firme. – Existe uma dor guardada aí dentro, Yuri. Algo que você ainda não falou, mas que continua te atormentando. Você está pronto para falar sobre isso?
As palavras dela ecoaram na minha mente, penetrando fundo, como se soubessem exatamente onde doía mais. Eu sentia uma pontada no peito, uma mistura de tristeza e culpa tão intensas que me fazia querer sair correndo dali, como se fugir pudesse me livrar da dor. Mas não podia continuar fugindo. Eu precisava enfrentar aquilo. Eu devia isso a Robinho.
Respirei fundo e olhei para o rosto dela, vendo a paciência e a compaixão nos seus olhos. A expressão dela me encorajou, mas ainda assim, as palavras saíram arrastadas, trêmulas.
– Depois que resgatamos Isa, eu... eu nunca achei que as coisas fossem terminar daquele jeito – comecei, a voz embargada. – Quando Robinho foi embora, eu... eu ainda estava chocado. O que aconteceu com Samuel, o sangue, tudo aquilo ainda parecia tão irreal. Mas... – parei, tentando segurar as lágrimas que já ameaçavam escorrer - Eu e Erick brigamos pois ele achou que eu deveria ter chamado ele e não Robinho para me ajudar. Acho que no fundo ele até estava certo, mas eu queria resolver aquilo, sabe?
Ela me olhava com compreensão e um leve aceno me encorajou a continuar. Era como se ela dissesse que eu poderia ir com calma, que estava ali para ouvir e que cada palavra que saísse, por mais difícil que fosse, seria acolhida.
– Acontece que... Naquele mesmo dia – falei, a voz quase sumindo –, o Físico invadiu o morro. Aquele era um território marcado, e eu deveria ter previsto que algo aconteceria. Mas... eu não pensei. Robinho só tinha pedido ajuda ao Físico por minha culpa– senti minha garganta apertar, como se cada palavra fosse um golpe direto ao coração. – Ele só pediu porque me ajudou a salvar Isa. Se ele não tivesse ido comigo, talvez... talvez estivesse vivo agora.
Eu senti um soluço subir, mas me esforcei para engoli-lo, sentindo as unhas cravando na palma das mãos enquanto me lembrava da cena com uma nitidez assustadora. Era quase como se eu estivesse revivendo aquilo, cada detalhe, cada sensação. O telefone tocando, a mensagem que recebi... a notícia de que Robinho tinha sido baleado.
– Me contaram que... ele estava tentando sair do morro quando tudo aconteceu, ele encontrou um dos meninos e disse que voltaria pra falar comigo, que ele precisava falar comigo – sussurrei, a voz trêmula. – Me disse que ele... Ele estava... desistindo dessa vida, e eu... eu me sinto tão... – a voz falhou e deixei a cabeça cair entre as mãos, o peso da culpa e do arrependimento esmagando cada pedaço de mim.
A Dra. Mônica me observava atentamente, mas não interrompeu. Deixou-me absorver aquele momento, enquanto eu tentava recolher cada pedaço da minha força para continuar.
– E Erick... – continuei, quase num sussurro. – Desde que tudo aconteceu, eu... eu não consigo mais ser o mesmo com ele. Toda vez que olho para ele, sinto que estou traindo a memória de Robinho. Porque, no fundo... no fundo, eu sabia. Eu sabia que tinha algo entre nós dois, desde a infância, algo que nunca tivemos coragem de nomear. Uma parte de mim... se apaixonou por ele.
A última frase saiu como um soco. Admitir aquilo em voz alta me fez sentir como se tivesse confessado o maior dos pecados. O peso do silêncio que seguiu parecia quase insuportável. Dra. Mônica me olhava com uma expressão que mesclava compreensão e apoio, mas seus olhos refletiam a intensidade da minha dor.
– Então, você sente que, de alguma forma, está traindo Robinho ao seguir em frente com Erick? – perguntou ela, calmamente, com uma voz que soava como uma âncora em meio ao mar revolto de sentimentos dentro de mim.
Assenti, ainda lutando para controlar a torrente de emoções que ameaçavam me consumir. Cada vez que pensava em Erick, em como ele tentava se aproximar, me confortar, eu sentia a presença de Robinho como uma sombra. Era como se, ao aceitar o amor de Erick, eu estivesse apagando o que senti por Robinho, como se estivesse condenando sua memória a desaparecer.
– Não sei como explicar – admiti. – Eu me sinto culpado. Culpado por ele ter morrido, culpado por estar aqui, ainda vivo, enquanto ele... ele perdeu tudo. E Erick... toda vez que ele tenta me tocar, eu sinto que estou traindo o Robinho. Eu não consigo parar de pensar no que poderíamos ter vivido. E, ao mesmo tempo, me sinto horrível por isso, porque sei que Erick não merece isso. Ele tem tentado tanto, tem sido tão... paciente. Mas eu... eu estou quebrado.
As palavras saíram aos trancos, cada uma delas carregando o peso das lembranças e da dor acumulada. O silêncio caiu novamente na sala, espesso, quase palpável. Eu podia sentir o olhar da Dra. Mônica sobre mim, mas naquele momento, minha mente estava em outro lugar. Estava de volta ao morro, às ruas escuras e silenciosas onde a última notícia de Robinho chegou como uma lâmina que cortou qualquer esperança de vê-lo novamente.
– Às vezes – comecei, quase num murmúrio, com os olhos fixos no vazio –, eu sinto que não sou digno de estar aqui, vivendo, enquanto ele... enquanto ele foi tirado de mim. Parte de mim acha que eu deveria ter estado ao lado dele, que deveria ter feito algo. Talvez... talvez se eu tivesse pedido para ele não voltar ao morro naquele dia... ele ainda estaria aqui.
A Dra. Mônica se inclinou levemente para frente, a expressão dela era um misto de tristeza e empatia. Parecia entender a profundidade da minha dor, mas sabia que precisava me guiar através dela.
– Yuri – ela disse, com uma voz suave –, você sente que essa culpa está impedindo você de viver plenamente o presente, de amar Erick e de honrar a memória de Robinho de uma maneira que não seja dolorosa?
Refleti por alguns segundos. No fundo, eu sabia que ela estava certa. Estava deixando a culpa me consumir, me aprisionar. Mas parte de mim ainda resistia, como se fosse errado deixar a dor ir embora. Como se, ao deixar Robinho partir, eu estivesse perdendo a última conexão com ele.
Respirei fundo, deixando a cabeça cair para trás, encarando o teto. As lágrimas corriam silenciosamente pelo meu rosto, mas eu sentia que algo dentro de mim, uma parte pequena e enfraquecida, queria aceitar o que Dra. Mônica dizia. Que talvez eu pudesse encontrar um jeito de seguir em frente, de viver sem esquecer.
– Eu... eu quero tentar – sussurrei, quase sem acreditar nas minhas próprias palavras. – Quero tentar me perdoar. Quero poder olhar para Erick e sentir que tenho o direito de estar com ele, sem essa culpa... sem essa dor.
Dra. Mônica assentiu com um leve sorriso, seus olhos brilhando com uma esperança discreta. Eu sabia que seria um longo caminho, mas naquele momento, pela primeira vez, senti que talvez – apenas talvez – pudesse haver uma maneira de honrar Robinho sem sacrificar minha própria vida no processo.
O silêncio caiu sobre nós novamente, mas agora parecia mais leve. A dor ainda estava ali, mas, de alguma forma, parecia um pouco menos sufocante. Ela me observava com uma expressão suave e compreensiva, mas seus olhos tinham um brilho profundo, como se estivesse prestes a me revelar algo que guardava há muito tempo.
Ela respirou fundo e começou a falar, sua voz saindo de forma suave, mas cheia de uma certeza que me atingiu como uma onda de conforto e algo inexplicavelmente poderoso.
– Yuri – começou ela, seus olhos fixos nos meus –, quero te contar algo que talvez possa te ajudar a encontrar alguma paz em tudo isso. Eu não costumo falar sobre minha espiritualidade aqui, mas sinto que, no seu caso, talvez essas palavras possam fazer diferença. Eu sou espírita, e minha visão sobre a vida e o amor é profundamente marcada pela ideia de que nada nessa existência acontece por acaso. E talvez, para entender o que você viveu com Robinho, seja preciso enxergar as coisas por outro ângulo.
Eu a ouvi em silêncio, absorvendo cada palavra, enquanto ela continuava.
– Acredito que nossas vidas são entrelaçadas em ciclos, que as almas que encontramos aqui – especialmente aquelas que nos marcam de maneira tão intensa – muitas vezes já estiveram conosco antes. Elas vêm de outras existências, onde viveram e compartilharam histórias conosco, histórias que talvez ainda precisem de fechamento, de evolução. O amor que você sente pelo Robinho é real, Yuri. Ele não é uma ilusão e tampouco é um erro. Mas, às vezes, nossa jornada exige que deixemos ir. Às vezes, o amor é algo que precisa se transformar para que possa florescer novamente, em outra vida, num outro momento.
Ela fez uma pausa, e eu me senti tomado por uma mistura de dor e esperança, como se as palavras dela estivessem penetrando fundo, tocando partes de mim que eu nem sabia que existiam.
– Pode ser – continuou ela, com um brilho de emoção nos olhos – que você e Robinho tenham escolhido se encontrar nessa vida para resolver algo que ficou pendente entre vocês. Talvez ele tenha vindo para te ensinar sobre o amor incondicional, sobre o sacrifício e a intensidade de viver. Mas, Yuri, isso não significa que ele estava destinado a ficar. Muitas vezes, temos que deixar que alguém parta para que tanto nós quanto eles possamos crescer e evoluir, para que, quem sabe, em uma próxima vida, vocês possam se reencontrar, mas em circunstâncias melhores, mais leves, onde o amor de vocês possa florescer plenamente, sem dor, sem as barreiras dessa existência.
Ela fez uma pausa novamente, observando meu rosto com ternura.
– O amor verdadeiro, aquele que ultrapassa o tempo e o espaço, não morre. Ele se transforma, ele espera, ele evolui. Pode ser que, nesta vida, o encontro entre vocês tenha sido para ensinar algo um ao outro, para preparar o terreno para uma vida futura, onde ambos estejam mais prontos. O amor de Robinho estará sempre com você, mas agora ele faz parte de uma jornada espiritual que precisa continuar. Isso não significa que ele te deixou ou que você está abandonando a memória dele ao seguir em frente. Ao contrário, cada passo que você der em direção ao seu próprio crescimento, à sua própria felicidade, honra a presença dele em sua vida.
Eu senti uma lágrima escorrer pelo meu rosto, mas a dor que acompanhava essa lágrima parecia diferente, menos sufocante.
– Deixe que o amor que você tem por Robinho se transforme em uma força dentro de você, uma força que te ajude a seguir em frente. Não como uma dívida, não como uma culpa, mas como uma homenagem. Ele te amou à sua maneira, e você o amou. Esse amor foi real e sempre será. Mas, talvez, a evolução que você e ele precisavam encontrar nesta vida seja justamente aprender a deixar ir, a confiar que o amor verdadeiro sempre encontra um jeito de florescer, mesmo que não seja aqui e agora.
Ela se inclinou levemente para frente, a expressão suave e acolhedora.
– Yuri, honre esse amor vivendo, encontrando felicidade com Erick, construindo novas histórias. Se algum dia você e Robinho tiverem que se reencontrar, estejam certos de que será em um momento onde ambos estejam prontos para vivê-lo plenamente. Mas, até lá, permita-se crescer, evoluir. Carregue ele no seu coração, mas não se prenda à dor.
As palavras dela ecoaram dentro de mim com uma força inexplicável, como se algo estivesse finalmente se encaixando. Eu nunca havia pensado no amor daquela forma, como algo que transcende as barreiras desta vida, algo que pode esperar até que ambos estejamos prontos para vivê-lo em toda sua plenitude.
Eu olhei para a Dra. Mônica, sentindo uma mistura de gratidão e serenidade, uma sensação de paz que não sentia há muito tempo. Senti que, de alguma forma, Robinho estava ali, não como uma presença que pesava, mas como uma força que me ajudava a seguir em frente.
E, pela primeira vez, eu realmente senti que podia deixá-lo ir – não porque o amor havia desaparecido, mas porque ele havia se transformado em algo mais puro, algo que poderia me acompanhar sem me impedir de viverEstamos chegando ao fim do nosso conto, estão preparados para se despedir de Yuri e Erick?