Uma onda súbita e inevitável, como se o corpo fosse invadido por uma energia crua e incontrolável. O coração disparava sem pedir licença, martelando no peito com uma intensidade brutal, enquanto os pulmões lutavam para manter o ritmo acelerado da respiração. Cada músculo parecia vibrar, tenso, como se estivesse à beira de um colapso ou pronto para uma explosão de ação. A mente, curiosamente lúcida, captava cada detalhe — mas de um jeito implacável, quase cruel, focada unicamente na ameaça. O mundo ao redor se reduzia a sombras, ao longe, enquanto o perigo tomava o centro do palco. As mãos trêmulas, os sentidos aguçados, e o medo — tão real quanto palpável — tornavam-se uma força motriz. Era uma urgência visceral, uma convocação para lutar ou fugir, guiada por algo profundo, primal. Nesse instante, a razão cedia, deixando o corpo agir por puro instinto.
Após algumas horas acordo com Nicolas já no quarto ao meu lado, estava dormindo tranquilamente. Minha mãe estava ali também, mas não vi Maya em nenhum momento.
Mãe: Ela não está aqui, foi para casa. Por ser final do dia ela disse que não podia se perder nos horários, mas amanhã o almoço ela passa aqui.
Nicolly: Obrigada mãe. Eu estou muito feliz com tudo, Nicolas nasceu saudável. Maya estava aqui comigo e segui seu conselho. Nós nos acertamos.
Mãe: Que bom minha filha. Mas acho que você precisará ser forte. Principalmente se quiser manter o relacionamento, e o Nicolas.
Nicolly: Como assim mãe?
Mãe: A mãe de Guilherme esteve aqui, e não está nada feliz de saber que o neto será criado por duas mulheres. Acredito que teremos muitos problemas.
Nicolly: Não acredito. Logo agora que estou bem.
Mãe: Filha, eu te entendo, a Maya já está ciente de tudo. Vocês precisam decidir se vão lutar por tudo ou parar agora.
Nicolly: Mãe, eu amo ela como nunca amei ninguém. Amor mais forte do que esse só o meu com Nicolas e o meu com a senhora.
Conversei mais um pouco com minha mãe, mas logo Nicolas acordou e parecia estar com fome. Quando senti o toque do meu bebê pela primeira vez no meu peito, foi como se o tempo parasse. Aquele pequeno corpo, tão delicado e vulnerável, se aninhando em mim, trouxe uma onda de emoção que eu jamais poderia ter imaginado. Quando sua boquinha buscou o meu seio, foi um toque tímido, suave, quase como um segredo que só nós dois compartilhávamos. O primeiro puxão fez meu corpo se arrepiar de uma maneira que misturava surpresa e ternura. Cada sucção parecia conectar algo mais profundo entre nós. Era como se, a cada instante, uma corrente invisível de amor fluísse de mim para ele. O mundo desapareceu. Só existia aquele momento, aquele calor. Um amor silencioso e avassalador tomou conta, preenchendo todos os espaços que eu nem sabia que existiam. Acabei dormindo pouco depois de ele amamentar, acordei apenas no dia seguinte.
Ao acordar percebo minha mãe agitada, e outra pessoa com ela. Era uma manhã de segunda, já se passavam das 9 da manhã e minha mãe segurava um envelope. Minha mãe adentrou e me entregou o envelope, ao rasgar o papel e sentir a textura rígida do documento entre os dedos, algo dentro de mim se apertou. Como se, antes mesmo de ler, eu já soubesse que nada seria mais o mesmo.
As palavras... Meu Deus, as palavras. Frias, impessoais, cravando-se em mim como lâminas afiadas. "Processo." "Custódia." "Ambiente inadequado." As letras pareciam saltar do papel, cada uma mais dolorosa que a outra. Meus olhos correram pela página, tentando encontrar algum erro, algo que provasse que aquilo era uma piada de mau gosto. Mas não havia erro. Então, lá estava... "Por sua sexualidade." Essas palavras me atingiram com a força de um soco no estômago. Não falavam de mim como mãe, como cuidadora, como a mulher que acabara de ter um filho. Falavam de algo que eu nunca escondi, mas que nunca deveria ter sido motivo para isso. Os avós. Meus ex-sogros. As mesmas pessoas que estavam do meu lado durante a gravidez, que disseram amá-lo mais do que qualquer coisa mesmo antes do nascimento. Agora, me viam como uma ameaça para ele.
Eu senti a folha escorregar das minhas mãos, pousando no chão sem som, mas o barulho dentro de mim era ensurdecedor. Um misto de raiva e desespero me dominou. A dor era física, apertava meu peito como uma mão invisível, mas o que vinha junto era algo mais forte, mais quente. Olhei para Nicolas ao meu lado dormindo em sono profundo, totalmente alheio a essa devastação. E então soube, com uma certeza inabalável, que lutaria. Lutaria por ele com cada parte do meu ser, porque não importa o que dissessem, o amor que eu tinha por ele era a única coisa que jamais poderiam questionar.
Minha mãe ao ver as lágrimas em meus olhos me abraçou, e me informou que já havia contratado um advogado para me auxiliar. Naquele momento pensei com calma, e percebi que não havia como provar meu relacionamento com Maya, mas ao mesmo tempo eu não queria esconder de ninguém o quanto a amava. Então em um momento de lucidez, pedi para minha mãe ligar para o advogado e pedir para ir ao hospital o mais rápido possível. Meu pai, que estava quieto no sofá do quarto, lembrou de que homofobia é crime, e talvez poderia ser usada nesse caso. Um fio de esperança surgiu, mas ainda havia um longo caminho pela frente. A batalha estava apenas começando, e eu estava determinada a não deixar que o preconceito me derrubasse. O amor que eu sentia por Nicolas e por Maya era mais forte do que qualquer ataque que pudesse vir.
O advogado entrou no quarto e logo se pôs a falar.
Advogado: Precisamos conversar sobre a situação — disse ele, ajustando os óculos que escorregavam pelo nariz. — O que está em jogo é muito sério.
Respirei fundo, tentando reunir as palavras que se acumulavam em sua mente.
Nicolly: Eu só… eu só quero ser mãe. Nicolas é tudo que tenho. Nunca imaginei que minha sexualidade pudesse ser usada contra mim. Não entendo como podem me ver como uma ameaça.
O advogado cruzou as mãos, sua expressão se tornando mais solene.
Advogado: Infelizmente, a sociedade ainda não está pronta para aceitar todos os tipos de amor. Mas isso não significa que precisamos aceitar essa injustiça. Vamos lutar contra isso.
Nicolly: O que posso fazer? O que posso dizer que mude essa percepção? Como posso provar que posso ser uma boa mãe? Ainda nem tive a chance de cuidar dele.
Advogado: Precisamos mostrar que seu amor é inquestionável — ele começou, olhando nos olhos dela com seriedade. — A corte precisa ver o vínculo que você tem com Nicolas. Podemos reunir testemunhas que possam atestar seu caráter, e que fará bem seu papel como mãe.
Nicolly: Mas e quanto a Maya? — era claro a preocupação em minha voz. — Eu não quero escondê-la. Não quero que nosso amor se torne um segredo. Isso só pioraria tudo.
O advogado assentiu, reconhecendo a complexidade da situação.
Advogado: Entendo. Mas precisamos considerar as implicações. Neste momento, é crucial proteger Nicolas. Se você optar por expor seu relacionamento, precisamos formalizá-lo. Documentar tudo, com datas e testemunhas.
Nicolly: É difícil… parece que estou sendo forçada a me esconder. Não é justo.
Advogado: Eu sei. E é um absurdo que você tenha que passar por isso — disse o advogado, sua voz se tornando suave. — Mas lembre-se: sua força está no amor que você sente por Nicolas.
Nicolly: E se eu perder? E se eles decidirem que sou uma má mãe por causa do que sou?
Advogado: Não podemos permitir que o medo dite nossas ações. Você tem que acreditar que o amor que você tem por Nicolas é mais forte do que qualquer preconceito. Você precisa lutar por ele, e por seu relacionamento com Maya.
Fechei os olhos por um instante, absorvendo suas palavras, pensei em Maya e como ela esteve ao meu lado, pensei em Nicolas tão pequeno e frágil.
Nicolly: Então, vamos lutar. Não vou deixar que o preconceito defina quem eu sou ou quem eu posso ser como mãe.
O advogado sorriu, um brilho de esperança surgindo em seus olhos.
Advogado: Essa é a atitude certa. Vamos construir a sua defesa em torno do amor e da verdade. E juntos, vamos mostrar ao tribunal que sua sexualidade não é um impedimento, mas sim uma parte integral do te fará uma mãe maravilhosa.
Nicolly: Obrigada. Obrigada por acreditar em mim — disse ela, sua voz firme.
Advogado: Você é a razão pela qual estou aqui. Vamos em frente — respondeu ele, enquanto ambos se preparavam para enfrentar a luta que os aguardava.
Meus pais estavam me apoiando em tudo, mas eu ainda precisava conversar com Maya sobre tudo.