Chegamos à casa dos meus pais, e eles nos atualizaram sobre como estavam indo as coisas na pousada, disseram que já estavam bem encaminhadas. Até mostraram fotos das reformas já feitas. Júlia tentou demonstrar animação e pode ter passado despercebido pelo meu pai, mas não pela minha mãe. Assim que ficamos a sós, ela deu um jeito de me perguntar se havia acontecido algo entre nós, e eu logo a certifiquei que não, que tinha, sim, ocorrido uma situação, mas que entre nós duas tudo estava em perfeita harmonia. Minha mãe com certeza ficou curiosa, porém eu sabia que, pelo jeito que falei, ficou subentendido que era algo que não queríamos expor. Ela não iria questionar.
— Tenho como ajudar de alguma forma? — me perguntou.
— A gente já queria vir para cá, mas agora queremos esfriar um pouco a cabeça antes de retornar ao trabalho, só isso — expliquei.
— Posso sair com as crianças para vocês ficarem mais tranquilas — sugeriu.
Pensei um pouco antes de responder.
— A companhia deles está ajudando bastante, mas se a senhora quiser dar uns passeios de vez em quando, é bom. Eles estão de férias e não acho que a gente vá sair muito — falei, e ela assentiu.
Fui ver meu amor; ela estava no quarto, deitada, e deu um sorrisinho ao me ver. A abracei, beijando seu pescoço, e comentei sobre a conversa com minha mãe.
— Eu disfarço tão mal assim? — me perguntou.
— Você só é transparente — a corrigi.
— Estava lembrando da primeira vez que eu estive aqui... — disse-me.
— Você, toda nervosinha pra conhecer meus pais — falei, rindo.
— E você, com o fogo acumulado de 200 Anittas juntas — brincou, apertando meu rosto.
— Epa! Eu lembro muito bem que fomos tomar um banho inocente, e você que me pediu coisas — respondi, convencida.
— Amor, você não tem nem vergonha na cara... — disse-me, mas eu a interrompi com um beijo. — Era pra eu tomar meu banho sozinha, você veio atrás... — novamente a interrompi para o reencontro dos nossos lábios. — E ficou provocando — concluiu finalmente.
— Sim... Dona da razão... Mas quem pediu pra continuar? — perguntei, rindo.
— Não sei! — e levantou, rindo, se dirigindo ao banheiro.
Ouvi o barulho do chuveiro sendo ligado e pretendia fazer o mesmo, mas o celular de Juh começou a tocar. Fui olhar quem era e estranhei, porque eu sabia que não era alguém que ligava sempre; na verdade, não temos muito contato. Era a irmã de Léo.
— Amor, Jamile, a sua prima está ligando. — falei.
— Ué, que estranho, ela nunca liga... Atende e vê o que é para mim ou então diz que daqui a pouco ligo de volta. — respondeu-me.
Atendi, e antes de conseguir dizer "Oi", ela começou a falar desesperadamente: — Júlia, você está em casa? Minha mãe me colocou para fora. Queria saber se posso passar a noite na sua casa, estou bem perto já, na verdade... Se eu não puder, não sei o que vou fazer, você é o mais próximo que eu tenho de uma família...
Estava com o alto-falante ligado, e eu só retornei a cabeça para dentro do banheiro novamente, e Juh estava com a mesma expressão assustada que a minha.
— Júlia? — chamou Jamile do outro lado da linha.
— Oi, Juh está no banho... É Lore, Jamile — respondi finalmente.
— Ah, desculpa... Depois pede para ela me ligar, por favor! — disse-me.
— Calma, vai ficar tudo bem. Nós não estamos em Salvador, mas podemos dar um jeito. Tudo bem para você ficar na casa da minha irmã? É bem próximo e Victor deve estar lá agora — falei, tentando acalmá-la.
— Por mim está ótimo, não quero atrapalhar a vida de ninguém, mas não tenho escolha, pelo menos por hoje, até eu reorganizar minha cabeça e decidir o que fazer... — respondeu-me.
Nesse momento, Juh saiu enrolada em uma toalha, e eu informei que passaria a ligação para ela. Enquanto isso, fui tentar falar com minha irmã ou com meu cunhado, mas ainda prestando atenção na conversa.
— Oi, Jamile, o que aconteceu??? — perguntou Juh.
— Então, levei uma pessoa lá em casa, a gente estava ficando, minha mãe chegou e foi um caos. Me mandou embora, assim como fez com o outro lá... — se explicou.
— Onde você está agora? — perguntou Juh.
— Próximo à casa de vocês, onde fica a casa da sua cunhada? — Perguntou de volta.
Minha mulher passou o endereço, e consegui falar com Victor, já que Loren não atendia. A comunicação virou um caos. Meu cunhado queria saber por que Jamile não foi para a casa dos pais dele, mas ela não parecia à vontade em dizer... Pedi que fizessem silêncio e falei para Victor encontrar com Jamile na frente da minha casa e depois a gente se atualizava melhor. Assim foi feito.
Juh continuou conversando via WhatsApp com ela, e eu comentei:
— Acho que você e Léo não são mais os únicos LGBTs da família...
— Quê? Acho que você tá viajando, amor — disse-me.
— Aposto que ela levou uma garota pra casa; se fosse um cara, ela diria, mas ela disse "uma pessoa", certeza que é mulher — falei.
— Mas Lore, ela não fala com Léo porque ele é gay! — exclamou minha gatinha.
— E a cigarra, com raiva da formiga, votou no inseticida... — falei.
— QUÊ????? — me perguntou, sem entender, e eu ri.
— Esquece... Pergunta se foi uma menina ou um menino — propus.
Alguns minutos depois, ela riu, me mostrando a mensagem que confirmava a minha teoria.
— Vou ligar para o Léo, acha uma boa? — perguntou-me.
— Acho que ele pode ajudá-la, pelo menos conversando — falei.
A ligação não foi bem como esperávamos. Primeiro, Léo se recusou a falar com a irmã por raiva dela sempre ter ficado contra ele com tudo que sofreu, mas fomos conversando. Fui falando que ela era muito nova, que estava se conhecendo agora e que não era uma situação legal de passar, e a consciência dele foi voltando para o lugar, porque não só aceitou ligar, como ir lá buscá-la para que ficasse com ele, se Jamile assim quisesse.
Quando Victor, fofoqueiro que só ele, ligou para explicar, tudo começou a fazer mais sentido. Enquanto a mãe estava na igreja, Jamile levou uma garota para casa, e ela acabou voltando mais cedo e flagrou. Fez um escândalo, colocou as duas para fora da casa, falou que não merecia aquilo, que era muito azar ter dois filhos e os dois serem anormais, também culpou o pobre do diabo, assim como minha sogra no início... Assustada e com medo, a menina só saiu com o celular; por sorte, o RG e o cartão costumavam ficar na capinha, e foi assim que ela conseguiu chegar até a nossa cidade. Não quis procurar os tios, pois temia receber a mesma reação, pelo histórico e por conhecer o jeito deles.
Eu acho que, mesmo com a reforma, meus sogros a acolheriam. Com certeza já não tinham a cabeça de antes. Minha sogra pode até não apoiar, mas seu modo de agir estava mudando. Ela não deixaria a sobrinha sem um teto.
— Que babado — falei quando Victor terminou de contar.
— Minha família tá cada vez mais gay — disse Juh, animada, me fazendo rir.
— Só falta Victor agora — brinquei.
— Oxe, lá ele — me respondeu, rindo.
— Que bom que agora está tudo sob controle — disse Juh.
— Como ela está? — perguntei.
— Tá bem, tá conversando com Loren; deixei elas lá para passar o fuxico completo, me valorizem — nos disse.
— Como se você não estivesse doido para fazer isso — falei.
— Amor, você estava louca para saber que eu sei — disse Juh.
— Estava mesmo, mas você também... Fofoqueira — brinquei e já dei logo um beijinho, mas ela ria.
Nós desligamos e ficamos refletindo sobre a situação na cama. Júlia passaria por algo semelhante se já não estivesse morando sozinha e conseguiu ajudar alguém da família. Foi difícil viver escondendo quem ela era e mais ainda tomar a decisão de contar aos pais. Mesmo com uma preparação, foi complicado; imagina para Jamile, que nem teve escolha.
No outro dia, Léo passou lá e a levou. Mais tarde, meu sogro ligou para Júlia falando o que tinha acontecido e perguntando se ela nos procurou. Contamos a verdade, e ele confirmou o que eu já suspeitava: se Jamile tivesse ido até eles, poderia ficar por lá. Mas até que fiquei satisfeita com o que aconteceu. Os irmãos precisavam se reconciliar, e o destino tratou de cuidar disso. A vida de Léo era muito solitária, e agora poderiam contar um com o outro.
Com o passar dos dias, o arrependimento certamente bateu, e os pais tentaram contatá-la, mas Jamile não quis voltar. Segundo ela, retornar seria aceitar ser prisioneira deles, e era algo que ela não desejava.
Esses dias na casa dos meus pais, as crianças saíram bastante, mas nós duas não; demos no máximo umas idas à praça e não demoramos. Alguns dias antes de voltarmos, acordei de madrugada sem Juh nos meus braços. É fácil notar a falta de alguém que dorme grudada em você; sempre que acontece, consigo perceber. A encontrei sentada no sofá da sala. Quando me aproximei, percebi que chorava.
Tudo que aconteceu com a prima dela fez com que retardasse o sentimento de insucesso da fertilização, e naquele momento minha esposa estava tendo uma descarga de emoções.
— Desculpa, não queria te acordar e vim para cá... — disse baixinho.
Eu a abracei e estendi a mão.
— Vamos à praia — convidei.
Júlia me olhou um pouco confusa, mas não me questionou; apenas deu-me sua mão e fomos.
Estava frio, uma ventania, o ambiente bem escuro, dando até um pouco de medo, mas prosseguimos até sentir a areia molhada nos pés. Sentei com ela entre minhas pernas e falei em seu ouvido:
— Gatinha, agora vamos falar tudo que estamos sentindo. Vou começar, tá bom?
Juh confirmou que sim com a cabeça, e eu prossegui.
— Quando a gente começou a conversar sobre filhos, a gente ainda namorava. Lembro que a primeira vez foi quando Mih começou a te chamar de mamãe — ela deu um sorriso, e eu também. — Eu te falei que com você teria até um time de futebol... Mas nem sempre pensei assim. Eu nunca tinha tido o desejo de ser mãe; a gravidez de Milena não foi planejada e não foi fácil. Aceitar foi, porque desde o instante que descobri, a amei com todo meu coração. Mas você sabe, o meu antigo relacionamento não era saudável; foi uma gestação onde eu não pude opinar em nada e... caralho... era a minha gestação, porra! — ela passou a mão no meu rosto para limpar as lágrimas. — Até o parto, eu desejava um parto vaginal, e foi uma cesariana sem necessidade com a desculpa de "não estragar o brinquedinho dele"... Não quero tornar isso sobre mim, só quero que você entenda que, a partir do momento que você entrou em minha vida, mudou todas as minhas perspectivas sem fazer esforço algum. Com você, eu tenho vontade de viver realmente. Não queria relacionamento e casei contigo; não queria mais filhos e já aumentamos nossa família... Sou muito feliz e satisfeita com o que já temos. Olhando para seu rostinho, é impossível não imaginar uma casa cheia de mini versões suas. Quando vejo você brincando, cuidando, educando nossos filhos, só tenho mais certeza ainda de que estou com a pessoa certa. Foi frustrante não ter dado certo de primeira; querendo ou não, os resultados foram nos animando e criamos expectativas, mas não quer dizer que não poderemos tentar novamente. Me senti impotente durante todos esses dias; não te ver bem dói bem no fundo do meu peito. Me sinto impotente de não poder te ajudar verdadeiramente, digo, arrancar esse sentimento de você. Espero de verdade que a vida nos dê o privilégio de viver esse sonho. Eu quero ver a sua barriguinha crescendo, sentir o neném chutando, dar todo o dengo que você precisar e te apoiar, acima de tudo, te dando o direito de decisão que eu não tive e te aconselhando com a minha experiência. Sei que na sua cabeça não existe a opção de desistir dessa jornada, mas se existisse, mesmo querendo a casa cheia de crianças com seu rostinho, eu aceitaria facilmente. Tendo o que temos, eu sou feliz e sei que você também é...
Júlia virou para mim, me agarrou, e choramos muito juntas. Foi um desabafo, e me senti extremamente leve. Odeio a sensação de prolongar um problema por não se abrir, mas às vezes, é preciso esperar o tempo certo para fazer isso.
Após algum tempo, começou a dizer:
— Pela nossa última conversa, eu achei que esse papo seria bem diferente. Eu não esperava que você me dissesse que não tentaríamos mais, porém achei que ia precisar te convencer... Eu estava um pouco cansada de tentar me enganar, repetindo que eu não deveria estar me sentindo assim, sendo que foi só a primeira tentativa... Não consigo evitar; me animei, criei esperança... Eu sonhava em a gente contando para as crianças que eles ganhariam um irmãozinho, ficava imaginando a gente comprando roupinhas temáticas... Tantas coisas passavam pela minha cabeça, e quando percebi que realmente não tinha dado certo, fiquei sem chão. Foi como cair em um abismo e te arrastar junto comigo... Porque eu sei que estávamos em sintonia, que você quer tanto quanto eu; olho nos seus olhos e vejo a sua dor... Não queria causar isso. Tenho medo de que aconteça novamente, mas tenho mais medo ainda de desistir de algo que sei que seria bom para nós. Esse medo não vai me controlar; mesmo que seja difícil, eu acredito que cada passo vai valer a pena. Mesmo sentindo essa dor de ter fracassado, quero lutar com coragem por isso... Vou tentar com todas as forças aumentar a nossa família e nos presentear com um bebezinho!
— Você não fracassou — falei, acariciando seu rosto. — Aconteceu... E essa história ainda não acabou. Passamos por um capítulo e vamos seguir juntas. Nos nossos dias mais difíceis, temos uma à outra, e isso basta. Você é muito corajosa, meu amor, e pela primeira tentativa, eu já estou muito orgulhosa desse início de percurso — e a beijei.
— Você se engana muito quando pensa que não me ajuda, sem você, nem sei onde eu estaria. O apoio que você sempre me deu e a segurança que sempre me passou são essenciais para a pessoa que sou hoje, a cabeça que tenho hoje... Comigo você sempre foi incrível, você é uma pessoa incrível, meu amor! — E novamente nos beijamos.
Ficamos ali ouvindo mais um tempo o som do mar e fomos para casa, sem nós na garganta, quase voando de tão leves que visivelmente estávamos. Entramos bem devagarinho em casa para não acordar ou assustar ninguém. Obviamente, estávamos sujas de areia e fomos tomar um banho rápido antes de voltar para a cama, onde poderíamos dormir até mais tarde. Mas nossos despertadores, vulgo filhos, nos acordaram às 8h com um ótimo motivo: voltar a dormir, só que juntinhos... Sentiram saudade da nossa presença, com certeza, e, com a mente e o corpo bem, conseguimos curtir nossos últimos dias ali, inventando mil e uma brincadeiras e tentando recuperar o tempo "perdido".