Ela era uma mulher de uns 40 anos, muito bonita e com uma aliança enorme no dedo. Sinal que era casada e deixava claro isso pelo tamanho da aliança. Ela tinha um sorriso muito bonito, de cara me pareceu ser uma pessoa simpática. Sua voz era um pouco grossa e potente. Me lembrou uma amiga minha que trabalhava em uma rádio FM local. Com certeza ela não era a pessoa dona da voz que me fez companhia durante esse tempo. Eu dei um sorriso e a cumprimentei, mas acho que minha frustração ficou evidente. Vi o sorriso dela sumir e ela me perguntou se ela tinha feito algo errado. Eu forcei um sorriso e disse que não. Que eu só estava ainda tentando entender o que tinha acontecido comigo. Ela se aproximou de mim e segurou minha mão.
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Enfermeira: O médico contou o que aconteceu com você?
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Aline: Ele me disse que sofri um acidente, que fiquei em coma por quase sete meses, me falou das minhas fraturas, lesões e outra médica disse que provavelmente estou com amnésia dissociativa.
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Enfermeira: A Carol me disse mesmo quando nos encontramos na saída. Ela me atualizou de tudo. Mas pelo jeito o doutor não te contou algumas coisas. Você chegou aqui praticamente morta, sinceramente não sei como você resistiu até chegar aqui. Eu fui uma das enfermeiras que ajudou no seu atendimento. Tivemos muito trabalho para te manter viva. Quando você estava quase estabilizada, você teve uma parada cardíaca e tivemos que usar os desfibrilador para te ressuscitar. Depois de um mês em coma você teve outra parada cardíaca, dessa vez achamos que íamos te perder, mas conseguimos te manter viva. Estou te contando isso para você ver o quanto você é forte e lutou pela sua vida. Então encare isso como uma nova chance que você ganhou do cara lá de cima. Outra coisa, nunca se esqueça que você é uma mulher forte que venceu a morte por três vezes. Sei que você está confusa e provavelmente tem uma batalha pela frente para voltar a sua vida normal. Mas lembre-se que o pior já passou, o resto você vai recuperando aos poucos e tenha fé que suas memórias vão voltar.
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Aline: Qual é seu nome? Posso te dar um abraço?
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Enfermeira: Meu nome é Maria e claro que você pode me abraçar.
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Dei uma abraço nela! Eu não sabia que eu tinha passado por tudo aquilo. As palavras dela mexeram muito comigo. Eu comecei a ver as coisas de outra forma. Eu realmente tinha recebido uma chance enorme e não iria jogá-la fora. Eu iria fazer de tudo para sair o mais rápido possível daquela cama e retomar minha vida de antes. Eu iria ficar naquilo dali para frente. Maria não era a dona da voz, mas suas palavras foram muito importantes para mim.
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Eu fiquei meio que isolada nos próximos dias, fui na psicóloga duas vezes e ela proibiu minhas visitas por 5 dias. Eu fui praticamente interrogada pela minha médica e pela psicóloga nesses cinco dias. Depois Carol, minha enfermeira do dia, me disse que minha amiga, minha namorada e minha mãe foram chamadas para uma reunião com minha psicóloga. Eu não fazia ideia do porque minha mãe foi chamada. Carol disse que minha mãe que foi chamada quando eu cheguei no hospital. Ela que assinou tudo para minha internação. Mas depois só voltou ao hospital no dia seguinte e sumiu. Eu já esperava por isso. Achei até milagre ela ter vindo duas vezes. Já faz anos que eu e ela não temos mais qualquer tipo de contato. Carol me perguntou o motivo, eu disse que eu era lésbica e minha mãe não aceita isso. Carol disse que imaginou, até porque já tinha passado por algo parecido. Nesse hora eu descobri que minha enfermeira era lésbica. Ela me contou que o pai não aceitou bem e foi expulsa de casa. Mas nem chegou a sair porque a mãe dela a protegeu e disse que se fosse para sair alguém de casa era o pai dela, porque ela não iria a lugar nenhum. O pai acabou repensando e por livre e espontânea pressão acabou aceitando a sexualidade dela. O papo estava bom, mas nós fomos interrompidas por Marina entrando no meu quarto.
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Ela já entrou sorrindo e veio me abraçar. Carol foi saindo, mas antes percebi um olhar entre as duas e eu conhecia bem aquele tipo de olhar.
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Aline: O que está rolando entre você e a Carol?
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Marina: Boa tarde para você também. Eu estou bem viu. Como você está se sentindo?
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Aline: Desculpe amiga. Eu estou bem na medida do possível. Só queria sair dessa cama e ir para meu apartamento. Você está realmente bem?
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Marina: Agora que você acordou eu estou bem. Mas foram tempos difíceis com você nessa cama entre a vida e a morte. Mas passou e você acordou, agora posso te ajudar de verdade. Ah, e não está rolando nada entre eu e a Carol, ainda. Kkkk
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Aline: Acabei de saber que ela é lésbica, além de muito bonita, me parece ser uma boa pessoa. Dou a maior força para vocês. Olha eu vou querer sua ajuda sim. Preciso me atualizar com as coisas que aconteceram durante o tempo que estava dormindo. E também dos meses que esqueci.
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Marina: Com isso eu não posso te ajudar minha amiga. Estou proibida de te contar qualquer coisa que possa fazer você criar uma falsa memória.
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Aline: Como assim proibida?
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Marina: Sua psicóloga me proibiu, é para o seu bem. Me desculpe. Mas vou te ajudar na sua fisioterapia, já conversei com sua médica e com Michele. Vou te acompanhar todos os dias que eu puder e posso ajudar você a exercitar sua memória também. Não posso te contar nada que aconteceu durante o último ano, mas se você se lembrar de algo eu posso confirmar se é verdade ou não.
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Aline: Já entendi, bom pelo menos vou poder ter sua companhia e conversar com você. Eu estava com muita saudades.
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Marina: Eu também estava com muita saudades suas.
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Fiquei ali conversando com minha amiga por um bom tempo. Tentei arrancar algumas coisas dela sutilmente. Por exemplo, porque minha namorada não ficou comigo esse tempo todo? Se é que Michele ainda era realmente minha namorada. Mas Marina era muito esperta e não me revelou nada. Mas disse que Michele foi à reunião com a psicóloga, depois foi embora e deixou ela vir me ver. Aquilo deixou meio óbvio que Michele estava seguindo a vida dela sem mim. Me deu uma certa tristeza porque eu tinha lembranças claras do nosso namoro e a gente se amava muito. Porém a tristeza que senti não foi grande a ponto de me fazer derramar uma lágrima se quer. Por algum motivo eu não a amava mais. Foi aí que me lembrei da voz que ficou comigo quando eu estava no meio da escuridão. Contei tudo a Marina e ela prestou bastante atenção. Depois disse que não fazia ideia de quem poderia ser, e que não conhecia ninguém ali no hospital com voz de anjo. Eu comecei a achar que aquilo era algo da minha cabeça e a tal voz não era real.
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Marina ficou comigo até o início da noite. Quando ela se despediu para sair, Carol entrou no quarto. Ela disse que só veio se despedir e já estava indo embora. Pedi um abraço e quando ela me abraçou, eu disse baixinho no seu ouvido que minha amiga estava afim dela. Ela me deu um beijo no rosto e um belo sorriso. Se despediu de Marina e saiu. Eu disse para Marina ir logo e oferecer uma carona para ela. Ela gostou da ideia, me deu um abraço e saiu quase correndo do quarto para ir atrás da Carol. Logo Maria chegou com seu sorriso lindo e ficamos de papo um bom tempo. Descobri que ela era casada há dezoito anos e mãe de um casal de filhos. Ela trabalha no hospital desde o início. A irmã do dono do hospital a trouxe para trabalhar ali quando abriram o hospital. Eu não sabia ainda desse detalhe. Eu estava em um dos melhores hospitais particulares da cidade de São Paulo. Ela me explicou que eu fui levada para o melhor lugar para poder me tratar. Me senti até mais segura depois de saber disso.
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No outro dia eu fui na minha primeira sessão de fisioterapia. Marina veio me acompanhar e Carol claro foi comigo. Pelos sorrisos delas a carona foi boa, mas não falei nada perto das duas. Depois Marina ou até mesmo a própria Carol me contariam. Eu fui até o local de cadeiras de rodas. Basicamente não sai dela. Os exercícios eram mais um fortalecimento dos músculos e praticamente fiquei sentada com o fisioterapeuta mexendo nas minhas pernas. Ele me ensinou alguns exercícios para eu fazer no quarto. Carol e Marina aprenderam para poder me ajudar com eles. Quando a gente foi voltar para o quarto eu vi que a gente desceu em outro andar. Perguntei a Carol o que a gente estava fazendo naquele andar. Ela me disse que eu tinha sido mudada de quarto. Como eu não precisava mais ficar em um quarto da UTI, eu tinha sido movida para um quarto normal do hospital. Quando entrei no quarto eu abri um sorriso. Parecia um quarto normal de um hotel. Talvez a diferença estivesse no banheiro. Ele era grande porém com todo o suporte para uma pessoa com deficiência.
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Carol: Agora você pode tomar banho sozinha e fazer suas necessidades no banheiro. Só vou te ajudar se realmente precisar.
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Aline: Graças a Deus! Sem fraldas e você abusando do meu corpo Kkkkkkkkkkk
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Carol: E ainda tem uma tv com canais de filmes e séries para a gente ver. Só não tem canais de variedades e notícias. Isso é para você não ficar sabendo das coisas que aconteceram no mundo durante o último ano.
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Aline: Minha psicóloga é muito chata mesmo.
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Marina: Não é não. Ela só está te protegendo. Ela não quer que você force sua memória além do necessário e não crie lembranças falsas.
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Aline: Eu sei, mas a curiosidade às vezes ataca 🤭
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Ficamos ali conversando e acabou que as duas me contaram que a corona aconteceu, mas elas só conversaram como boas amigas. Eu achei bem legal porque as duas eram bem parecidas. Nenhuma delas tinham papas na língua e falavam sobre tudo sem frescura. Marina como uma boa atacante disse que só conversaram porque Carol não quis dar nem um beijo nela. Carol disse que não a beijou porque ela estava vindo do trabalho e se elas se beijassem, não iria querer ficar só nos beijos. Marina disse que em motel tem banheiro. Carol disse que não tinha pensado nisso, mas podia pensar se rolasse outra carona. Eu pedi para as duas pararem de falar porque eu estava muito tempo na seca e aquele papo não estava ajudando. As duas riram e se olharam. Ali eu tive certeza que as duas iriam fazer exatamente o que falaram.
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A médica esteve no meu quarto logo que as duas saíram. Ela disse que no outro dia eu iria na psicóloga e provavelmente ela iria começar a me ajudar a recuperar minhas memórias. Que uma nutricionista já tinha mudado o meu cardápio. Que o foco agora era minha recuperação. Naquele momento eu pensei que esses tratamentos que eu estava fazendo eram muito caros. Ainda mais em um hospital particular. Perguntei à médica se ela sabia quem estava pagando meus tratamentos. Ela disse que não sabia, mas que a ordem do dono era para eu receber o melhor tratamento possível. Ela disse que ninguém no hospital tinha duas enfermeiras do hospital por conta como eu. Que no máximo o hospital oferecia uma e eu além de ter duas, eram duas das melhores do hospital. Eu a agradeci e ela se foi. Perguntei à Maria se ela sabia quem estava pagando meu tratamento. Ela me disse que não sabia, que só o pessoal da administração saberia me dizer. Eu imaginei que seria Marina, só ela teria dinheiro para algo assim.
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No outro dia de manhã eu fui levada até a sala da psicóloga. Ela conversou comigo durante um bom tempo. Me explicou como funcionaria o tratamento. Que era muito importante eu continuar fazendo psicoterapia depois que eu recuperasse as memórias. Ela disse que foi ela que pediu para eu continuar no hospital. Que era essencial que eu tivesse em um lugar seguro. Como o acidente foi na porta do meu prédio, eu voltar para meu apartamento não seria uma boa ideia. Depois ela me explicou sobre a hipnose e que sua ideia era ir com calma. E que provavelmente no início iria tentar uma regressão. Porque talvez o meu trauma poderia ser de algo vindo do meu passado e não por causa do acidente. Porque meu cérebro escondeu seis meses de acontecimentos e não só do momento do acidente. Então ela queria ter certeza do motivo e assim ela poderia me ajudar. Eu disse que eu estava disposta a fazer o que ela queria sem problema nenhum. Que eu queria muito recuperar minha memória e minha vida.
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Assim eu comecei meu tratamento. Ali naquela sala eu iria reviver muitas coisas maravilhosas da minha vida e outras nem tanto. Velhos traumas viriam à tona e eu iria sofrer muito com aquilo. Mas também novos traumas iriam aparecer. Eu iria descobrir muitas coisas que naquele momento eu não fazia ideia que tinha acontecido.
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Continua..
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Criação: Forrest_gump
Revisão: Whisper