Capítulo narrado por: Bia
Eu estava ao volante, concentrada na estrada. O celular vibrava insistentemente no banco do passageiro, e, sem precisar olhar, eu sabia que era Yago. Suas mensagens apareciam uma atrás da outra, como se ele estivesse em um surto. Mas eu não podia responder. Não agora. Estava tão perto de algo grande, algo que poderia ser a ruína de Marc.
Na verdade, aquelas mensagens eram consequência do que começou há algumas noites, quando invadi o escritório dele. Ainda lembro de como meu coração disparava enquanto vasculhava cada canto daquele lugar.
O escritório era um ambiente frio e impecavelmente organizado, refletindo a personalidade calculista de Marc. Havia uma mesa de madeira maciça com gavetas perfeitamente alinhadas, prateleiras repletas de livros que pareciam nunca ter sido abertos e um cofre embutido na parede, parcialmente escondido por uma estante. O cheiro era uma mistura de couro e café caro, tão típico dele.
Assim que entrei, comecei a revirar gavetas. Encontrei papéis de contratos, documentos antigos, mas nada que gritasse "prova". Então me aproximei do cofre. Por sorte, Yago tinha memorizado a senha. **260194.** Minhas mãos tremiam enquanto digitava os números. A porta do cofre se abriu com um clique seco.
Dentro, havia dinheiro, uma arma - que eu evitei tocar - e uma pilha de documentos. A maioria era irrelevante, mas um deles chamou minha atenção: um contrato de aluguel de uma propriedade no interior do Rio de Janeiro. O endereço estava destacado e parecia recente.
Tentei acessar o computador dele, mas estava protegido por senhas que eu não tinha como adivinhar. O tempo era curto. Guardei o documento comigo, reorganizei tudo e saí antes que alguém pudesse perceber minha presença.
Agora, aqui estava eu, seguindo o endereço no contrato, com a mente fervendo de possibilidades. Minha prioridade era derrubar Marc, e se isso significava não responder Yago por algumas horas, era o preço que eu estava disposta a pagar.
As mensagens continuavam chegando.
O céu começava a tingir-se de um alaranjado suave quando, ao longe, avistei uma figura correndo pela estrada de terra. Uma mulher. Seus movimentos eram apressados, como se estivesse fugindo de algo.
Reduzi a velocidade, observando enquanto ela se aproximava. Seus cabelos desgrenhados caíam sobre os ombros, e suas roupas estavam sujas, desgastadas, como se tivesse passado por algo intenso. Quando cheguei mais perto, parei o carro.
Ela olhou para mim, hesitante, os olhos arregalados de pavor.
- Me ajuda! - gritou, respirando com dificuldade.
Destravei a porta do carro. Ela hesitou por um instante antes de entrar rapidamente, mas assim que a porta se fechou, seus olhos fixaram-se em mim como se tivessem visto um fantasma.
- Você também tá com ele, não é? - perguntou ela, apavorada.
- Quem? - respondi, confusa.
- Não se faz de idiota! Marc! Você tá com ele, né? - Seus olhos estavam cheios de desconfiança enquanto puxava a maçaneta, tentando sair.
Tranquei as portas.
- Escuta aqui! - gritei, tentando recuperar o controle da situação. - Eu não tô com Marc. Eu quero destruir ele.
Ela parou, ainda tremendo, os olhos avaliando meu rosto. Sua respiração era curta e ansiosa.
- Destruir ele?
- Isso mesmo. Destruir.
Ela ficou em silêncio, ainda desconfiada. Seus olhos examinavam cada detalhe do meu rosto.
- Você... não tá me reconhecendo? - perguntou ela de repente, a voz baixa, quase um sussurro.
Franzi a testa, confusa.
- Te reconhecer? Não. Deveria?
Ela respirou fundo e desviou o olhar por um momento antes de voltar a me encarar.
- Eu sou a Amanda. Ex-namorada do Kadu.
Minhas mãos apertaram o volante enquanto minha mente corria. Amanda. A Amanda. A namorada desaparecida de Kadu. Era impossível. Ela estava desaparecida há anos.
- Meu Deus... - sussurrei. - Amanda?
Ela assentiu lentamente, os olhos marejados.
- Sou eu.
- Como... como você conseguiu sair? - perguntei, a voz falhando com a incredulidade.
- Eu fugi. - Ela olhou para as próprias mãos, como se revivesse cada momento. - Ele achou que eu não tinha mais forças, que eu nunca tentaria escapar. Mas hoje... hoje eu corri.
Fiquei em silêncio por um momento, tentando absorver o que estava ouvindo. Então, encarei Amanda novamente, determinada.
- Ele não vai mais te tocar. Eu prometo.
Ela riu, uma risada curta e amarga.
- Você não sabe do que ele é capaz.
- Talvez não - respondi, firme. - Mas vou descobrir. E vou acabar com ele.
Amanda me olhou, ainda insegura, mas algo na minha voz pareceu quebrar a barreira de desconfiança.
- E o que você vai fazer agora? - perguntou, hesitante.
Olhei para a estrada à frente, o coração acelerado.
- Primeiro, vou te tirar daqui. Depois, vamos juntas descobrir um jeito de fazer Marc pagar por tudo isso.
Ela ficou em silêncio, mas seus olhos mostravam uma faísca de esperança que parecia esquecida. Sem mais palavras, acelerei o carro, sabendo que a batalha que eu buscava agora era ainda maior do que imaginava.
A estrada parecia interminável, cada quilômetro carregado de tensão. Eu mal conseguia pensar direito, apenas dirigia. Amanda estava ao meu lado, quieta, abraçada aos próprios joelhos no banco do passageiro. Sua respiração ainda era irregular, como se o corpo não tivesse se acostumado à liberdade.
Meu coração batia forte. O que eu estava fazendo? Tirar Amanda daquele lugar era um ato de desafio direto contra Marc. E agora, o que viria a seguir?
Decidi parar antes de voltar à cidade. Era arriscado seguir direto. Usei dinheiro para pagar um hotel no interior, um lugar simples e esquecido por muitos, mas perfeito para quem não queria ser encontrado. O atendente sequer levantou os olhos ao me entregar as chaves.
- Fique aqui. Vou resolver algumas coisas. - Disse para Amanda assim que entramos no quarto.
Ela olhou para mim desconfiada, como se temesse ser abandonada.
- Eu volto. Eu prometo.
Deixei-a ali e saí. Andei até uma loja de roupas baratas, comprei o básico para nós duas e voltei o mais rápido possível. Ao entrar no quarto, Amanda estava sentada na cama, o olhar perdido no chão.
- Trouxe roupas novas. Pode tomar um banho se quiser.
Ela me lançou um olhar cansado, mas se levantou lentamente e foi para o banheiro. Enquanto a ouvia ligar o chuveiro, tirei meus sapatos e sentei na beira da cama, tentando organizar meus pensamentos.
Quando Amanda saiu, envolta em uma toalha, parecia outra pessoa. Ainda abatida, mas com um pouco mais de cor no rosto.
- Obrigada. - Disse, baixinho.
Assenti, dando espaço para que ela se sentasse ao meu lado. Ficamos em silêncio por alguns minutos antes de eu quebrar o gelo.
- Amanda... eu preciso entender o que aconteceu com você.
Ela respirou fundo, seus olhos se enchendo de lágrimas antes mesmo de começar a falar.
- Eu namorava o Kadu. - Sua voz era baixa, como se estivesse lutando contra um peso enorme. - No começo, tudo era tão bom, tão leve. Mas então... o pai dele.
Ela parou, fechando os olhos, como se estivesse revivendo um pesadelo.
- Marc começou a se insinuar. No início, eram só olhares. Depois, comentários, toques... - Ela engoliu em seco. - Eu tentei evitar, tentei fazer ele parar, mas ele era insistente, obsessivo.
Eu fiquei em silêncio, tentando processar o que ouvia.
- Eu pensei em denunciar, em contar para o Kadu, mas... quem acreditaria em mim? Ele tinha tanto poder, tanto controle.
- E então? - Incentivei.
- Então ele prometeu que ia me deixar em paz. Disse que só queria uma última conversa. - Sua voz tremeu, e ela apertou as mãos no colo. - Eu fui. Achei que era o fim. Mas ele... ele me sequestrou.
O quarto pareceu se fechar ao meu redor.
- Quando acordei, já estava na fazenda. Um lugar no meio do nada, cercado por seguranças. Mulheres, crianças... todas nós presas, todas tratadas como mercadoria.
Minha respiração ficou presa na garganta.
- Ele me visitava de vez em quando. Ainda... ainda dizia que me queria. Que eu era dele.
Amanda começou a chorar, as mãos tremendo enquanto tentava continuar.
- Mas, há alguns meses, ele parou de ir. Pensei que tinha acabado, mas então... eles disseram que eu não teria mais tratamento especial. Que eu ia ajudar de outra maneira.
- Ajudar como?
Ela olhou para mim, os olhos cheios de medo.
- Eles iam me engravidar. Usar meu corpo para gerar uma criança e vender o bebê.
Senti o chão sumir sob meus pés. Cada palavra dela era como um soco no estômago.
- Mas eu consegui fugir antes. Eu não ia deixar isso acontecer. Não de novo.
Eu a observei por um momento, percebendo o quão devastada e ao mesmo tempo forte ela era.
- Amanda... nós vamos acabar com ele. - Disse, com firmeza.
Ela me olhou, ainda desconfiada, mas uma centelha de esperança brilhava em seus olhos.
- Por enquanto, descanse. Amanhã, nós decidimos o que fazer.
Ela assentiu, e o silêncio preencheu o quarto enquanto ela se deitava na cama. Eu fiquei acordada, pensando em cada palavra dela e no próximo passo.
Marc tinha que pagar. Por ela, por Yago, por todos que ele destruiu. E eu faria isso, custasse o que custasse.
Horas depois, o quarto estava mergulhado em silêncio, exceto pelo som regular da respiração de Amanda. Ela dormia profundamente, o corpo ainda encolhido, como se estivesse protegendo a si mesma até nos sonhos. Era compreensível. Depois de tudo o que ela contou, era um milagre que conseguisse dormir.
Eu, por outro lado, não conseguia.
Estava sentada em uma cadeira perto da janela, observando a escuridão lá fora. A luz fraca do abajur iluminava apenas o suficiente para que eu pudesse ver o rosto de Amanda. Ela parecia tão frágil, tão jovem. E pensar que ela tinha passado por tudo aquilo... Meu peito se apertava cada vez que as palavras dela ecoavam na minha cabeça.
"Ele ia me engravidar."
Fechei os olhos, tentando empurrar a ideia para longe, mas ela voltava, insistente. Marc não era apenas um monstro, era um demônio com recursos, controle e um senso de posse doentio. E eu sabia que, se não jogasse minhas cartas direito, ele iria atrás dela novamente.
Para onde eu a levaria? Será que era seguro deixá-la voltar para os pais? Ou seria melhor escondê-la por um tempo, até eu conseguir provas o suficiente para derrubar Marc? Se é que eu conseguiria. Ele era esperto demais, meticuloso.
E Yago...
O pensamento dele me causava uma mistura de culpa e preocupação. Será que eu deveria contar para ele? Ele tinha o direito de saber, afinal, era amigo do Kadu, namorado dele, e estava tão envolvido com Marc sem nem perceber o tamanho do perigo que corria. Mas eu tinha medo. Se ele soubesse, como reagiria? Ele parecia mais forte do que era, mas eu sabia que estava frágil. Eu via isso nas mensagens dele, nos surtos que ele tentava disfarçar.
Talvez, por enquanto, fosse melhor não contar nada. Proteger Amanda e proteger Iago. Pelo menos até eu ter certeza de que Marc não poderia machucar mais ninguém.
Mas como tudo isso começou? Como Marc se transformou nesse predador?
Tentei montar uma cronologia em minha cabeça. Amanda tinha sido o objeto da obsessão dele durante meses, talvez anos. Ele a sequestrou porque não aceitava que ela tivesse vida própria, escolhas próprias. Ela não era só mais uma vítima, era o troféu que ele mantinha escondido.
Mas então algo mudou. Há meses ele não a visitava, e ela pensava que talvez tivesse sido esquecida. Eu sabia a razão: Iago.
Marc tinha encontrado outro alvo. Outro "troféu".
Yago, com sua fragilidade, sua beleza. Marc provavelmente enxergava nele a oportunidade de moldar alguém, de ter algo que Amanda nunca lhe daria: controle absoluto.
Meu estômago se revirou ao pensar nisso. Marc tinha deixado Amanda escapar, mesmo que sem perceber, porque estava ocupado demais manipulando Yago. Um homem capaz de sequestrar e traficar pessoas agora estava se dedicando a destruir psicologicamente alguém que eu considerava meu amigo.
Eu tinha que agir.
Amanda era uma chave. Se eu conseguisse escondê-la, protegê-la, talvez pudesse convencê-la a depor, a dar um testemunho que desmoronasse Marc. Mas ao mesmo tempo, a fragilidade dela me preocupava. Ela estava quebrada, cheia de traumas, e eu não podia forçá-la a enfrentar isso tão cedo.
Minha cabeça latejava. Pensei em como seria simples devolvê-la aos pais, mas isso não era seguro. Marc ainda tinha olhos e ouvidos em todos os lugares. Se ele soubesse que ela estava viva, voltaria para terminar o trabalho.
Suspirei e passei as mãos pelo rosto, tentando encontrar alguma clareza. Não havia uma solução perfeita, apenas um emaranhado de riscos.
E enquanto Amanda dormia, eu só conseguia pensar em como o destino dela, de Yago, de Kadu, de todos nós, estava entrelaçado de forma tão cruel pelas mãos de Marc.
E eu precisava ser mais esperta do que ele. Mais rápida. Mais implacável.
O relógio marcava altas horas da madrugada, e o hotel estava mergulhado em silêncio. Bia olhou para Amanda, que dormia profundamente. O rosto da jovem, mesmo em repouso, carregava a tensão de anos de sofrimento. Bia suspirou, sentindo o peso das informações que agora sabia.
Ela se levantou devagar para não fazer barulho, pegou o celular e saiu do quarto. Caminhou pelo corredor iluminado por uma luz amarelada fraca, desceu as escadas e foi para a área externa do hotel. O ar frio da madrugada a envolveu, e ela respirou fundo antes de destravar o telefone.
Depois de hesitar por alguns instantes, decidiu que não podia guardar aquilo sozinha. Digitou o número que não usava fazia meses, mas que ainda sabia de cor. A chamada começou a tocar, e, por um momento, ela quase desistiu.
- Alô? - a voz firme e acolhedora de Erick atendeu do outro lado.
Bia sentiu um alívio imediato ao ouvi-lo.
- Erick, sou eu, Bia.
- Bia? - O tom dele era de surpresa. - Há quanto tempo! O que aconteceu? Tá tudo bem?
Ela respirou fundo, tentando encontrar as palavras certas.
- Não sei se estou bem, Erick... Eu precisava falar com alguém de confiança.
Houve uma pausa, e ele respondeu com cuidado.
- Claro, Bia. O que aconteceu?
- Antes, me conta... como você está? - Ela precisava de um momento para organizar seus pensamentos.
Ele riu levemente, a voz carregando um tom caloroso.
- Estou bem. Continuo casado com o Yuri, você lembra dele, né? - Ele fez uma pausa breve antes de continuar. - A Isa também está cada dia mais esperta, estamos muito felizes. Mas e você? O que tá rolando? Parece sério.
Ela fechou os olhos, sentindo o peso do que estava prestes a dizer.
- Erick, preciso que você faça algo pra mim. É importante. É... grandioso, na verdade. Mas você não pode deixar que saibam que foi por minha causa.
- Bia, você sabe que pode contar comigo, mas precisa me dar mais detalhes. O que tá acontecendo?
- Eu não posso dizer muito - respondeu, apertando o celular contra o ouvido. - Só que tem um lugar, uma fazenda no interior do Rio. É um lugar horrível, Erick. Gente desaparece lá. Mulheres. Vítimas.
O silêncio do outro lado da linha foi carregado de tensão antes que Erick falasse novamente, desta vez com uma seriedade absoluta.
- Bia, você tem certeza disso?
- Absoluta. Por favor, Erick, confia em mim. Não posso explicar tudo agora, mas você precisa fazer algo.
Ele respirou fundo, claramente processando a informação.
- Me passa o endereço. Eu vou cuidar disso.
Ela forneceu o local que havia encontrado nos documentos de Marc.
- Obrigada, Erick. Eu... Eu realmente agradeço.
- Bia, cuidado com isso, tá bom? - disse ele com um tom protetor. - Você tá brincando com algo perigoso. Se precisar de mais ajuda, me avisa.
Ela desligou a chamada e ficou por um momento encarando o horizonte. Sentia o coração acelerado, mas também uma sensação de alívio por finalmente agir.
Quando voltou ao quarto, Amanda ainda dormia. Contudo, a paz que a jovem parecia demonstrar não a alcançava. Bia sabia que a guerra estava longe de acabar, mas, ao menos, uma pequena batalha tinha sido travada.