A noite havia caído sobre a selva como um manto denso e abafado. Flávia e Luís estavam sentados ao redor da fogueira, as chamas dançando entre eles, lançando sombras sinuosas sobre suas feições. O calor das últimas semanas ainda pairava entre eles, mas agora, era um calor diferente. Um calor de mágoa, ressentimento e segredos que eles evitavam discutir, mas que se tornaram inescapáveis. A tensão estava clara, como uma fera à espreita no escuro, pronta para atacar a qualquer momento.
Flávia olhava fixamente para as chamas da fogueira, o crepitar do fogo parecendo ecoar a turbulência em seu peito. Seu corpo ainda vibrava com as lembranças dos últimos dias, e sua mente estava sobrecarregada pelos sentimentos conflitantes que a assombravam. O que havia começado como uma missão de fé, de pregação e propósito, se transformara em algo muito mais sombrio e intenso. Naquele momento, a selva era muito mais que um cenário. Ela havia se tornado um palco de transformação – interna, emocional e moral.
O silêncio entre ela e Luís era pesado, denso com as coisas não ditas. Ela sabia que o confronto era inevitável, especialmente depois do que havia visto, mas a simples ideia de iniciar a conversa fazia sua garganta se apertar. Flávia respirou fundo, tentando reunir coragem. Ela sabia que aquela era a única maneira de resolver a situação – ou tudo desmoronaria de vez.
Luís, por outro lado, estava imerso em seus próprios pensamentos. A lembrança de seu encontro com Nala ainda o queimava por dentro, como um segredo que ele mal conseguia carregar. Ele sabia que Flávia sentia a distância crescente entre eles, mas havia algo mais, algo que ele tentava evitar: ele também havia percebido a mudança nela. O modo como ela olhava para os carregadores, a intensidade com que se movia pelo acampamento. Algo em Flávia havia despertado, e Luís não podia ignorar.
Flávia finalmente quebrou o silêncio, sua voz baixa, mas firme. — Precisamos conversar, Luís. — Sua voz soava quase como uma súplica, mas estava carregada de uma determinação que ele não podia ignorar.
Luís ergueu os olhos, surpreso pelo tom direto. Ele sabia que esse momento chegaria, mas não esperava que fosse tão abrupto. — Eu sei — respondeu ele, a voz hesitante, já temendo o que estava por vir. — Mas... sobre o quê exatamente?
Flávia desviou o olhar para o fogo, tentando organizar seus pensamentos. As palavras pareciam escorregar por entre seus dedos. Como ela poderia expressar tudo o que sentia? Como contar a ele o que havia feito, sabendo o que ele também havia feito? Ela sentia um nó na garganta, mas sabia que precisava seguir em frente.
— Eu vi você, Luís — disse ela, finalmente, com um tom mais sério, seus olhos fixos no fogo. — Eu vi você e Nala...hoje de manhã quando estava voltando para pegar algumas coisas na tenda vi vocês se beijando e depois ela ajoelhou-te te chupou.
Luís sentiu o sangue gelar. Ela havia visto? Sua mente correu, tentando entender o que dizer. O silêncio dela até então o havia enganado. Ela sabia o tempo todo. Ele abriu a boca para se justificar, para tentar explicar, mas as palavras não saíam.
Flávia respirou fundo, como se reunir coragem para continuar. — E antes que você diga qualquer coisa... eu também preciso te contar algo eu... — Ela hesitou, sentindo o peso do que estava prestes a dizer. — Eu estive com os carregadores, Luís. Também não foi apenas uma vez. Eu... me entreguei a eles. E sei que você já percebeu isso.
A confissão de Flávia pairou no ar entre eles como uma onda avassaladora, destruindo qualquer pretensão de normalidade que restava. Luís a olhou, o choque evidente em seu rosto, o coração batendo rápido. As palavras dela o acertaram em cheio, e por um momento ele não soube o que sentir — dor, raiva, inveja, ou simplesmente compreensão.
— Flávia... — Luís começou, mas não sabia como continuar. Suas emoções estavam em guerra, mas havia algo no olhar dela que o paralisava — algo que ele não havia visto até agora. Uma honestidade crua, uma aceitação dos próprios pecados, tão similar ao que ele mesmo sentia.
— Nós dois... — Flávia continuou, sua voz mais firme agora, mas cheia de dor. — Não somos mais os mesmos, Luís. Desde que chegamos aqui, essa selva, esse lugar, algo mudou dentro de nós. Eu sei o que fiz e... eu sei que você fez o mesmo. Mas... por quê? Como chegamos a isso?
Luís abaixou a cabeça, sentindo o peso da culpa. — Eu não sei... — Ele suspirou, sentindo as palavras lutarem para sair. — Eu não sei o que aconteceu. Nala... ela... eu senti algo com ela que não consigo explicar. Algo que me tirou do controle. Eu errei, Flávia, eu sei disso. Mas sabendo de você... com eles... me destruiu. Eu desconfiava, mas me recusei a aceitar.
Flávia assentiu lentamente, entendendo a confusão e a dor que Luís carregava. Ela também sentia o mesmo. — Eu também mudei, Luís. Aquela primeira vez... com eles... foi como se algo dentro de mim tivesse despertado. Eu nem sabia que era capaz de sentir o que senti. Não foi só o desejo físico, foi algo mais profundo, algo que eu não sabia que estava lá.
Luís a olhou com uma mistura de dor e compreensão. — O que isso significa para nós, então? — perguntou ele, sua voz baixa. — O que isso faz com o que somos, com o que viemos fazer aqui?
Flávia desviou o olhar, as lágrimas ameaçando brotar em seus olhos. Ela sabia que, apesar de tudo, ainda amava Luís. Ainda havia uma conexão entre eles, algo mais forte do que o desejo e a traição. Mas o que significava isso agora? Eles estavam em uma missão de pregação, uma missão para espalhar a fé, e ainda assim, haviam se deixado levar por impulsos carnais. O conflito entre o propósito que os trouxera àquela terra e o que haviam se tornado a corroía por dentro.
— A missão... — murmurou ela, quase para si mesma. — Viemos aqui para pregar, para ajudar, e acabamos nos perdendo... mas eu não posso te odiar por isso, Luís. Porque... eu também me perdi.
Luís suspirou profundamente, sentindo a dor dessa verdade. — Talvez essa selva... talvez isso tudo seja uma prova, algo que precisamos enfrentar. Algo que está nos testando... mas eu não sei se podemos voltar ao que éramos antes.
— Não sei se queremos voltar ao que éramos — respondeu Flávia, finalmente o olhando nos olhos. — Mas uma coisa eu sei, Luís... eu ainda te amo. Mesmo depois de tudo. E se o amor ainda estiver aqui, talvez possamos seguir em frente... de um jeito diferente.
Luís respirou fundo, sentindo as lágrimas começarem a se acumular em seus olhos. Ele a amava também, e sempre amara. E agora, vendo-a tão vulnerável, tão honesta, ele percebeu que o que haviam compartilhado — tanto o prazer quanto a dor — era algo que os conectava de maneiras mais profundas do que antes.
— Eu também te amo, Flávia — disse ele, aproximando-se e segurando as mãos dela com força. — Eu quero tentar... quero que possamos nos perdoar, nos entender. Talvez... talvez o que vivemos aqui, com Nala, com os carregadores... não seja algo para esquecer, mas algo para aceitar.
Flávia apertou as mãos dele, sentindo a esperança crescer novamente dentro de si. — Talvez o que aconteceu não precise ser um peso — continuou ela, sua voz suave, mas firme. — Talvez seja parte de quem nos tornamos aqui. Não só o casal missionário... mas algo mais.
Eles se olharam por um longo momento, e o silêncio entre eles já não era pesado ou desconfortável. Havia uma aceitação mútua no ar, uma compreensão de que ambos haviam cruzado limites, mas que, de alguma forma, ainda havia um caminho para seguir. A selva ao redor parecia menos opressora agora, como se ela mesma tivesse testemunhado aquela reconciliação silenciosa.
— Vamos seguir juntos — disse Luís, sua voz baixa, mas decidida. — Vamos aceitar o que somos, o que vivemos, e seguir em frente.
Flávia sorriu, um sorriso suave, mas sincero. — Sim... e vamos continuar, sem negar o que aconteceu. Nós mudamos, mas ainda estamos juntos.
Os dois se abraçaram, as chamas da fogueira iluminando seus rostos enquanto o calor do amor os envolvia. A selva ao redor parecia observar silenciosamente, enquanto Flávia e Luís aceitavam que o que havia acontecido ali os transformara para sempre, mas que o amor que compartilhavam poderia sobreviver.
No final, eles decidiram que o amor seria a força que os guiaria, mesmo que tivessem mudado de maneiras que jamais imaginariam.
A caminhada até a vila foi mais longa do que Flávia e Luís haviam imaginado. A selva, densa e implacável, parecia estender-se infinitamente à frente deles. Os sons da floresta ecoavam ao redor, criando uma melodia constante de farfalhar de folhas e cantos de pássaros. O clima, sempre úmido e abafado, deixava o ar denso e carregado de umidade. Flávia, cansada e suada, sentia cada passo pesar em suas pernas, mas sua mente estava ocupada com o que estava por vir. Ela sabia que a vila, que por tanto tempo havia sido o destino final da jornada deles, guardava segredos e desafios que iam muito além do que poderiam imaginar.
À medida que o grupo se aproximava da vila, a tensão era palpável. Flávia podia sentir o olhar constante de Reyam sobre ela. Ele havia estado mais próximo nos últimos dias, mais vigilante. A presença dele era imponente, quase esmagadora, e ela sabia que, de alguma forma, ele ainda exercia um poder sobre ela que ela não conseguia ignorar. Nala, por outro lado, caminhava ao lado de Luís com a mesma confiança e graça de sempre, seus olhos claros sempre atentos ao caminho à frente, mas também claramente ligados a Luís de uma maneira que fazia o coração de Flávia apertar.
Os carregadores, Digo, Magu e Droge, haviam se despedido naquela manhã. O acordo era que eles os acompanhariam até os arredores da vila, mas dali em diante, seria Reyam e Nala que seguiriam com Flávia e Luís. O fim daquela parte da jornada trouxe uma mistura de alívio e inquietação. Flávia sabia que, apesar do fim das aventuras com os carregadores, a parte mais difícil e misteriosa de sua jornada ainda estava por vir.